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4. A RELAÇÃO ENTRE TECNOLOGIA E INSTITUIÇÕES

4.1. ESTUDOS SOBRE FIRMAS, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO

Entender a relação entre conhecimento e desenvolvimento, como propõe a abordagem dos SNIs, implica compreender como a própria ciência econômica modificou-se ao longo do tempo e dividiu-se em diferentes correntes para tratar de temas como a firma, a tecnologia e a inovação. Para a Economia Clássica, a firma era responsável pela criação de valor através da

relação entre os fatores de produção capital e trabalho e, portanto, o problema econômico deveria ser resolvido de acordo com a melhor alocação possível desses fatores. O progresso técnico era impulsionado pela necessidade de redução dos custos de produção, essencialmente, através da substituição do trabalho humano pelo trabalho das máquinas (SMITH, 1776). A firma se caracterizava como uma função de produção, que se alterava justamente pela mudança tecnológica. Além disso, a riqueza das nações estaria ligada à geração de riqueza pela agregação de valor, realizada pelas firmas (SMITH, 1776).

Já na transição para a Economia Neoclássica, o mercado ganha papel de destaque e a grande questão de interesse passar a ser a relação entre oferta e demanda. A existência da firma se justifica pelo fato de que ela tem conhecimento suficiente para produzir certos produtos com uma combinação de fatores mais eficiente do que os comprar de outrem. É o mecanismo de preços (mercado) que regula a produção e a tecnologia é considerada como um fator exógeno à firma e disponível para o conjunto delas. A firma funciona essencialmente como uma tomadora de preços no mercado (WALRAS, 1986). Sendo assim, o equilíbrio econômico é apontado como resultado do funcionamento do mecanismo de preços – que organiza os recursos para a produção (COASE, 1937) e leva a sua alocação ótima, resolvendo o problema econômico.

Apesar de considerar que é o deslocamento da curva de oferta - através do progresso técnico - que permitiria alcançar preços maiores para os produtos com uma produção em menor quantidade e com uma demanda menor, a teoria neoclássica não esclarece como esse progresso ocorre. O modelo de Solow, ao incluir o progresso técnico entre as variáveis que explicam o comportamento das economias nacionais, em especial a produtividade do trabalho e do capital, representou um avanço para as justificativas para as diferenças entre os países, mas manteve esse progresso como um dado exógeno (RUFFONI; ZAWISLAK; LACERDA, 2004). Isto é, até esse momento, a tecnologia é mantida como uma “caixa-preta” e a mudança tecnológica como uma espécie de “Deus ex machina” (ROSENBERG, 1982).

Questionando a visão da teoria neoclássica, Schumpeter recupera a importância da firma e a discussão da criação de valor da Economia Clássica. O que importa é a alteração da função de produção, possibilitada pela mudança tecnológica, pela inovação. Sem ela, não haveria lucro nem desenvolvimento. A rotina da economia não é a busca do equilíbrio e sim a busca da mudança permanente e da inovação (novas combinações produtivas), que permite a geração de lucros extraordinários, nos quais se fundamenta a concorrência e o monopólio (SCHUMPETER, 1912; 1942).

Esse entendimento sobre o fenômeno do desenvolvimento econômico vai de encontro aos pressupostos da Economia Neoclássica. Schumpeter (1942) argumentava que o capitalismo não é estacionário, pelo contrário, está em permanente mudança. E que haveria um processo de mutação industrial – o processo de destruição criativa – que seria o “fato essencial do capitalismo” e que “incessantemente revoluciona a estrutura econômica a partir de dentro, incessantemente destruindo a velha, incessantemente construindo uma nova” (SCHUMPETER, 1942, p.113). As firmas são diferentes e a economia é movida pela busca da melhor solução ainda desconhecida e que depende do progresso técnico para oferecer maior valor. O desenvolvimento é resultado desse movimento.

Nelson e Winter (1982) deram continuidade às proposições de Schumpeter e à crítica à ortodoxia econômica, sendo conhecidos como os principais representantes da escola evolucionária neoschumpeteriana. Questionando a visão de equilíbrio e de racionalidade maximizadora, substituída pela racionalidade limitada, construíram uma teoria evolucionária que dá destaque à mudança econômica por meio das inovações. O objetivo dos autores era desenvolver uma “teoria evolucionária das capacidades e do comportamento das empresas que operam em um ambiente de mercado” (NELSON; WINTER, 1982, p. 17). Os autores propõem uma analogia com a teoria evolucionária da biologia, se aproximando dos conceitos de mutação, replicação e seleção.

A teoria evolucionária de Nelson e Winter (1982) se baseia especialmente nos mecanismos de busca e de seleção - que se referem ao processo de interação entre as empresas e o mercado. O mecanismo de busca é associado às rotinas das firmas. Segundo os autores, as rotinas são “todos os padrões comportamentais regulares e previsíveis das firmas” e podem ser consideradas como uma analogia aos genes (da biologia), uma vez que “são características persistentes do organismo e determinam seu comportamento possível (...) são hereditárias no sentido de que os organismos de amanhã gerados pelos de hoje (...) têm muitas das mesmas características e são selecionáveis no sentido de que organismos com certas rotinas podem sair- se melhor do que outros, e se assim for, sua importância relativa na população (no ramo de atividades) vai aumentando ao longo do tempo” (NELSON; WINTER, 1982, p. 32-33). As firmas são tratadas, então, como coleções de rotinas.

Sendo as rotinas análogas aos genes, o mecanismo de busca seria análogo ao de mutação. A busca daria origem a modificações de rotinas já existentes ou rotinas completamente novas. Esse mecanismo envolveria regras de decisão ou rotinas de nível hierárquico superior cujo objetivo seria alterar ou criar outras rotinas (caracterizando as estratégias das empresas). A mutação ocorreria, em parte, de acordo com alguma

intencionalidade, ainda que haja resultados estocásticos envolvidos no processo. A inovação seria o resultado dessa busca. E o ganho de conhecimento, gerado através da pesquisa e desenvolvimento (P&D), seria o tipo de busca mais importante, gerando diferenciação e variedade (NELSON; WINTER, 1982).

Assim como na biologia, a busca também depende, em parte, das rotinas previamente existentes e se caracteriza pela irreversibilidade, por estar diretamente relacionada à tecnologia anterior e por envolver incerteza quanto aos seus resultados (NELSON; WINTER, 1982). A tecnologia e a mudança tecnológica deixam de ser consideradas como fatores exógenos e passam a ser tratadas como o resultado da aplicação de conhecimento nas firmas e da seleção, pelo mercado, das firmas com estratégias e rotinas mais lucrativas. Ou melhor, daquelas que oferecem a melhor solução para o problema econômico.

A partir dos estudos de Schumpeter e dos neoschumpeterianos, a firma passa a ser encarada definitivamente como o agente econômico que transforma conhecimento em aplicação, em tecnologia, em soluções. Mas, o que estabelece as soluções que precisam ser encontradas pelas firmas? Ou, ainda, o que conforma os mercados, ou seja, as soluções selecionadas?

Embora a capacidade de se modificar determine a sobrevivência da firma no mercado - que seleciona as mais adaptadas - o mercado também é modificado pela firma. Dosi (1984) argumenta, então, que não só a estrutura do mercado não é uma variável independente, como é “no máximo, uma função da capacidade inovativa passada, das oportunidades tecnológicas passadas e dos graus de apropriabilidade da inovação passados. Em outras palavras, a estrutura de mercado deve ser tratada como uma variável endógena” (DOSI, 1984, p. 93, tradução nossa). Portanto, a criação de conhecimento e sua aplicação dependem de um contexto que é função de conhecimento e aplicações anteriores.

Outros autores se aprofundaram nas relações entre tecnologia, inovação e desenvolvimento. Bell e Pavitt (1993), por exemplo, relacionaram os diferentes níveis de desenvolvimento dos países com as diferenças entre as capacidades tecnológicas do conjunto de suas firmas. Essa capacidade de criar tecnologias (diferente da capacidade produtiva, que envolve apenas saber usar tecnologias) tem por base a acumulação tecnológica ou o aprendizado tecnológico. Definido pelos autores como “qualquer processo através do qual os recursos para gerar ou gerir mudança tecnológica (capacidade tecnológica) são criados ou fortalecidos” (BELL; PAVITT, 1993, p. 164, tradução nossa), é o aprendizado tecnológico que levaria à mudança de patamar de país “copiador ou utilizador de tecnologias” para um país inovador e, portanto, de país em desenvolvimento para país desenvolvido. O papel das

instituições é analisado principalmente a partir das diferenças nas políticas públicas para estímulo à criação de conhecimento e sua aplicação na atividade industrial.

Também é o caso de Lall (2000), que, ao se interessar pela perspectiva de países em desenvolvimento, argumenta que, para além das firmas analisadas individualmente, existe uma capacidade tecnológica nacional. E que, embora esta capacidade tenha como elemento formador as capacidades individuais das firmas, ela não se resume a uma soma dessas capacidades. O autor considera que o governo deve estabelecer instituições - que considera em termos restritos como “entes que dão apoio à tecnologia industrial” (LALL, 2000, p. 29, tradução nossa) – para interferir no aprendizado tecnológico em nível das firmas. Essa dinâmica é vista, pelo autor, em termos evolucionários, como salienta Nelson (2008b).

O conceito de paradigma tecnológico de Dosi é útil para entender a relação entre a tecnologia e as necessidades a serem supridas em dado contexto. Nas palavras do autor, o paradigma tecnológico pode ser definido como “um ‘panorama’, um conjunto de procedimentos, a definição dos problemas ‘relevantes’ e do conhecimento específico relacionado a sua solução” (DOSI, 1984, p. 148, tradução nossa). É esse paradigma que define a própria noção do progresso e a trajetória tecnológica a partir do avanço da tecnologia que o caracteriza (DOSI, 1984). Como o autor salienta, a definição do paradigma depende das instituições – tomadas em sentido amplo, incluindo agências governamentais e os interesses e as estruturas das firmas, por exemplo -, que influenciam na definição do conhecimento e das soluções relevantes. As firmas competem entre si com as diferentes possibilidades de soluções tecnológicas dentro de uma trajetória normal, quando se mantêm no caminho “natural” dentro de um mesmo paradigma. Dessa forma, as instituições definem o paradigma vigente. Mas, da mesma forma, definem - associadas à mudança tecnológica - a mudança do paradigma.

Freeman e Perez (1988), por sua vez, sugerem a noção de paradigma tecnoeconômico para caracterizar essas relações de forma ainda mais abrangente do que a proposta de Dosi, uma vez que consideram que “as mudanças envolvidas vão além de trajetórias de engenharia específicas para tecnologias de produto e processo e afetam a estrutura de custos dos insumos e as condições de produção e distribuição ao longo do sistema" (FREEMAN; PEREZ, 1988, p. 47, tradução nossa). Ao enumerar todos os elementos envolvidos na caracterização de um paradigma tecnoeconômico, Freeman e Perez chamam atenção para o fato de que uma mudança nesse paradigma envolve uma mudança econômica estrutural tão profunda que não pode acontecer sem que haja transformação no framework social e institucional, que os autores consideram depender de mudanças políticas e sociais decorrentes de um “processo de busca,

experimentação e adaptação política” e que, portanto, associam principalmente a mecanismos regulatórios (FREEMAN; PEREZ, 1988, p. 59, tradução nossa).

É a partir do desenvolvimento dessas ideias que, ao longo das últimas décadas, Nelson tem defendido a importância da construção de uma ciência evolucionária que explique a dinâmica do progresso tecnológico, objeto de interesse da corrente evolucionária neoschumpeteriana, mas que também compreenda a relação desse progresso com as instituições e a mudança institucional, objeto de interesse da economia institucional (NELSON, 1995, 2002a, 2002b, 2008a, 2008b; NELSON; SAMPAT, 2001; NELSON; WINTER, 2002).

As ideias do autor sobre a coevolução de tecnologia e instituições - apoiadas especialmente em proposições como as de Freeman e Perez (1988) e Freeman e Louçã (2001) – estão embasadas, justamente, na proposta de que as instituições possibilitam ou restringem a criação e difusão de novas tecnologias, uma vez que compõem as estruturas (ou ambientes) institucionais que moldam as condições para a sua criação. Nelson (2002a) argumenta que esse processo de coevolução explica o funcionamento do SNI, que pressupõe mudanças institucionais simultâneas às mudanças tecnológicas.

Entretanto, embora defenda as “instituições” como parte essencial da economia evolucionária, Nelson também argumenta que muito da dificuldade na sua introdução nas discussões sobre a dinâmica tecnológica e crescimento econômico se dá em razão da falta de uniformidade nas proposições e utilização do conceito de instituições (NELSON, 1995, NELSON; SAMPAT, 2001, NELSON, 2002a). Visando justamente conferir uma certa uniformidade no tratamento dado às instituições na literatura que trata de mudança tecnológica e econômica, Nelson e Sampat (2001) sugerem a utilização do conceito de “tecnologias sociais”10, proposto a partir do conceito de rotinas (já mencionado nessa seção) tratado como

unificador e apropriado para a análise das instituições nos estudos de SNIs, fazendo referência direta ao conceito vebleniano de instituições: hábitos comuns de ação e de pensamento11.

Considerando-se as características das rotinas das firmas – tratadas como conjuntos “anônimos” de procedimentos (como “receitas”), que geram resultados previsíveis e especificáveis e são realizados de maneira quase automática -, propõe-se que o conceito é

10 Salienta-se que a definição de Nelson de tecnologias sociais como parte das rotinas das firmas não se relaciona com o conceito mais difundido atualmente de “tecnologias sociais”. Esse termo ganhou novas acepções e se refere também à discussão sobre inovações sociais, que não são objeto desta tese. Um exemplo de definição de tecnologias sociais nesse outro sentido é o de: “produtos, técnicas ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social " (FBB, 2019). 11 A definição de rotina como uma “coleção de procedimentos que, tomados em conjunto, geram um resultado previsível e especificável” (NELSON, 2002, p. 267, tradução nossa) é compatível com as definições de instituições como hábitos, costumes, regras e leis - como encontradas na literatura da economia institucional (como, por exemplo, nos trabalhos de Hodgson, 2006, e North, 1990, apenas para citar alguns).

apropriado para abranger tecnologias físicas e tecnologias sociais, sendo que as primeiras se referem a “qualquer divisão do trabalho”, enquanto as últimas envolvem “uma divisão do trabalho mais um modo de coordenação” (NELSON; SAMPAT, 2001, p. 44, tradução nossa). A definição de “tecnologias sociais” proposta por Nelson e Sampat (2001) se relaciona com o seu entendimento de que, em essência, as “instituições influenciam, ou definem, as formas como os atores econômicos fazem as coisas em contextos envolvendo a interação humana” (NELSON; SAMPAT, 2001, p. 39, tradução nossa).

As atividades envolvidas nas tecnologias físicas incluem os “procedimentos que precisam ser realizados para obter o resultado desejado”, mas são as tecnologias sociais que determinam o “como” esses procedimentos se relacionam e são coordenados, quando envolvem a interação de diversos atores (NELSON, 2008a, p. 3, tradução nossa). De acordo com Nelson (2008a), é uma questão de ampliar a noção de atividade econômica para além da descrição dos passos para a sua realização, mas também para o “como” esses passos são determinados e coordenados diante da multiplicidade de atores envolvidos.

As tecnologias sociais seriam associadas, então, às “estruturas comportamentais (e organizacionais)”, que refletem um ambiente institucional mais amplo – que constituiria, por sua vez, as forças que as moldam (NELSON; SAMPAT, 2001, p. 41, tradução nossa). As tecnologias sociais de interesse são aquelas que se revelam padronizadas (sempre com algum pequeno grau de liberdade) na atividade econômica - as tecnologias sociais predominantes. Os autores entendem que esta visão permite conciliar diversas propostas de definições de instituições, como, por exemplo, as de Veblen e North, uma vez que ela permitiria abarcar uma amplitude de elementos que explicariam a predominância de certas formas de fazer as coisas ou de interação entre atores econômicos, isto é, os mecanismos de ação coletiva que interessam à economia, em sentido mais amplo (NELSON; SAMPAT, 2001).

Nas palavras de Nelson, “as tecnologias sociais que são amplamente utilizadas numa economia são possibilitadas e limitadas por coisas como leis, normas, expectativas, estruturas e mecanismos de governança, modos habituais de organizar e transacionar” (NELSON, 2008a, p. 3, tradução nossa), ou seja, por coisas que se consideram como “instituições” em sentido amplo. Ainda de acordo com Nelson, “novas tecnologias sociais, novas ‘instituições’, frequentemente surgem como mudanças nos modos de interação – novas formas de organizar o trabalho, novos tipos de mercado, novas leis, novas formas de ação coletiva – que são necessárias à medida que novas tecnologias ganham uso econômico. Por sua vez, a estrutura institucional em qualquer momento tem um efeito profundo e reflete nas tecnologias que estão em uso e sendo desenvolvidas” (NELSON, 2002a, p. 269, tradução nossa).

Logo, conclui-se, a partir dessa discussão, que as instituições possibilitam e limitam as tecnologias existentes e a mudança tecnológica, uma vez que determinam o que seria o “resultado desejado” quando da criação da tecnologia e, portanto, do que a sociedade (e as firmas, em decorrência) identificam como necessidades ou problemas a serem solucionados nesse ambiente socioeconômico. E, por sua vez, são as mudanças nessas instituições - provocadas pela nova tecnologia criadas pelas firmas - que suportam as mudanças da tecnologia que se torna predominante. Essa seria uma coevolução no sentido de que a evolução da tecnologia interfere na evolução das instituições e vice-versa.

Portanto, de acordo com o avanço dos estudos que envolvem firmas, tecnologia e inovação, é possível caracterizar como tecnologia, o conjunto de conhecimentos desenvolvidos, articulados e aplicados para um fim qualquer que resolva um dado problema econômico e a relação entre tecnologia e instituições como envolvendo um processo coevolutivo. Conclui-se, também, que o desenvolvimento econômico depende de como esse processo ocorre. Nas palavras de Nelson, “algumas instituições propiciam as condições de fundo sobre as quais o progresso tecnológico pode acontecer e outras passam a existir e são desenvolvidas para dar apoio às novas tecnologias que estão conduzindo o crescimento” (NELSON, 2008a, p. 2, tradução nossa).