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A omissão inconstitucional: poder ou dever de legislar? O papel da jurisdição constitucional

THE CONTROL OF UNCONSTITUTIONAL OMISSION IN BRAZILIAN LAW: CONSIDERATIONS AROUND THE LAW OF THE INJUNCTION MANDATE

2. A omissão inconstitucional: poder ou dever de legislar? O papel da jurisdição constitucional

A textura aberta e o caráter diretivo da norma constitucional não representam obstáculo aos poderes constituídos à tarefa de desenvolver e tornar realidade seus comandos. Inexiste Constituição destituída da pretensão de efetivar-se e, por força da sua supremacia, os poderes do Estado encontram-se, desde logo, comprometidos com a adequação da conduta política aos seus preceitos.

A noção de supremacia da norma constitucional, na tradição civil law remonta à influência teórica do normativismo kelseniano, que pensou o Direito como um sistema hierarquizado de normas, figurando a Constituição no mais alto grau desta escala; que concebeu a Constituição, a um só tempo, como um texto precipuamente jurídico, com características próprias em torno da sua rigidez, compondo a ação dos poderes estatais nítidos atos jurídicos, a par da exteriorização da vontade política –– ou seja, da juridicidade do Texto Maior e sua superioridade no ordenamento foi incorporado ao conceito de Constituição um raciocínio jurídico, conjuntamente à sua intensa carga política, compondo assim a materialização político-jurídica do poder soberano. Como penhor desta juridicidade emergem os mecanismos de controle de constitucionalidade, exercidos pela jurisdição constitucional:

A garantia jurisdicional da Constituição - a jurisdição constitucional – é um elemento do sistema de medidas técnicas que têm por fim garantir o exercício regular das funções estatais. Essas funções também têm um caráter jurídico: elas consistem em atos jurídicos. São atos de criação de direito, isto é, de normas jurídicas, ou atos de execução de direito criado, isto é, de normas jurídicas já estabelecidas [...].

[...] Como quer que se defina a Constituição, ela é sempre o fundamento do Estado, a base da ordem jurídica que se quer apreender. O que se entende antes de mais nada e desde sempre por Constituição – e, sob este aspecto, tal noção coincide com a forma de Estado – é um princípio em que se exprime juridicamente o equilíbrio das forças políticas no momento considerado, é a norma que rege a elaboração das leis, das normas gerais para cuja execução se exerce a atividade dos organismos estatais, dos tribunais e das autoridades administrativas. [...]11

Por outro lado, os caracteres de generalidade e abstração mais elevados, presentes na norma constitucional, se comparada às normas infraconstitucionais, acarreta a perda de densidade normativa. Por esta razão é que, muitas vezes, as disposições constitucionais remetem quase sempre à regulamentação infraconstitucional posterior, mormente diante da impossibilidade real e fática de disciplinar de forma exaustiva as relações jurídicas objeto do seu regramento, passando a depender, para produção de efeitos concretos, da atuação futura do legislador

11 KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013 (Biblioteca jurídica WMF), p.p.123-124;130

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ordinário, como o responsável pela emissão desta norma regulamentadora expressa ou implicitamente desejada.

Desta forma, a doutrina situa o problema da omissão inconstitucional no campo da eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais, o qual tornou-se mais adotada pelos teóricos a classificação proposta por José Afonso da Silva12, presente na obra

Aplicabilidade das normas constitucionais, cuja primeira edição data de 1967, uma das

pioneiras na doutrina brasileira e das mais divulgadas. Perdura até hoje, trazendo consequências marcantes no direito brasileiro, máxime quanto à interpretação e aplicabilidade de direitos fundamentais, sobretudo os de segunda dimensão (direitos sociais).

As três categorias elencadas pelo ilustre constitucionalista foram: normas de

eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada, figurando

estas últimas, especificamente, a ensejar o dever de legislar e a correlata inconstitucionalidade quando de sua omissão.

As normas de eficácia plena são aquelas aptas a produzir, imediatamente, todos os efeitos almejados pelo legislador constituinte desde a entrada em vigor da Constituição – sua aplicabilidade é direta, imediata e integral. São suficientes por si mesmas, auto aplicáveis, uma vez que possuem todos os elementos indispensáveis para sua existência; com isso, são dotadas de todos os meios necessários à sua executoriedade13.

As normas de eficácia contida são as que preveem certos conceitos ou meios que permitem restringir os seus limites, restrições que se dão por meio de lei – sua aplicabilidade é direta, imediata, mas não integral. Figuram numa posição intermediária entre as normas de eficácia plena e as de eficácia limitada, uma vez que dá margem a que o legislador ordinário restrinja seu conteúdo por meio de normatividade futura. Em alguns casos, esta margem se identifica em expressões como “bons costumes”, “segurança nacional”, utilidade pública”, “função social” etc14.

As normas de eficácia limitada, por sua vez, incluem todas as que dependem de providências do legislador ordinário, de modo a complementar seus conteúdos e com isso possibilitar a produção dos efeitos completos desejados pelo constituinte. Sua aplicabilidade é indireta, mediata e reduzida. Na ocorrência de eventual omissão legislativa, estes direitos constitucionais são fadados à inocuidade, pouco ou nada podendo ser feito para efetivá-los.

12 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3 ed. revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 1998

13 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3 ed. revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p.82

14 PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 67

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José Afonso da Silva15, neste particular, salienta que as normas de eficácia

limitada subdividem-se em dois grupos: normas declaratórias de princípio institutivo, que contém esquemas gerais, ora de estruturação de instituições, ora de órgãos ou de entidades, dependentes de legislação futura para concretização, e normas de princípio programático, que dispõe sobre princípios a serem obedecidos pelos órgãos estatais, como programas, disciplinadoras dos interesses econômico-sociais, visando à realização e persecução dos fins sociais pelo Estado, identificadas na Constituição brasileira através das normas definidoras de direitos sociais.

Dentre as normas programáticas, Flávia Piovesan16 acentua que tais normas se

classificam em três espécies: normas programáticas vinculadas ao princípio da legalidade, que mais retratam o problema da omissão inconstitucional; normas programáticas referidas aos poderes públicos e normas programáticas dirigidas à ordem econômica e social.

Ademais, frise-se que a construção doutrinária em torno das normas de eficácia limitada, mormente as de cunho programático, caracterizadoras do fenômeno da omissão inconstitucional, é corolário do advento do Estado de bem-estar social, o qual trouxe uma nova conformação aos poderes, os quais receberam da Constituição uma agenda de tarefas a realizar, caracterizando assim a noção do dever de legislar e de executar políticas públicas – algo considerado inovador no escorço do Estado moderno e do Estado de Direito, cuja trajetória experimentou o exercício arbitrário do poder, chegando ao processo de sua racionalização pelo Direito, mediante limites estabelecidos pelos direitos individuais. O Estado não poderia mais exceder sua atuação sobre as liberdades individuais e a propriedade, cabendo zelar pela ordem pública e governar com segurança jurídica. E tais limites se afiguravam perfeitos com a teoria da separação dos poderes, exemplificada pelo pensamento de Montesquieu.

O surgimento do Estado Social, por sua vez, retratou o desenvolvimento do Estado de Direito: já não se afigurava suficiente estabelecer a ordem e a segurança das relações sociais por meio da lei, quando as vicissitudes do sistema econômico causavam sérios desequilíbrios sociais, com o comprometimento da dignidade humana. Como pensar a liberdade e a ordem sem a promoção das condições materiais mínimas, vitais à existência? Assim o Estado adjudicou prestações positivas, com a afirmação de direitos fundamentais de cunho social na Constituição, tornando-se corresponsável com o cidadão na obtenção dos bens necessários à subsistência, em lugar de expectador da realidade social.

15 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3 ed. revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Malhieiros Editores, 1998

16 PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 79

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Ora, sendo participante da construção da vida humana digna, e estando tal atuação prescrita no texto constitucional, o poder político adquire especial conformação, qual seja a de atuar segundo tais diretrizes. Sua discricionariedade já não mais consiste em apenas respeitar as balizas legais; depara-se, a partir de então, com limites positivos, traçados pela Constituição, mormente o de elaborar leis que materializem tais preceitos. Clèmerson Merlin Clève17 salienta que o direito constitucional, há tempos, conhece as

técnicas capazes de afastar o resultado da ação do poder público despida de base constitucional; no entanto, quanto às omissões inconstitucionais, deparou-se com algo novo – o desafio de conceber a tarefa de legislar como um dever, não mais como o exercício de uma das faculdades do poder soberano.

Assim, foi a partir dos direitos de segunda dimensão, consubstanciados no Estado Social, e positivados nas Constituições dos países que assumiram tal perfil, intituladas por J.J. Gomes Canotilho18 de dirigentes, que a teoria da separação dos poderes passou

a assumir um caráter de separação de funções, coordenadas e cooperadas à consecução de um fim último, qual seja o de efetivar o Texto Maior.

Jorge Hage19 considera que a modificação material sofrida pelas Constituições

nas primeiras décadas do século XX foram capazes de ensejar, juridicamente, ao cidadão destinatário de suas normas o direito subjetivo à legislação, quando a omissão da norma infraconstitucional é impeditiva do exercício de um direito já concedido pela Constituição.

A normatividade do texto constitucional é integral, sob todas as dimensões dos direitos fundamentais nele contemplados, emergindo, portanto, o direito subjetivo de emanação de atos legislativos, administrativos e judiciais voltados à sua máxima concretização, caracterizando, no entendimento de Dirley da Cunha Jr, um direito fundamental à efetivação da Constituição20, extraído da teoria dos direitos fundamentais, cujo aspecto subjetivo denota a exigibilidade judicial, e seu aspecto objetivo tal direito à efetivação encontra-se espelhado na eficácia dirigente da Constituição, que impõe ao Estado o dever de concretizar todas as suas normas.

Trazendo a esta perspectiva, tem-se o reconhecimento normativo através do disposto no artigo 5°, § 1°, da Constituição Brasileira de 198821, que consagra a aplicação

imediata das normas definidoras de direitos fundamentais, acarretando, para o Poder

17 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2 ed. rev. atual. e ampl. 2 tir. – São Pulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000

18 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6 Edição revista. Livraria Almedina Coimbra, 1993

19 HAGE, Jorge. Omissão inconstitucional e direito subjetivo. Brasília: Brasília Jurídica, 1999. 20 CUNHA JR, Dirley da. Controle judicial das omissões do poder público: em busca de uma dogmática transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da Constituição. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p.p. 266-268

21 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm

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Judiciário uma postura ativa, na hipótese de reconhecida omissão dos poderes públicos, sem incorrer em afronta ao princípio da separação dos poderes.

Desta forma, a omissão inconstitucional, seja total ou parcial, vislumbrada no plano da exigibilidade e efetivação dos direitos, define-se como aquela que apresenta uma abstenção indevida, por imposição de norma certa e determinada, cuja não exequibilidade é capaz de gerar a erosão do texto constitucional (total), ou, ainda, quando a regulamentação infraconstitucional revela-se insuficiente ou inadequada ao exercício do direito em questão (parcial). Não se apresenta juridicamente ante o dever genérico de legislar, e sim quando a Constituição assim ordena, de modo objetivo – identificável nas normas constitucionais de eficácia limitada, sem prejuízo da aferição do elemento temporal, valendo-se a jurisdição constitucional da razoabilidade da conduta inerte do Estado, na análise do caso concreto:

[...] Segundo JORGE MIRANDA, a omissão é relevante sempre que, mandando a norma reguladora de certa relação ou situação praticar certo ato ou certa atividade, nas condições que estabelece, o destinatário não o faça nos termos exigidos e não o faça em tempo útil. Vê-se, portanto, que a apreciação da omissão não pode ser separada da apreciação do fator tempo, pois o juízo da inconstitucionalidade por omissão traduz-se num juízo sobre o tempo, dentro do qual podia e devia ser produzida a medida necessária para conferir exequibilidade à norma constitucional. Ante esse elemento temporal, pode-se afirmar que a inconstitucionalidade por omissão, para ser reconhecida, pressupõe também um juízo sobre o tempo22.

Diante dessas considerações, observa-se que o papel exercido pela jurisdição constitucional no controle das omissões inconstitucionais, tanto em sua modalidade difusa quanto concentrada, exige a adoção de um modelo hermenêutico concretista, quedando insuficiente o mero reconhecimento da inércia legislativa ante a ausência de elaboração da norma regulamentadora tendente a efetivar a norma constitucional. O dever de promoção da máxima efetividade das normas constitucionais é relegado a todas as funções estatais, restando ao Judiciário a tarefa de colmatar as lacunas legislativas existentes, valendo-se de técnicas criativas como a analogia se necessário, conferindo ao demandante uma resposta mais efetiva e eficiente face o seu direito subjetivo violado, previsto constitucionalmente.

22 CUNHA JR, Dirley da. Controle judicial das omissões do poder público: em busca de uma dogmática transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da Constituição. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p.p. 125-126

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3. O mandado de injunção. Escorço histórico e jurisprudencial.

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