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3. EXPERIÊNCIAS DE CONFORMAÇÃO DE SNIS

3.1. A CONSOLIDAÇÃO DO SNI DA ALEMANHA, NOS SÉCULOS XIX E XX

No que se refere ao processo de consolidação do SNI da Alemanha, nos séculos XIX e XX, a literatura destaca, principalmente, a criação dos laboratórios de pesquisa industrial, as interações entre firmas e universidades e o papel das escolas técnicas na formação da força de trabalho (KECK, 1993; FREEMAN, 1995).

Observa-se que as características peculiares do sistema educacional se devem ao que se descreve como instituições próprias da Alemanha, onde a educação era encarada, desde o século XIX, como necessária ao desenvolvimento socioeconômico do país. Essa importância é construída alicerçada na tecnologia associada à indústria de produção de açúcar de beterraba, do século XVIII, e aos institutos farmacêuticos, do início do século XIX, que geraram o embrião para a indústria de corantes têxteis no país, base do desenvolvimento de sua indústria química (KECK, 1993).

Especificamente sobre o sistema educacional, Keck (1993) demonstra que, durante o século XIX, o país iniciou a formação de um sistema de nível técnico (tanto em termos de ensino médio quanto superior, nos moldes atuais) de padrões elevados e que garantia aos seus acadêmicos alto reconhecimento social. Os engenheiros formados por essa outra divisão do sistema educacional gozavam de reconhecimento semelhante aos diplomados pelo sistema universitário. Boas escolas de gestão e negócios também se consolidaram a partir dessa época. Keck (1993) acrescenta que a necessidade de educação universal para crianças e adolescentes (hoje tida como evidente) foi posta em prática na Alemanha, ainda no século XVIII. A

universalidade da educação e a valorização dos profissionais ligados às atividades tecnológicas e de negócios demonstra a importância do conhecimento formal atribuída por essa sociedade.

Além disso, a universidade humboldtiana, como é chamado o modelo alemão, se caracteriza pela indissociação do ensino e da pesquisa. Essa é uma característica muito importante para a sua relação com as firmas, uma vez que o próprio desenvolvimento do conhecimento e da pesquisa (portanto, da universidade) leva à busca de recursos financeiros e infraestrutura fora do ambiente acadêmico, dada a impossibilidade de a universidade oferecer esses recursos em escala tão avançada (FREEMAN; SOETE, 1974).

É em razão dessas necessidades nas universidades e de novas demandas das firmas alemãs – decorrentes do desenvolvimento das atividades econômicas anteriores - que um conjunto do que seriam diversas novas instituições se estabelece, com a consolidação de novos e intensos fluxos de conhecimento. A partir de determinado ponto, não é possível que a universidade progrida na produção de determinados tipos de conhecimento sem a participação das firmas, pois apenas a disponibilidade de recursos delas pode atender ao aumento de escala que se impõe. Por outro lado, as necessidades das firmas de novas soluções tecnológicas criam o interesse por parte delas na expansão destes mesmos fluxos (MURMANN, 2013).

Essas necessidades de ambos os lados possibilitam o que seriam mudanças institucionais, como, por exemplo, as que se referem à modificação na atribuição de propriedade dos resultados das pesquisas e à relação direta entre acadêmicos e as firmas. Além disso, a trajetória particular do país acaba por possibilitar e fortalecer o que seria considerada como uma outra nova instituição surgida no interior das firmas: a pesquisa e desenvolvimento (P&D) industrial (NELSON, 2002a). Isto é, a criação de um novo modelo organizacional pelas firmas é encarada como uma mudança institucional que resulta das interações acontecidas no SNI, ao mesmo tempo em que possibilita uma nova forma de consolidação para este sistema, dada a sua influência na formação e intensidade das interações que o compõem.

É também nesse contexto que as próprias firmas passaram a influenciar o Estado para que desse apoio financeiro às pesquisas na área da química orgânica, como também desejava a academia (NELSON, 2002a; MURMANN, 2013). Desta forma, o Estado, influenciado pelos interesses de firmas e de acadêmicos, atuou como um fortalecedor das mudanças tecnológicas, alterando leis de propriedade industrial, aumentando o financiamento público de determinadas pesquisas (entre outras medidas) e, por conseguinte, favorecendo os fluxos de conhecimento que se estabeleciam.

Keck (1993) detalha como o desenvolvimento da indústria química alemã é, então, considerado o marco do desenvolvimento da indústria baseada em ciência e como a

consolidação de seu SNI, nos séculos XIX e XX, se baseia principalmente na relação bem- sucedida entre as firmas e o sistema de treinamento e educação - não apenas no que se refere à formação de profissionais, mas também à pesquisa acadêmica orientada. Essa pesquisa orientada para o uso, reforça a importância de ICTs além das universidades. Stokes chama a atenção para o fato de que, desde o final do século XIX, havia, na Alemanha, institutos que se dedicavam a este tipo de pesquisa, que são precursores da Sociedade Max Planck (STOKES, 1997, p.68). Essa Sociedade, criada em 1948 (MAX PLANCK SOCIETY, 2019), e os Institutos Fraunhofer, fundados no ano de 1949 (FRAUNHOFER, 2019), ambos considerados, atualmente, como alguns dos mais importantes institutos de pesquisa do mundo, demonstram como os fluxos de conhecimento, nos quais firmas e ICTs são necessariamente produtores de conhecimento foram se consolidando, nesse SNI, ao longo dos anos.

Conclui-se, desta forma, que esses fluxos de conhecimento, que ocorrem nos dois sentidos, só se desenvolveram devido à imprescindibilidade crescente da aplicação de conhecimento nas atividades econômicas nacionais e da necessidade cada vez maior de investimento financeiro e infraestrutura para o desenvolvimento do conhecimento5. Portanto, o SNI consolida a superação da divisão entre produtores de conhecimento, incluindo-se as firmas - resultando na criação do que seriam instituições relacionadas à interação firmas-ICTs – gerando um ciclo no qual a inovação se mantém como base da competitividade da economia alemã. Salienta-se, ainda, que as firmas alemãs se envolveram ativamente na constituição dos fluxos de conhecimentos necessários ao processo inovativo e participaram ativamente das mudanças tecnológicas e institucionais, que resultaram, inclusive, em um novo modelo organizacional.

Através das políticas públicas, o Estado, por sua vez, assumiu o papel de coordenação de esforços para a difusão das mudanças tecnológicas, atuando a partir das mudanças promovidas pelas firmas em sua interação com as ICTs (KECK, 1993; NELSON, 2002a, MURMANN, 2013). Dessa forma, o Estado, através das políticas públicas, assumiu um papel de apoiador e coordenador e não de responsável direto pelas mudanças tecnológicas.

Em suma, segundo a literatura sobre os SNIs, no caso alemão, a inovação é resultado de um sistema que se conformou de acordo as necessidades das firmas e da academia na produção contínua de conhecimento. Os fluxos de conhecimento formados são resultado da necessária (para ambas as partes) interação entre firmas e academia. As características nacionais, como são tratadas na literatura, dizem respeito às condições particulares envolvendo a atuação das

firmas, das ICTs e do Estado, que resultam na valorização do conhecimento reforçada pela sua importância econômica. Assim, o sistema passa a favorecer a criação e expansão de diversas organizações voltadas para a produção e aplicação de conhecimento, incluindo os Institutos Fraunhofer e as próprias firmas, além de contar com o apoio do Estado neste objetivo.