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Constituição e Política Institutos interdependentes

3 A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E SUA INTERAÇÃO COM O PROCESSO

3.2 Constituição e Política Institutos interdependentes

Assim, a relação entre política e direito é um problema de interdependência recíproca. A política tem a ver com o direito sob dois pontos de vista: enquanto a ação política se exerce através do direito, e enquanto o direito delimita e disciplina a ação política. Em outras palavras, a ação política se exerce

por meio do direito, especialmente e principalmente pelo Direito Constitucional.

Neste aspecto, a ordem jurídica é o produto do poder político. Onde não há poder capaz de fazer valer as normas por ele estabelecidas recorrendo também

1 Neste estudo iremos perquirir quando o poder deverá se dar em nome da coletividade. Deverá se

em última instância à força, não há direito. Ou parafraseando Norberto Bobbio (2000, p.239-240), o poder sem direito (constitucional) é cego, mas o direito (constitucional) sem o poder é vazio (destituído de eficácia). Em seus termos:

[...]

O problema fundamental do normativista, ao contrário, é mostrar que um sistema normativo pode ser considerado direito positivo apenas se existirem, em várias instâncias, órgãos dotados de poder capazes de fazer respeitar as normas que o compõem. O poder sem direito é cego, mas o

direito sem poder é vazio. Da mesma forma que o direito público tradicional

que partia do poder sempre perseguiu o direito, para conseguir distinguir o poder de fato do poder legítimo, a teoria normativa do direito – ensina Kelsen – teve que perseguir o poder para conseguir fazer a distinção entre uma ordem jurídica apenas imaginada e uma ordem jurídica efetiva. Em outras palavras, para o primeiro, o nó a ser desatado é o problema da legitimidade do poder; para a segunda, é o problema da efetividade do sistema normativo. (BOVERO, 2000, p. 239-240).

Por todo o afirmado, o que se percebe – e é cada vez mais aceito – é que a uma teoria do Direito Constitucional também é uma teoria política, vez que mexe com o próprio conceito de poder, isto é, decidir e implementar tais decisões, de acordo com uma competência constitucionalmente firmada. Tal noção também é defendida no Brasil por Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (2003, p.600-601). A seguinte passagem é paradigmática:

A formação das cortes constitucionais da Europa após 1945 também é um indicador do convencimento de que a jurisdição constitucional é tarefa eminentemente política, devendo a argumentação jurídica nessa atividade existente ser desenvolvida tendo como elemento da consciência de que naquele ambiente funciona policy maker. As cortes da Alemanha, Áustria, Espanha e Itália são todas formadas a partir da heterogeneidade das distintas forças políticas que se deixam traduzir na presença dos diferentes partidos políticos, responsáveis pelas indicações dos membros daqueles tribunais.

Sendo a jurisdição constitucional uma atividade política, não há como deixar de se concluir que toda a política que se efetiva no Estado brasileiro se submete ao princípio dos princípios do Estado Democrático de Direito. Como se disse, à definição daquilo que venha a ser democracia é necessária a observação do acúmulo histórico existente na experiência brasileira e, como ponto determinante deste auxílio, as que se deram em outros lugares. A complexidade das relações de sociabilidade modernas exige muito mais dos tribunais do que se possa imaginar, e a tarefa de tornar efetiva uma Constituição não tem como desprezar este aspecto. Um das exigências das novas relações sociais é a da permanente participação de um maior número de intérpretes constitucionais, elemento que se deixa confirmar no Brasil desde a implantação do controle difuso de constitucionalidade; forma de controle, aliás, que corresponde à tradição brasileira. Se, por um lado, esta forma tradicional de controle ‘abre’ a

Constituição para um número maior de pessoas, por outro ângulo cerra ela a possibilidade de uma participação do povo, na medida em que a decisão do que foi definido difusamente está nas mãos de um grupo que nenhuma relação possui com o povo, ou com os intérpretes e representantes deste.

Assim, o Direito Constitucional, em sua aplicação, é um exercício de teoria política. E o exercício da jurisdição constitucional é uma manifestação necessariamente política. Daí que a Política e o Direito são termos interdependentes.

3.2.1 A teoria de Alexis de Tocqueville

Alexis de Tocqueville (2001) foi o primeiro autor a entender – e defender – que as decisões que envolvem a interpretação de uma Constituição (rectius: controle de constitucionalidade) são também decisões políticas. Em sua obra Democracy in America (1835 e 1840, respectivamente, o 1° e 2° volumes), já defendia que as decisões judiciais que envolvessem a interpretação da Constituição eram claramente manifestações políticas. Adiante será transcrito trechos do capítulo VI da primeira parte de sua obra, intitulada “Do poder judiciário nos Estados Unidos e de sua ação sobre a sociedade política”:

O mais difícil para um estrangeiro compreender nos Estados Unidos é a organização judiciária. Não há, por assim dizer, acontecimento político em

que não ouça invocar a autoridade do juiz; e daí conclui naturalmente que

nos Estados Unidos o juiz é uma das primeiras forças políticas. Quando examina em seguida a constituição dos tribunais, descobre que, à primeira vista, tem apenas atribuições e hábitos judiciários. O magistrado só lhe parece imiscuir-se nos assuntos públicos por acaso; mas esse acaso acontece todos os dias.2 (TOCQUEVILLE, 2001, p.111-112, grifo nosso).

E continua seu raciocínio:

2 No original, capturado do sítio da internet do projeto Gutenberg de divulgação gratuita de e-books - http://www.gutenberg.org/etext/8690: “The judicial organization of the United States is the institution

which the stranger has the greatest difficulty in understanding. He hears the authority of a judge invoked in the political occurrences of every day, and he naturally concludes that in the United States the judges are important political functionaries: nevertheless, when he examines the nature of the tribunals, they offer nothing which is contrary to the usual habits and privileges of those bodies; and the magistrates seem to him to interfere in public affairs by chance, but by a chance which recurs every day”.

O juiz americano se parece pois perfeitamente com os magistrados das outras nações. No entanto é dotado de um imenso poder político. De onde vem isso? Ele se move no mesmo círculo e serve-se dos mesmos meios que os outros juízes; por que possui um poder que estes últimos não têm? A causa está neste simples fato: os americanos reconheceram aos juízes o direito de fundar suas decisões na constituição, em vez de nas leis. Em outras palavras, permitiram-lhes não aplicar as leis que lhes pareceram inconstitucionais.3 (TOCQUEVILLE, 2001, p.113).

A se aceitar que a Constituição é o estatuto jurídico do político, percebe- se como o Autor foi pioneiro em sua ideia, quando em observação da incipiente nação norte-americana.

3.2.2 A teoria de Kelsen

Dentre as inúmeras obras de Hans Kelsen (2003), em seu livro Jurisdição Constitucional, foi transcrita sua célebre polêmica com Carl Schmitt4, ocasião em

que estabeleceu Kelsen que o exercício da função jurisdicional constitucional é também uma função política. Em tal artigo, o vienense defendeu que “a função política da Constituição é estabelecer limites jurídicos ao exercício do poder. Garantia da Constituição significa a segurança de que tais limites não serão ultrapassados” (KELSEN, 2003, p.240). Continuando tal pensamento, passou a tratar do termo política e sua correlação com as decisões judiciais:

IV. Tais argumentos partem do pressuposto errôneo de que entre funções jurisdicionais e funções políticas existiria uma contradição essencial, e que particularmente a decisão sobre constitucionalidade de leis e anulação de leis inconstitucionais seria um ato político, donde se deduz que tal atividade já não seria propriamente jurisdicional. Se devemos dar ao termo ‘política’, polissêmico e excessivamente mal utilizado, um sentido razoavelmente preciso num contexto de oposição a ‘jurisdição’, só poderemos supor que seja usado para expressar algo como ‘exercício de poder’ (em contraposição a um ‘exercício do direito’). ‘Política’ é a

3 No original: His position [a do juiz] is therefore perfectly similar to that of the magistrate of other

nations; and he is nevertheless invested with immense political power. If the sphere of his authority and his means of action are the same as those of other judges, it may be asked whence he derives a power which they do not possess. The cause of this difference lies in the simple fact that the Americans have acknowledged the right of the judges to found their decisions on the constitution, rather than on the laws. In other words, they have left them at liberty not to apply such laws as may appear to them to be unconstitutional.

4 Título do capítulo: “Quem deve ser o guardião da Constituição?”, ou no original: “Wer soll der Hüter

der Verfassung sein?”, originariamente publicada na revista Die Justiz. 1930-31, Heft 11-12, v. VI, p.

função do legislador, o qual submete os indivíduos à sua vontade e exerce um poder justamente pelo fato de obrigá-los a perseguir seus interesses dentro dos limites das normas que impõem, decidindo assim os conflitos de interesses, ao passo que o juiz, enquanto instrumento – e não sujeito – de tal poder, apenas faz aplicar esse ordenamento criado pelo legislador. Tal concepção, contudo, é falsa, porque pressupõe que o exercício do poder esteja encerrado dentro do processo legislativo. Não se vê, ou não se quer ver, que ele tem continuação ou até, talvez, seu real início na jurisdição, não menos que no outro ramo do executivo, a administração. Se enxergarmos ‘o político’ na resolução de conflitos de interesses, na ‘decisão’ – para usarmos a terminologia de Schmitt – encontramos em toda sentença judiciária, em maior ou menor grau, um elemento decisório, um elemento de exercício de poder. O caráter político da jurisdição é tanto mais forte quanto mais amplo for o poder discricionário que a legislação, generalizante por sua própria natureza, lhe deve necessariamente ceder. A opinião de que somente a legislação seria política – mas não a ‘verdadeira’ jurisdição – é tão errônea quanto aquela segundo a qual apenas a legislação seria criação produtiva do direito, e a jurisdição, porém, mera aplicação reprodutiva. Trata-se, em essência, de duas variantes de um mesmo erro. (KELSEN, 2003, p. 240 e 250-251, grifo nosso).

Em seguida, Kelsen (2003, p.252-253) se mostra ainda mais contundente em seu célebre debate com Carl Schmitt:

Segundo Schmitt as questões ‘políticas’ não são objeto de jurisdição. Pois bem, tudo que se pode dizer do ponto de um exame de orientação teórica é que a função de um tribunal constitucional tem um caráter político de um grau muito maior que a função de outros tribunais – e nunca os defensores da instituição de um tribunal constitucional desconheceram ou negaram o significado eminentemente político das sentenças deste – mas não que por causa disso ele não seja um tribunal, que sua função não seja jurisdicional; e menos ainda: que tal função não possa ser confiada a um órgão dotado de independência judiciária. Isto significaria deduzir justamente de um conceito qualquer, por exemplo, o de jurisdição, elementos para a conformação da organização estatal.

Em sentido correlato ao acima exposto, vale a transcrição de trechos da obra Hermenêutica Constitucional e Direitos fundamentais. – parte de autoria de Gilmar Ferreira Mendes (2000a, p. 204, grifo nosso):

Se o Estado está constitucionalmente obrigado a prover tais demandas, cabe indagar se, e em que medida, as ações com o propósito de satisfazer tais pretensões podem ser juridicizadas, isto é, se, e em que medida, tais ações se deixam vincular juridicamente.

[...]

A submissão dessas posições a regras jurídicas opera um fenômeno de transmutação, convertendo situações tradicionalmente consideradas de natureza política em situações jurídicas. Tem-se, pois a juridicização do processo decisório, acentuando-se a tensão entre direito e política.

Tal processo de transmutação, como ressaltado, além das próprias influências da população e do povo nas decisões judiciais, mormente quando envolvam princípios, não se trata de uma tendência, passível de acontecer no futuro. Como será mais acuradamente analisado no tópico sobre jurisdição constitucional, é algo que já está acontecendo, e aumentará cada vez mais.