• Nenhum resultado encontrado

3. EXPERIÊNCIAS DE CONFORMAÇÃO DE SNIS

3.4. A CONSOLIDAÇÃO DO SNI DA COREIA DO SUL, NO FINAL DO SÉCULO XX

Freeman (2002) apresenta o argumento de que o processo de catching up7 do final do século XX é bastante diferente dos momentos anteriores, já que não pode mais se basear em inovações radicais e parte do conhecimento já existente em outros países. O gap de conhecimento nesse período seria tão avassalador que, para os países ainda em vias de industrialização, seria impossível partir de inovações radicais. Por outro lado, Viotti (1997, apud FREEMAN, 2002), propõe que o aprendizado pode tomar um caráter ativo ou passivo e, no caso da Coreia do Sul, esse aprendizado seria ativo, indicando a compreensão por parte das firmas da necessidade de aplicar mais conhecimento nas suas atividades, levando à constituição de fluxos de conhecimento mais intensos.

Bell e Pavitt (1993) já sugeriam que a especialização e diferenciação crescente na economia exige um investimento em aprendizado - como observado no caso da Coreia do Sul -, que já não depende mais da simples operação e pequenas melhorias da tecnologia existente. A relação próxima entre o empresariado e o Estado é destacada como ainda mais forte do que no caso japonês e o sucesso das políticas públicas dependia também da parceria e da coesão dos grupos empresariais (EVANS, 2004). No mesmo sentido, Kim (2005) é taxativo ao dizer que “uma das características mais notáveis do processo de industrialização da Coreia do Sul

reside no governo forte e em seu papel dirigente” (KIM, 2005, p. 46, tradução nossa), ao mesmo tempo em que argumenta que as firmas foram essenciais no processo, atuando como “motores”. Assim como acontecia no Japão, Kim (2005) destaca a importância fundamental da centralização das decisões num corpo burocrático extremamente capaz para a consolidação do SNI coreano.

Analisando as diferenças entre os países de industrialização mais recente, Bell e Pavitt (1993) mencionam a Coreia do Sul como um caso em que houve uma mudança de um padrão intensivo em mão-de-obra para intensivo em tecnologia, de forma relativamente rápida. Os autores explicam as mudanças em termos de alguns elementos essenciais. O primeiro é a acumulação tecnológica dentro das firmas: a estratégia inicial de replicação de tecnologias modificou-se para incluir uma mistura de atividades de imitação e inovação, envolvendo a acumulação de capacidades relacionadas à engenharia, mas também o aumento da P&D financiada pelas firmas e o aumento dos fluxos de trabalhadores especializados com a repatriação daqueles com experiências fora do país (BELL; PAVITT, 1993).

A impressionante inversão da proporção entre P&D de responsabilidade de organizações públicas e das firmas (20% / 80%), entre os anos de 1970 e 1990, também aparece relacionada ao fato de que as organizações públicas – ICTs - entendiam que seu papel principal se referia ao aprendizado sobre a tecnologia importada (e não apenas na geração de conhecimento radicalmente novo). Essas ICTs eram institutos de P&D e não universidades, que tiveram papel inexpressivo na pesquisa inicialmente. No caso das firmas, embora não realizassem atividades de P&D em sentido estrito no primeiro momento, passaram a executar intensamente atividades de engenharia, que possibilitaram a criação da sua capacidade tecnológica (BELL; PAVITT, 1993).

Kim (2005) destaca essa mudança, afirmando que, na década de 1970, as políticas públicas incentivavam a exportação de produtos que imitavam produtos estrangeiros e as firmas passaram a usar a engenharia reversa para aprender a fazê-los. Isto é, houve um redirecionamento das firmas no que diz respeito às demandas a serem atendidas e as soluções a serem oferecidas, que funcionou como impulsionador da criação de novas tecnologias, assim como houve no Japão. Ao longo das décadas seguintes, as políticas passaram a fortalecer pequenas e médias empresas e não apenas grandes conglomerados que suportavam as indústrias de base, incentivando também a P&D industrial (KIM, 2005).

Outro elemento importante, segundo Bell e Pavitt (1993), foi o fortalecimento do sistema de educação e treinamento com ênfase nas engenharias, além do treinamento nas firmas. De acordo com Kim (2005), o incentivo inicial da realização de pesquisa nas

universidades (ocorrido na década de 1970) continuou nas décadas seguintes, mas passou a ser acompanhado da pesquisa realizada em grandes projetos nacionais e as mudanças nas condições de oferta de recursos para investimento privado em P&D. No primeiro momento, Bell e Pavitt (1993) destacam também o papel das próprias firmas como formadoras de recursos humanos qualificados.

A complementaridade entre a importação de tecnologia e a criação local é essencial no processo ocorrido na Coreia do Sul. Bell e Pavitt (1993) salientam as características do processo de transferência de tecnologia, em que os países do Leste da Ásia assumem um papel ativo, demandando a transferência de competências, enviando estudantes (tanto de engenharia quanto de gestão) para outros países e chegando a estabelecer centros de P&D em países desenvolvidos8. O papel das políticas comerciais também é ressaltado, diante da necessidade da expansão do mercado, do aumento da concorrência e do acesso às experiências de outros países.

No caso da Coreia do Sul, portanto, o governo precisou tomar a frente e exercer a função de dirigente no processo de conformação do SNI. Inicialmente, as firmas não atuavam como criadoras de inovações, mas a partir da intervenção governamental foram capazes de desenvolver conhecimento tecnológico com o estímulo à engenharia reversa. Na década de 1990, essa situação foi sendo modificada através do estímulo ao investimento privado em P&D e de políticas de liberalização do comércio exterior, financeira e de proteção à propriedade intelectual, entre outras (KIM, 2005). Por meio delas, os governos fomentaram as mudanças tecnológicas e institucionais.

Com relação às ICTs, no período anterior à proposição das políticas públicas para o fomento da inovação, seu papel era quase limitado à formação de pessoal qualificado, especialmente nas universidades. A situação começou a ser modificada com a importância das ICTs de P&D na aquisição e replicação de tecnologias importadas, do estabelecimento de projetos nacionais, além do aumento do investimento em pesquisa nas universidades, com o estabelecimento de novos fluxos de conhecimento. Salienta-se que as universidades não tiveram a mesma importância em termos de interação para a P&D quanto em outros SNIs, como o da Alemanha e dos Estados Unidos. Ainda assim, a implementação de políticas públicas - que

8 Laurens et al. (2013) mostram a especial relevância desses centros no caso coreano. A taxa de internacionalização desses centros criados por firmas coreanas cresceu de forma significativa nas décadas de 1990 e 2000 (enquanto no caso de firmas de diversos outros países foi perdendo força com a exceção muito importante, nessa tendência, dos Estados Unidos). A maior tendência de crescimento tem sido dos centros coreanos que buscam explorar externalidades positivas para a P&D nos locais de destino, ou seja, ganhar conhecimento. Entretanto, o crescimento dos centros que servem à adaptação de conhecimento próprio a novos mercados (buscam aproveitar externalidades positivas em termos de ativos complementares) também é significativo.

se aproveitaram de características semelhantes às do caso japonês no que diz respeito à proximidade entre a burocracia e as firmas - foi capaz de provocar mudanças nos comportamentos de firmas e ICTs. Desta forma, alterou-se a necessidade de aplicação de conhecimento na atividade econômica, levando à intensificação dos fluxos de conhecimentos e ao estabelecimento de um efetivo ciclo de criação contínua de inovações.

O caso coreano tem algumas semelhanças com o japonês, uma vez que, inicialmente, também não se conformaram os fluxos de conhecimento que consolidariam o sistema, em virtude da falta de necessidade destes fluxos para a atividade econômica. Assim como no Japão, o Estado precisou interferir para modificar as demandas a serem atendidas pelas firmas para que elas finalmente buscassem a acumulação tecnológica. E, ainda assim, no primeiro momento, essa necessidade não exigia interações com as universidades para desenvolvimento de inovações, já que as firmas precisavam ainda dominar conhecimento relativamente “antigo”. A partir da interferência do Estado, com o direcionamento das firmas para o atendimento das demandas de mercados externos, as firmas passaram a necessitar das universidades para melhorar a qualificação dos recursos humanos e para desenvolver uma capacidade tecnológica, mesmo que os conhecimentos necessários não fossem novos para o mundo. Na Coreia do Sul, a busca por qualificação também passou significativamente pelo envio e repatriamento de pessoal a países desenvolvidos, pavimentando o caminho para a estratégia de internacionalização dos centros de P&D das firmas, mais tarde.

As relações entre firmas e entre Estado e firmas também eram bastante peculiares dadas as condições nacionais. O governo era ainda mais centralizado do que no Japão (um regime ditatorial) e havia também fatores que facilitavam a relação entre empresários e agentes do Estado, permitindo que se conformasse um ambiente no qual, por força do Estado, as firmas passassem a depender da mudança tecnológica mesmo que ainda não tivessem experimentado os seus resultados. Quando o Estado modificou o projeto nacional de desenvolvimento para que sua base fosse a inovação, interferiu no comportamento das firmas para que incorporassem a busca pela mudança tecnológica de forma crescente nas suas rotinas. Uma vez que as firmas ganharam competitividade, esses comportamentos, assim como o SNI, se consolidaram.

3.5. TECNOLOGIA E AS TRAJETÓRIAS NACIONAIS NA ABORDAGEM