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1 HETEROGENEIDADE: PARA INÍCIO DE CONVERSA

1.2 Heterogeneidade: algumas estratégias dos professores

Segundo os autores citados nos tópicos anteriores deste capítulo, os professores concebem diferentes modos para caracterizar a heterogeneidade e, geralmente, manifestam dificuldades para desenvolver ações específicas que atendam a todos indistintamente.

Promover junto aos professores a compreensão de que a heterogeneidade é muito mais abrangente do que se imagina, não se restringindo apenas aos aspectos biológicos ou cognitivos, é importante, mas possibilitar meios para que os mesmos consigam desenvolver ações diferenciadas que a contemplem é urgente, pois é na pratica pedagógica que o investimento se efetiva e provoca as mudanças necessárias.

Ao considerarmos a heterogeneidade em sala de aula como uma característica da diversidade dos alunos “[...] diversos em tudo e, também, no nível de competências ou conhecimentos” (DURAN, 2004 apud FETZNER, 2008, p. 14), perguntamos: como desenvolver uma prática que envolva a todos os alunos? Que não deixe ninguém de fora?

Uma alternativa viável proposta por Duran (2006) é a “tutoría entre iguales” (tutoria entre iguais), um modo de interação entre pares (alunos, familiares ou professores) que aprendem a partir de uma interação estruturada. Assim, o professor elege um ou mais alunos para que possam mediar as situações de aprendizagem junto aos demais colegas, promovendo situações de aprendizagem mútua, pois “enseñar es la mejor manera de aprender” (ensinar é a melhor maneira de aprender) (pp. 153-154).

Apesar de reconhecermos a potencialidade de estratégias desse tipo, é importante ressaltar que também ela respalda-se na ideia de que alguns alunos detêm os saberes a serem ensinados aos que não os detém, e não na perspectiva de que existem diferentes saberes e que, em alguns momentos alguns alunos poderiam ser mediadores mais experientes quanto a determinados conhecimentos, e em outros momentos, outros alunos ocupariam tal lugar, ou que em algumas situações a diversidade de saberes seria tão grande que não haveria como estipular hierarquização entre os estudantes.

Assim como Perrenoud (2000), afirmamos que é (humanamente) impossível que o professor queira estabelecer uma relação de dualidade com cada aluno, numa espécie de atendimento particularizado, principalmente se considerarmos que dentro de uma sala de aula o professor lida com uma média de 25 a 30 alunos na turma.

Nesse sentido, uma das competências para administrar a heterogeneidade nas turmas, pontuadas por Perrenoud (2000), consiste numa “pedagogia diferenciada”, ou seja, criar variados mecanismos de interação que não se fixem apenas na figura do professor como único interventor/mediador. E mais, desenvolver “trabalho por planos semanais, atribuição de tarefas autocorretivas e o emprego de softwares interativos” (p. 58), o que pode ser muito eficaz.

Uma estratégia que também vem dando certo nas turmas heterogêneas são os agrupamentos dos alunos nas salas. Autores como Leal (2005) e Morais e Leite (2012) afirmam que os professores, além de propor formas diferenciadas de agrupamento, devem levar em conta, dentre outros aspectos: os conhecimentos em níveis mais aproximados dos alunos que irão compor tal grupo; monitorar as interações entre os alunos; ajustar o ensino às necessidades dos alunos, “ofertando” atividades mais elaboradas, que exijam níveis de raciocínio mais “sofisticados”, isto é, que não sejam de fácil resolução; diversificar não só as atividades, mas sua forma de organização; enfim, saber atuar com todos ao mesmo tempo.

Donadon (2012) entrevistou e observou aulas de três professores de turmas do Ensino Fundamental II (do 6º ao 9º ano) com o intuito de relacionar as práticas observadas e os posicionamentos teóricos dos professores, frente à heterogeneidade de suas turmas. Como principal resultado, a autora constatou que os professores têm dificuldades em aceitar a heterogeneidade nas suas turmas porque ainda permanece um modelo idealizado de aluno, relacionado às questões comportamentais (alunos:

mais calmos, quietos, disciplinados), e de aprendizagem (priorizando os que tiram notas mais altas, participam das aulas, fazem todas as tarefas).

Para aprofundarmos tal debate e rompermos com a ideia de que o processo pedagógico teria como ideal superar a heterogeneidade e sim valorizá-la, é necessário que se mude a concepção de que há uma linearidade no processo de aprendizagem, embora possamos reconhecer que há conhecimentos que antecedam outros conhecimentos e que há mediadores com papéis diferenciados, que organizam as situações escolares na busca de garantir que tais conhecimentos sejam construídos pelos alunos. No processo pedagógico, tal temática remete à discussão sobre mediação docente.

Em se tratando de mediação e interação, resgatamos os postulados de Vigotski, psicólogo soviético que trouxe grandes contribuições para a psicologia e a educação, ao trazer à tona suas ideias sobre como se dão as relações entre linguagem, pensamento, aprendizagem e desenvolvimento intelectual.

Vigotski (2007) afirmava que a aprendizagem e o desenvolvimento infantil mantém uma relação de interdependência desde o seu nascimento, no entanto, são processos distintos já que o desenvolvimento progride de forma mais lenta e antes do aprendizado (sua hipótese supunha que um convertia-se no outro). E que para compreendermos como de fato ocorrem essas relações é necessário determinar o nível de desenvolvimento real (capacidade que a criança tem de resolver problemas individualmente) e o nível de desenvolvimento potencial (capacidade que a criança tem de resolver problemas com a orientação de um adulto ou um par mais capacitado). A distância entre esses dois níveis de desenvolvimento (real e potencial) constituem o que o teórico denominou de Zone of Proximal Development (Zona de Desenvolvimento Proximal - ZDP).

Segundo o autor, a ZDP possibilita que seja traçado o estágio de desenvolvimento da criança (tanto do que já foi alcançado quanto do que está em amadurecimento), assim, “(...) aquilo que é a zona de desenvolvimento proximal hoje será o nível de desenvolvimento real amanhã - ou seja, aquilo que uma criança pode fazer com assistência hoje, ela será capaz de fazer sozinha amanhã” (2007, p. 98). Significa dizer que “com o auxílio de uma outra pessoa, toda criança pode fazer mais do que faria sozinha – ainda que se restringindo aos limites estabelecidos pelo grau de seu desenvolvimento” (1998, p. 129).

Trazendo para o contexto escolar, quando o professor atua como agente mediador entre a criança e o conhecimento, ele cria condições que potencializam a apropriação de conhecimentos que ele elege como foco de aprendizagem no seu planejamento didático. No entanto, ele precisa ter diferentes estratégias de mediação, considerando os diferentes níveis de conhecimento das crianças. Assim, se o seu objetivo é que as crianças compreendam o sistema de escrita alfabética, por exemplo, ele vai favorecer condições para que aqueles que ainda não dominam tal conteúdo possam se apropriar dele.

Nesse sentido, a intervenção pedagógica do professor junto aos alunos, no que diz respeito às aprendizagens do SEA, pode facilitar o tratamento da heterogeneidade da turma quanto ao conhecimento, pois ele pode, por exemplo, garantir que todos os alunos de sua turma tenham entendido o funcionamento desse sistema e possam a partir daí participar com maior autonomia de diferentes situações em que a escrita esteja presente. Desse modo, o professor tem como objetivo torná-los homogêneos quanto a esse aspecto (domínio do SEA). No entanto, esse professor não acabou com a heterogeneidade em sala de aula, pois os alunos continuarão a ter uma grande variedade de outros conhecimentos e habilidades que os diferenciam entre si, oriundos não só do contexto escolar, como de outras esferas sociais, pois eles têm suas histórias de vida e participam de atividades culturais variadas em seu percurso social.

Com relação à interação, Vigotski defende que a operacionalização dos processos internos de desenvolvimento ocorre apenas na interação das crianças com as pessoas do meio social em que estão inseridas e também na cooperação com seus pares.

Assim, ao propor que os alunos troquem experiências entre si com relação a um determinado conteúdo, por exemplo, (trocas entre os que sabem menos e os que sabem mais tal conteúdo), o professor cria possibilidades para que os conhecimentos sejam internalizados e tornem-se parte da aquisição do desenvolvimento autônomo destes.

Nessa perspectiva, aceitar que os alunos são heterogêneos é fundamental para a escola e para os professores desenvolverem um bom trabalho de alfabetização, pois “(...) se começamos de onde as crianças estão (...), não há necessidade de estabelecermos pré-requisitos nem limites para a aprendizagem (...)”, (BRAGGIO, 1992, p. 62).

Neste capítulo, portanto, buscamos afirmar sobre quais bases a heterogeneidade é concebida neste estudo, embora tenhamos clareza da necessidade de focar as especificidades do objeto de investigação, que serão tratadas no capítulo a seguir.

2 HETEROGENEIDADE E ALFABETIZAÇÃO: CONCEPÇÕES E PRÁTICA