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Heterogeneidade quanto ao nível de escolaridade, idade, conhecimentos

1 HETEROGENEIDADE: PARA INÍCIO DE CONVERSA

1.1 Mas, tudo é heterogeneidade! O que as pesquisas revelam?

1.1.2 Heterogeneidade quanto ao nível de escolaridade, idade, conhecimentos

Como foi discutido em tópicos anteriores, há muitas dimensões relativas à heterogeneidade na escola. Algumas delas são centradas em características físicas ou culturais dos estudantes ou grupos sociais, mas há outras que são relativas ao próprio percurso escolar.

Embora tenhamos clareza de que aspectos relativos ao percurso escolar estão, na maior parte das vezes, atrelados a aspectos ligados às diferenças culturais, ou seja, resultados de processos de exclusão de determinados grupos sociais, é necessário abordá-los também sob o ponto de vista de como são tratados no ambiente escolar.

Assim, neste tópico tratamos da heterogeneidade quanto aos níveis de conhecimento dos alunos, atentando que tal aspecto implica na análise acerca da heterogeneidade:

(1) quanto à idade, já que há uma expectativa de que a progressão escolar está pautada em uma homogeneização dos agrupamentos quanto às idades (por exemplo, espera-se que todas as crianças ingressem no Ensino Fundamental aos 6 anos e estejam no terceiro ano do primeiro ciclo aos 8 anos, de modo que os que ultrapassam essa idade são considerados fora de faixa); (2) quanto à etapa formal de escolarização, já que há uma expectativa de que os estudantes que tenham quatro anos de escolarização do Ensino Fundamental estejam no segundo ciclo, os que

tenham seis anos de escolarização estejam no sexto ano do Ensino Fundamental, e os que não são promovidos para a etapa de escolarização condizente com o tempo de escolaridade são considerados repetentes; (3) quanto ao nível de conhecimento, já que há uma expectativa de que os alunos que estejam em uma determinada etapa de escolarização detenham determinados conhecimentos e os que não dominam são considerados com defasagem de aprendizagem.

Tais dimensões da heterogeneidade evidenciam que a escola agrupa os estudantes considerando a idade, o tempo de escolaridade e o nível de conhecimento acerca de alguns conteúdos. Os estudantes matriculados em alguma turma sem atender a algum desses critérios são considerados desviantes, problemáticos, atrasados, causando quebras de expectativas, que supostamente “dificultam a ação pedagógica”.

Desse modo, a heterogeneidade quanto aos conhecimentos tende a ser vista apenas sob o ponto de vista de que o sujeito não ingressou na escola na “idade certa”, ou não foi promovido de uma etapa para outra “no momento certo”, ou não aprendeu o que precisava ter aprendido “na etapa de escolaridade certa”. Há, portanto, uma culpabilização do aluno pela distorção que ele estaria causando, provocando dificuldades para o atendimento escolar que busca a homogeneização.

Retomando a discussão do tópico anterior, também em relação à heterogeneidade quanto aos níveis de conhecimento, há uma tendência a considerar que cabe ao aluno adequar-se às expectativas escolares. Não há, geralmente, uma busca de entender quais conhecimentos ele domina para além dos que ele ainda não domina. Há pouca valorização dos saberes oriundos de outros espaços escolares que levem ao reconhecimento desse sujeito como detentor de saberes e como pessoa capaz de aprender.

A heterogeneidade, assim, é vista apenas sob a perspectiva do que está faltando a um aluno em relação aos demais que dominam o conhecimento escolar valorizado. Tende-se, portanto, a uma busca de homogeneização, mesmo em espaços em que isso é por definição impossível, como é o caso das turmas multisseriadas, sobre as quais faremos breves reflexões.

1.1.2.1 Heterogeneidade nas turmas multisseriadas

Apesar de a escola tradicionalmente realizar os agrupamentos considerando os três critérios acima discutidos, ela se vê, muitas vezes, impelida a romper com tais requisitos e a criar agrupamentos que se diferenciam desse valorizado no contexto escolar. É o caso das turmas multisseriadas, que atendem, sobretudo, às comunidades do campo.

As turmas multisseriadas se caracterizam por unirem numa mesma turma alunos de diferentes séries/anos sob o “comando” de um único professor que necessita se desdobrar para atender às necessidades específicas em cada ano/série. Assim, torna-se extremamente heterogênea, uma vez que nela podemos encontrar alunos com idades diferentes, com capacidades e conhecimentos distintos, etc.

Hage (2010) apresenta alguns resultados obtidos no grupo de estudo da Universidade Federal do Pará (UFPA) sobre a educação do campo, com foco nas escolas rurais multisseriadas, discutindo aspectos que influenciam tanto a prática dos professores e a aprendizagem dos alunos, quanto as políticas dos municípios que adotam esse sistema de ensino, tais como: a precariedade das condições existenciais das escolas multisseriadas; a sobrecarga de trabalho dos professores e instabilidade no emprego; as angústias relacionadas à organização do trabalho pedagógico; o currículo deslocado da realidade do campo; o fracasso escolar e a defasagem idade- série que são elevados em face do pouco aproveitamento escolar e das atividades de trabalho infanto-juvenil; dilemas relacionados à participação dos pais na escola; a falta de acompanhamento pedagógico das Secretarias de Educação; e, o avanço da política de nucleação vinculada ao transporte escolar.

Esses aspectos são discutidos porque de certa forma fortalecem a imagem negativa da educação do campo como um “mal necessário”, único meio de educação nos anos iniciais e responsável pelo fracasso dos indivíduos que frequentam tais escolas.

O referido autor constatou, mediante o grupo de estudo em que participa, através de entrevistas e acompanhamento dos docentes e discentes, que a multisseriação é a efetivação do princípio da seriação incorporado pelas escolas do campo, como meio de “urbanizar” a educação do campo, na tentativa de modernizar, desenvolver e possibilitar aos sujeitos do campo (marcados pela precarização, miséria, atraso e não desenvolvimento) acesso às novas tecnologias, saúde e

educação de qualidade. Ou seja, as políticas consideram o meio rural como sendo incapaz de se auto-conduzir nos aspectos relacionados aos serviços destinados à população rural, principalmente em relação à educação.

Além de apontar as problemáticas do campo (por se guiarem pelo paradigma da urbanização), o grupo da UFPA também sugere que é necessário transgredir tal paradigma, “construir e implementar as proposições, as políticas e as ações com os sujeitos do campo envolvidos com as escolas e turmas multisseriadas e não para eles” (p. 12, grifos do autor).

O grupo desenvolve pesquisas para compreender os modelos de ensino tanto na área urbana quanto na rural, mas, também, promovem reflexões e debates a partir de formações com os professores, gestores, estudantes, pais, lideranças comunitárias e líderes de movimentos sociais do campo, discutindo sobre a diversidade sociocultural e territorial enquanto pauta política e educacional,

afirmando a diferença que se manifesta nos modos próprios de vida e existência das populações e grupos que constituem a Amazônia, considerando a conflitualidade existente nas relações sociais que esses grupos e populações estabelecem entre si, e apontando para uma convivialidade de forma pacífica, dialógica e emancipatória que precisa se efetivar entre esses grupos e populações (p. 14).

O trabalho apresenta como principal característica das escolas multisseriadas do campo, a questão da heterogeneidade como sendo marcante porque reúne numa mesma turma grupos com diferenças de sexo, de idade, de interesse, de domínio de conhecimentos, de níveis de aproveitamento, etc., muito embora deixe explícito que tal fenômeno (a heterogeneidade) não é privilégio apenas desses espaços, pois se efetiva sob qualquer forma de organização do ensino (seriado, ciclado, multisseriado), além de se articular com:

particularidades identitárias relacionadas a fatores geográficos, ambientais, produtivos, culturais, etc.; [...] elementos imprescindíveis na constituição das políticas e práticas educativas a serem elaboradas para a Amazônia e para o país (pp. 14-15).

O grupo identificou ainda, mesmo contrariando as afirmações negativas dos professores sobre a heterogeneidade, que a mesma se configura como mecanismo

potencializador da aprendizagem e enriquecedor do ambiente escolar, que poderia ser melhor aproveitado na experiência educativa que se efetiva nas escolas e turmas multisseriadas,

carecendo no entanto, de mais estudos e investigações sobre a organização do trabalho pedagógico, sobre o planejamento e a construção do currículo que atendam às peculiaridades de vida e de trabalho das populações do campo [...], (p. 15).

Estudo semelhante foi desenvolvido por Pinho (2011) que, por meio de pesquisa documental, realizou uma investigação que teve como principal objetivo compreender como as professoras da Ilha de Maré/BA concebiam os tempos e ritmos nas classes multisseriadas, tomando como base o Projeto Pedagógico e o Regimento da Escola Municipal de Botelho (esses documentos seguiram as orientações do Sistema Municipal de Educação de Salvador e foram analisados e aprovados pelo Conselho Municipal de Educação de Salvador).

A análise dos referidos documentos constatou diversas divergências com a realidade da escola, por exemplo, apesar de constar atendimento aos alunos em regime seriado, os dados da matrícula mostravam divisões em sistema de multisseriação. A mesma divergência ocorria na prática pedagógica. Os professores utilizavam os princípios da seriação apesar de as turmas serem multisseriadas.

Eles concebiam a multisseriação como “uma fragmentação composta por várias séries” (p. 14), que precisam ser atendidas separadamente, desconsiderando, assim, a heterogeneidade característica desse regime. Além disso, constatou-se, também, o não cumprimento da carga horária escolar e a não organização do ensino de acordo com a multisseriação.

Discutindo a problemática das classes multisseriadas, porém sob a perspectiva positiva apontada pelos professores investigados (através de entrevista), destacamos o estudo de Meireles (2012) que, metaforizando o conto de Guimarães Rosa “A terceira margem do rio”4

, buscou refletir sobre as especificidades do trabalho docente (práticas desenvolvidas em condições adversas de trabalho) em classes multisseriadas de escolas rurais, situadas no sertão da Bahia.

A referida autora obteve como resultados que todas as professoras buscavam desenvolver estratégias positivas (trabalhos coletivos, interações entre os colegas, compartilhamentos de saberes e experiências, etc.) que possibilitassem a contextualização da realidade da vida rural e uma aprendizagem significativa para os

4 Este conto pode ser encontrado na obra literária “Primeiras estórias”, e, também, no site de buscas

alunos, de modo que fosse criado um ambiente educativo em prol da recuperação, formação e fortalecimento dos valores humanos (valorização do meio em que vivem).

A autora conclui que apesar dos estereótipos que marcam as classes multisseriadas, “outros olhares parecem apontar para uma nova visão”, defendendo de modo simbólico que o “espaço de exceção, expresso pela margem, e a inserção do insólito, na utopia, no entrelugar, (é) indicado pela referência a uma terceira margem que inclui, agrega e estabelece outros modos de conceber a multisseriação” (p. 11, grifo nosso).