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O constitucionalismo, supremacia e normatividade constitucional e a submissão dos poderes do Estado à Constituição

THE CONTROL OF UNCONSTITUTIONAL OMISSION IN BRAZILIAN LAW: CONSIDERATIONS AROUND THE LAW OF THE INJUNCTION MANDATE

1. O constitucionalismo, supremacia e normatividade constitucional e a submissão dos poderes do Estado à Constituição

A análise doutrinária e jurisprudencial em torno do problema da omissão inconstitucional, no âmbito do controle da constitucionalidade, parte do estudo da eficácia das normas constitucionais, culminando na apreciação das normas de eficácia limitada, que de forma mais nítida retratam o dever de legislar. Entretanto, é importante contextualizar o estudo da matéria com as linhas gerais do legado teórico e ideológico presentes no constitucionalismo moderno, responsável pela construção da premissa de que a Constituição guarda não somente caráter político - é um documento dotado de força normativa em sua totalidade, e portadora de supremacia em face das demais normas, restando inconteste o reclamo de sua máxima efetividade.

Com efeito, a partir do século XVIII, o pensamento moderno, calcado no racionalismo e antropocentrismo, erigiu a noção de Constituição escrita como instrumento capaz de delimitar a organização do Estado, o alcance do seu poder e com a afirmação de direitos da pessoa, diante dos quais nem mesmo o próprio Estado poderá violá-los – a partir da Constituição estaria presente a formulação das bases políticas e sociais. O constitucionalismo moderno, pois, figurou como o movimento responsável pela passagem do exercício absoluto do poder (Estado absoluto) para o exercício calcado em titularidade diversa ao monarca, a saber, o povo, ancorado em um documento capaz de formalizar e atribuir imperatividade a este novo eixo.

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Foram estabelecidas a partir das Constituições modernas as bases do chamado Estado de Direito, visto que a partir do texto constitucional estaria assegurada a separação dos poderes e os direitos fundamentais, em oposição ao exercício arbitrário do poder político. Esta ideia presente na Constituição repercutiu no liberalismo político e econômico, presente nos séculos XVIII e XIX, chegando às Américas através dos movimentos de independência política, retratando a criação de um novo Estado, ganhando destaque a Constituição escrita e rígida dos Estados Unidos da América, de 1787. Na Europa, a Constituição francesa de 1791 caracterizou o marco histórico do constitucionalismo moderno. Tratam-se de exemplos históricos que materializaram a ordenação sistemática e racional da comunidade política mediante um documento escrito e solene, declaratório das liberdades fundamentais e fixador dos limites do poder político.2

Neste particular, Uadi Lammêgo Bulos3, ao pontuar as contribuições do

constitucionalismo moderno, destacou a racionalização do poder político e segurança jurídica dos seus atos, a partir do surgimento de constituições escritas, formais, dotadas de coercibilidade; elaboração da teoria do poder constituinte originário, em que o conceito de povo, em lugar da tradição monárquica, ocuparia o espaço de legitimação e fonte primária desta normatividade e imperatividade constitucional; o primado da teoria da separação dos poderes e o advento da supremacia material e formal das Constituições, elevando o Direito Constitucional ao ramo do Direito Público por excelência, como fonte primeira de toda produção normativa. Desta superioridade do texto constitucional adveio a criação dos mecanismos de controle da constitucionalidade das leis e atos do poder público.

Eduardo García de Enterría4 salienta que a Constituição não é apenas uma

norma, senão a primeira destas no ordenamento jurídico – seja por definir o sistema de fontes formais do Direito (daí ser considerada a norma normarum, fonte das fontes), seja porque, na medida em que a Constituição é a expressão desta intenção fundante do sistema; com isso, tal ideia determinou, primeiro, a distinção entre um poder constituinte, que é de quem surge a Constituição e os poderes constituídos por esta, dos quais emanam todas as normas ordinárias. Assim, sob o aspecto formal, a norma constitucional, como corolário de sua supremacia, é dotada de rigidez, que impõe formas reforçadas de mudança ou modificação constitucional frente aos procedimentos legislativos ordinários, assim denominada superlegalidade formal; e, sob o prisma material, traduz o reconhecimento de uma preeminência do seu texto sobre todas as

2CUNHA JR, Dirley da. Controle de Constitucionalidade: teoria e prática. 8 ed. Salvador: Jus PODIVM, 2016, p.p.21-23

3 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 9. Ed. rev. atual. de acordo com a Emenda Constitucional n. 83/2014 e com os julgados do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2015, p.p.74-75

4 ENTERRÍA, Eduardo García de. La Constitución como norma y el tribunal constitucional. 3 Ed. Madrid (España): Civitas Ediciones, 1983, p.50

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demais normas, como obra do poder constituinte, assim denominado superlegalidade material.

Diante disso, nota-se que a supremacia da Constituição se irradia sobre todos submetidos à ordem jurídica nela fundada. Sem embargo, a teoria da inconstitucionalidade foi desenvolvida levando em conta, destacadamente, os atos emanados dos órgãos de poder e, portanto, públicos por natureza. A Constituição, como norma fundamental do sistema jurídico, regula o modo de produção das leis e demais atos normativos e impõe balizamentos a seu conteúdo, e a violação a esses mandamentos deflagra os mecanismos de controle de constitucionalidade.5

Saliente-se que nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido, estando tal carência de validade a acarretar a nulidade ou a anulabilidade do ato em questão. Se uma lei inconstitucional puder reger dada situação e produzir efeitos regulares e válidos, isso representaria a negativa de vigência da Constituição naquele mesmo período, em relação àquela matéria, de sorte que a teoria constitucional não poderia conviver com essa contradição sem sacrificar o postulado sobre o qual se assenta.6

Desta forma, o significado da Constituição no ordenamento jurídico revela não apenas a sua integral e expansiva força normativa; evidencia, também, que a sua supremacia impõe o compromisso de todas as esferas de poder do Estado para conferir sua máxima concretização – por esta razão é que são submetidos à jurisdição constitucional todos os atos e omissões do poder público. Qualquer conduta estatal, comissiva ou omissiva, em desacordo com o texto constitucional, é passível de controle, pois sua validez é plena no sistema, daí gravitar o problema da omissão inconstitucional em torno do prisma da eficácia das normas constitucionais.

Convém mencionar que, no século XX, a partir da Primeira Guerra Mundial, o constitucionalismo moderno assumiu uma nova feição, dadas as reformulações sociais e econômicas em torno do liberalismo. Diante de profunda crise social e do advento de partidos socialistas e movimentos cristãos, as Constituições conferiram ao Estado a assunção de tarefas, objetivos, fins, através de prestações positivas ofertadas à sociedade. Assim, a passagem do Estado liberal ao Estado social foi a mudança do perfil constitucional, de não intervencionista para o surgimento da Constituição Social, Dirigente, Programática ou Constitutiva.7

5 BARROSO, Luís Roberto O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2012

6 BARROSO, Luís Roberto O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2012, p.p.26-27

7CUNHA JR, Dirley da. Controle de Constitucionalidade: teoria e prática. 8 ed. Salvador: Jus PODIVM, 2016, p.p.23-24

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O Estado social caracterizou a assunção de um perfil proativo e realizador ao Estado de Direito, a partir de então comprometido com a realização de tarefas ligadas diretamente à promoção do mínimo existencial, necessário a uma existência digna, retratadas no texto constitucional como direitos fundamentais sociais. Neste particular, Flávia Piovesan8 pontifica que a Constituição do Estado social exige sua intervenção em

domínios fundamentais e, por esta razão, surge este modelo constitucional como um instrumento de direção e transformação social, mediante o implemento de políticas públicas exigentes de uma atuação mais integrada entre os poderes Executivo e Legislativo, posto que a regulamentação normativa, em sua essência, caracteriza a conformação do ideal constitucional aos anseios sociais, adequados no tempo e no espaço.

Assim, se mantidas considerações acima adotadas, nota-se que a eficácia das normas constitucionais, por si sós, não são capazes de ensejar as omissões inconstitucionais, e sim tais lacunas emergem no sistema ante a ausência de cooperação e colaboração entre os poderes em torno da promoção dos princípios e regras estampados no Texto Maior9, através da criação, na consciência de seus agentes, de uma

disposição de orientar a conduta de acordo com a ordem estabelecida, e de uma vontade de concretizar essa ordem, priorizando a vontade de Constituição sobre a vontade de Poder10.

O não fazer do Estado, sob esta ótica, revela-se tão grave e arbitrário quanto o fazer em descompasso com a Constituição, caracterizando a face do poder que foge à noção elementar da sua instrumentalidade diante do dever e da sua responsabilidade perante o seu titular, qual seja, o povo. O poder-dever, presente no legado e no espírito do Estado democrático de Direito, impõe-se a todas as atuações estatais, estando sua ausência na conduta dos seus presentantes a configurar todas as distorções passíveis de fiscalização, mediante os mecanismos de controle de constitucionalidade, dentre estes os das omissões que constituem objeto do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão.

8 PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p.33

9 PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003

10 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991, p.19

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2. A omissão inconstitucional: poder ou dever de legislar? O papel da

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