• Nenhum resultado encontrado

3. EXPERIÊNCIAS DE CONFORMAÇÃO DE SNIS

3.2. A CONSOLIDAÇÃO DO SNI DOS ESTADOS UNIDOS, NO SÉCULO XX

Mowery e Rosenberg (1993) iniciam a descrição do SNI norte-americano destacando “a sua enorme escala – durante uma fração substancial da era pós-guerra, o investimento nacional em P&D dos Estados Unidos era maior do que aquele de todas as nações da OCDE somados” (MOWERY, ROSENBERG 1993, p. 29, tradução nossa). Os autores dividem a análise do SNI em antes e depois de 1945.

No período anterior a 1945, Mowery e Rosenberg (1993) e Nelson (2002a) destacam a importância da grande escala no que se refere ao tamanho do mercado interno como impulsionador e viabilizador do desenvolvimento de novos métodos de produção em massa e o consequente surgimento de uma nova forma organizacional: a empresa multiproduto gigante. O mercado interno como possibilitador da expansão industrial denota como o consumo interno de produtos industriais se caracterizou como uma necessidade dessa sociedade, ao mesmo tempo em que só pôde se estabelecer a partir da existência de uma base tecnológica que viabilizou esse consumo massificado e resultou também em uma nova forma organizacional

Além disso, a empresa multiproduto gigante, que seria também uma nova instituição, é consequência da criação de novas tecnologias, mas ao mesmo tempo se relaciona ao que seriam outras novidades institucionais que envolvem, por exemplo, a criação de centros para a formação profissional de gestores e a maior disponibilidade de capital para financiamento de suas atividades (NELSON, 2002a). A partir desse momento também, a incorporação de conhecimento passa a ser vista como essencial para as atividades econômicas, em especial aquelas das novas corporações. Contudo, a forma como eram encarados, nesse sistema, a produção de conhecimento e seus fluxos transformou-se acentuadamente durante o processo de consolidação desse SNI, como veremos adiante.

No período após o fim da Segunda Guerra Mundial, o crescimento do financiamento público de pesquisa foi extraordinário, como destacam Mowery e Rosenberg (1993), em virtude da importância que se atribuía a pesquisa básica para o desenvolvimento de tecnologias, em especial as do setor de defesa (STOKES, 1997). Mas, a utilização da chamada “big science” para a resolução de problemas industriais em diversos setores também esteve na origem das

modificações nesse SNI. Por conseguinte, além do mercado interno, a enorme escala do SNI norte-americano é destacada também em termos da quantidade de conhecimento científico gerado no sistema como um todo, inclusive pelas firmas, e pela valorização desse conhecimento como caminho para a superioridade militar e econômica.

No que diz respeito à distribuição do financiamento de pesquisa, ao longo do século XX, o modelo norte-americano foi se modificando de forma substancial. Por várias décadas, predominou o modelo linear de inovação. Esse modelo - cuja descrição e prescrição podem ser encontradas no famoso Relatório “Science: the endless frontier”6, que teve como uma de suas

consequências a criação da National Science Foundation (NSF), a agência norte-americana de financiamento público para a pesquisa científica - disseminava a visão de que a independência da ciência básica, cujo prestígio estava em alta devido a sua importância no período das Guerras, não deveria sofrer interferências de nenhuma ordem e, portanto, a maior parte dos fundos públicos para pesquisa passou a ser destinada a organizações autônomas (MOWERY; ROSENBERG, 1993; STOKES, 1997). O modelo apoiava a ideia – posteriormente ultrapassada, pois desconsiderava que as firmas também são criadoras de conhecimento - de que a ciência básica seria necessariamente o ponto de partida para o desenvolvimento das inovações tecnológicas.

Entretanto, a modificação das necessidades que se impunham em termos de acumulação e aplicação de conhecimento nas firmas provocaram o que seriam novas mudanças institucionais. Com o passar do tempo, a significativa maior parte do montante do financiamento público federal passou a ser destinada a empresas privadas que faziam parte de programas orientados para missões específicas. Além disso, as firmas também passaram a se beneficiar das compras públicas de produtos militares no período da Guerra Fria, como forma de ampliar o financiamento de suas atividades (ROSENBERG, 1990; MOWERY; ROSENBERG, 1993).

Porém, novas mudanças se aproximavam e, já nos anos 1990, os programas orientados para missões - que concentravam muitos recursos em poucas firmas - começaram a ser percebidos como ineficazes, desencadeando a crise do modelo linear de inovação e a mudança do padrão da distribuição de recursos para uma forma mais descentralizada (FURTADO, 2005). É possível concluir, então, que a trajetória de mudanças levou à consolidação de um sistema no qual as demandas originadas no desenvolvimento de novas tecnologias levaram às mudanças

6 Esse Relatório é também conhecido como Relatório Bush, uma vez que Vannevar Bush era o diretor da agência governamental de pesquisa civil, à época (STOKES, 1997).

dos modelos governamentais de distribuição de recursos. O governo norte-americano assume o papel de coordenador (FURTADO, 2005) e não de interventor no SNI.

Ainda no que diz respeito ao financiamento das atividades de produção e aplicação de conhecimento nas atividades econômicas, é preciso salientar a importância do que seria outra mudança institucional e que se associa às necessidades crescentes das firmas e que não depende do poder público: o desenvolvimento do mercado de capitais. Mowery e Rosenberg (1993) destacam que o financiamento pelas firmas de suas próprias atividades de P&D – e a fração de P&D realizada no país com financiamento privado - é um traço importante do SNI norte- americano. Os autores afirmam que a existência de pequenas firmas dedicadas ao desenvolvimento de inovações – as startups – está relacionada justamente à disponibilidade de capital para as atividades de inovação e ao desenvolvimento de um sistema de financiamento privado dessas atividades.

Esse sistema de financiamento privado – o mercado de capitais - está relacionado diretamente com as crescentes demandas de criação e aplicação de conhecimento nas firmas. Observa-se, então, que, simultaneamente ao desenvolvimento característico do sistema de financiamento público - que não dá conta e não pretende atender todas as necessidades das firmas -, as mudanças tecnológicas também favorecem a criação de um novo modelo organizacional, ou seja, outra nova instituição gestada pela atividade econômica: as startups.

Ainda segundo Mowery e Rosenberg (1993), no que diz respeito às universidades, elas se expandiram em número no período, tendo recebido recursos públicos para essa expansão e sido estimuladas a realizar pesquisa tanto quanto a cumprir seu papel na formação educacional. No caso dos Estados Unidos, a pesquisa acadêmica é intimamente ligada à educação de nível superior (MOWERY; ROSENBERG, 1993, p. 48). Nelson (1988b, p. 320) chama atenção para o fato de que, no país, “a ciência e engenharia nas universidades e nossa [dos Estados Unidos] indústria baseada em ciência cresceram juntas”. Essa relação próxima acontece, como no caso alemão, em virtude na necessidade também da academia de acessar recursos crescentes para o desenvolvimento do conhecimento. A partir de determinada escala não é possível se manter com a utilização de recursos financeiros e de infraestrutura apenas das universidades (ROSENBERG, 1982; MANSFIELD; LEE, 1996). A interação entre universidades e firmas nasce, portanto, de demandas de ambas no decorrer dos anos.

Entretanto, como no caso alemão, é preciso ressaltar o papel importantíssimo de outras ICTs. No caso dos Estados Unidos, Jaffe e outros (1998) listavam cerca de 700 laboratórios federais, de natureza e modelos de administração muito variados, entre eles estão os National Institutes of Health (NIH) e centros da National Aeronautics and Space Administration

(NASA), por exemplo. Os autores acentuam que os laboratórios federais, que em alguns casos são administrados por firmas privadas, recebiam cerca de 41% dos investimentos em P&D do governo federal em contraposição aos 14% recebidos por universidades, no ano de 1995 (JAFFE et al., 1998). Esses laboratórios compõem importantes fluxos de conhecimento e, ainda que recebam recursos de natureza pública, estão intimamente ligados às firmas, que se envolvem na produção conjunta de conhecimento e sua aplicação.

No SNI norte-americano, as firmas, a partir das mudanças tecnológicas e institucionais, especialmente dos modelos organizacionais, constituíram-se cada vez mais próximas das universidades e outras ICTs. Os fluxos de conhecimento se intensificaram ao longo do tempo e, principalmente, se consolidaram em ambos os sentidos. As necessidades das firmas eram atendidas pelas ICTs, que, simultaneamente, se estabeleceram como instituições de pesquisa ou de pesquisa conjugada com o ensino, capacitando profissionais para atuação nas firmas e gerando conhecimento.

Conclui-se também que o Estado atuou como coordenador de esforços, elaborando e implementando políticas públicas que consideraram as mudanças promovidas pelas firmas. Além disso, a participação ativa das firmas na consolidação do SNI pode ser percebida na criação dos novos modelos organizacionais e no aumento constante da proporção do financiamento privado da pesquisa. As próprias firmas impulsionaram o desenvolvimento de um novo modelo de financiamento, que, associado às necessidades tecnológicas cada vez maiores, se desenvolveu concomitantemente às mudanças no financiamento público (que apesar de importante, não preenche as necessidades do sistema). Nessas condições, se estabeleceu o SNI e a indústria baseada em ciência norte-americanos, que exigem e consolidam fluxos de conhecimento intensos e variados.

Portanto, é possível dizer que a literatura dos SNIs indica que, também no caso norte- americano, a inovação é resultado de um sistema no qual os fluxos de conhecimento resultam da necessária interação entre firmas e academia (especialmente para os casos da corporação multiproduto gigante, inicialmente, quanto das startups, em momento posterior). No caso dos EUA, contudo, outra questão importante, ao longo do processo de consolidação do sistema, é que a valorização do conhecimento também se relaciona à busca pela superioridade militar, além da econômica, fazendo com que o Estado buscasse reforçar (por mais esse motivo), os fluxos de conhecimento anteriormente formados, garantindo e impulsionando a interação já promovida pelos próprios produtores de conhecimento (firmas e ICTs). Dessa forma, as características nacionais envolveriam essa interação, seu reflexo nas diversas cadeias produtivas nacionais e ainda a questão militar.