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Democracia “Participativa” Como deve ser entendida

3 A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E SUA INTERAÇÃO COM O PROCESSO

3.5 Democracia “Participativa” Como deve ser entendida

Na obra Teoria Constitucional da Democracia Participativa, de Paulo Bonavides (2001), há vários trechos que tratam sobre tal termo. Apesar disso, não consta um conceito sintético. Tem-se, pois, que inferi-lo do seu contexto. O que mais se aproxima de uma definição encontra-se abaixo:

Afigura-se-nos que a verdadeira substância política da democracia participativa deve incorporar-se ao direito constitucional positivo sob a designação de democracia direta. Mas esta expressão não corresponde,

com extremo rigor, ao símile grego da antigüidade clássica, porquanto o modelo nela contido, extraído da fórmula mista consideravelmente atenuada, mantém no seu receituário político de organização e função elementos representativos remanescentes e subsidiários, sem embargo de haver deslocado, já, o eixo da soberania, em bases funcionais, dos corpos intermediários do Estado – as casas legislativas e os órgãos executivos – para a sede da autoridade moral, centralizadora e suprema, que é o povo,

desbloqueado no exercício direto e vital de suas prerrogativas de soberania.

Tal modelo de democracia participativa direta conserva ainda a aparência de uma forma mista, típica das chamadas democracias semi- representativas ou semidiretas, bastante conhecidas da nomenclatura política pós-Weimar; mas com esta diferença capital: seu centro de gravidade, sua mola chave, em todas as ocasiões decisivas, é a vontade popular; é o povo soberano. A parte direta da democracia é máxima, ao passo que a parte representativa será mínima. (BONAVIDES, 2001, p. 60).

Assim, a democracia participativa não deixa de ser um retorno à democracia teorizada pelos iluministas e, para alguns, a praticada pelos atenienses durante o séc. V A.C., o denominado século de Péricles. Ou seja, na democracia praticada pelos antigos, a regra eram os cidadãos decidirem nas praças, a exceção, a ocorrência de eleições. Na lição de Norberto Bobbio (2000, p. 374),

[...]

Nas duas formas de democracia [a antiga e a atual representativa], a relação entre participação e eleição está invertida. Enquanto hoje a eleição é a regra e a participação direta a exceção, antigamente a regra era a participação direta, e a eleição, a exceção. Poderíamos também dizer da seguinte maneira: a democracia de hoje é uma democracia representativa às vezes complementada por formas de participação popular direta; às vezes corrigida pela eleição de algumas magistraturas. (Grifo nosso).

E complementa:

Das duas diferenças entre a democracia moderna e a democracia antiga, a primeira foi o efeito natural da alteração das condições históricas, a segunda, ao contrário, foi efeito de uma diferente concepção moral de mundo. A substituição da democracia direta pela democracia representativa deveu-se a uma questão de fato; o distinto juízo sobre a democracia como forma de governo implica uma questão de princípio. As condições históricas alteraram- se com a transição da cidade-Estado para os grandes Estados territoriais. O próprio Rousseau, embora tivesse feito o elogio da democracia direta, reconheceu que uma das razoes pelas quais uma verdadeira democracia jamais existiu, e jamais existirá, era que ela exige um Estado muito pequeno ‘no qual seja fácil para o povo reunir-se, e no qual cada cidadão possa facilmente conhecer todos os outros. (BOBBIO, 2000, p. 376).

Importante destacar que ao contrário do que muitos pensam, a democracia participativa não é sinônimo de democracia direta. As semelhanças são enormes, mas a diferença vai se dar especificamente de como se dá tal processo de

participação e saber quem são seus participantes. Em outras palavras: a discussão vai partir de qual conceito de Povo que se estará adotando.

Mesmo na democracia direta quem irá participar de tais processos (plebiscito, referendo, iniciativa popular) é o Povo-eleitor, aqui entendido Povo como coletivo de cidadão, titular de direitos políticos expressos no art. 14 (capacidade eleitoral ativa – votar, e potencial12 para a capacidade eleitoral passiva – ser votado).

Já o conceito de povo, para o entendimento da democracia participativa, é bem mais amplo. Deverá abranger o maior número possível de pessoas, sem se confundir, contudo, com o termo população13. Sua ideia é assim colocada por Friedrich Muller (2003, p.100, grifos do autor):

Quem é o povo? Não se trata, no tocante à pergunta pela ação, de ‘massas’ das espécies de textos de agitação; não se trata de um proletariado revolucionário escatológico, que é colocado em prontidão; não se trata de um exército paralelo de guerrilheiros. Trata-se de ‘todo’ o povo dos generosos documentos constitucionais; da população, de todas as pessoas, inclusive (até o momento) sobreintegradas e das (até o momento) excluídas: trata-se do povo enquanto destinatário das prestações estatais negativas e positivas, que a cultura jurídica respectiva já atingiu.

O termo povo então se encontra em transformação, numa tentativa de se ampliar, o mais possível, o número de seus integrantes dentro dos residentes de um Estado-País. Isso de um ponto de vista teórico, ou como um dever ser, infelizmente.14 Mas não se pode concordar com Müller quando este defende ser o

12 Diz-se capacidade em potencial para a capacidade eleitoral passiva porque as constituições, a nossa, inclusive, estabelecem restrições objetivas a certos cargos eletivos, como idade, não ser analfabeto etc.

13 População é um termo dinâmico: consiste no número de pessoas presentes no território de um Estado soberano num dado momento. Assim, a quantidade de pessoas pode variar em determinado local pelos mais variados critérios. Por exemplo, um local turístico vai possuir sua população

aumentada na alta estação e diminuída em outras épocas. Critério atomístico, a Ciência Política

dele se preocupa principalmente por dois fatores: i) qualquer pessoa dentro do território deste Estado deverá estar submetido ao ordenamento deste Estado, independentemente de sua vontade (as exceções, e.g., agentes diplomáticos ou parlamentares em missão oficial não infirmam a regra); ii) todas as pessoas neste Estado serão titulares de direitos fundamentais.

14 A atual quadra histórica é de retrocesso, haja vista um dos grandes problemas reais por qual passam massas de refugiados, e que está ameaçando uma das construções políticas mais sofisticadas dos últimos cinquenta anos, a da União Europeia. Os vários atentados terroristas ocorridos em Paris (2015 e 2016), em Istambul e em outras capitais cosmopolitas da Europa ou de países candidatos trazem as perspectivas as mais sinistras.

povo constituído por “todas as pessoas” de um Estado. Tal defesa mais confunde do que esclarece. Não se contesta serem toda a população de um Estado (nos moldes do conceito de população adotado neste estudo) titulares de direitos fundamentais. Mas o conceito de povo é preponderantemente político, no sentido de, ao menos, seus integrantes poderem influenciar nas decisões do Estado.

Ora, há vários membros de um Estado que não possuem condições de influir nas decisões, por uma mera questão de capacidade. Nesse sentido, os absolutamente incapazes para a vida civil, como por exemplo, os loucos (assim considerados os interditados judicialmente), crianças (menores de doze anos, procurando ser o mais condescendentes possíveis com a afirmação transcrita de Müller), não podem, nem que quisessem, decidir nas questões de Estado. E repetindo de outra forma para não se correr o risco de se interpretar que tal colocação é restritiva: todos os seres humanos são titulares de direitos fundamentais. A fortiori, os residentes de um Estado, que possuirão até um maior número de direitos subjetivos (pois que passíveis de serem reivindicados judicialmente, e.g. ação popular, de nacionalidade, de acesso a certos cargos públicos), também serão titulares de tais direitos. Mas isto não significa dizer que todos os integrantes de um Estado possam participar – ou influenciar – nas decisões deste Estado.15

O mais relevante permanece. O termo povo encontra-se atualmente em transformação, no sentido de se procurar ampliar o número de seus titulares. E

15 Aqui nesta tese se discorda inteiramente com o afirmado na tese de Doutorado de George M. Lima (A JUDICIALIZAÇÃO DA ÉTICA: Um Projeto de Transformação da Ética em Direito Orientado pela Expansão do Círculo Ético, Coimbra, 2013) quando este autor defende os direitos fundamentais dos animais não-humanos. Não que se desconheça que tal defesa também é posta na doutrina internacional mais recente. É pura e simplesmente porque ela não se encaixa na Política aplicada, ou na realpolitik, data maxima venia. Nas ideias de George, “[...] as teorias contratualistas também pecam no que se refere à proteção dos animais não-humanos. A imagem central utilizada por essas teorias para explicar a origem dos princípios de justiça é a de um contrato estabelecido entre seres humanos racionais e adultos, não deixando espaço, pelo menos em sua descrição da justiça social básica, aos interesses das criaturas não-humanas (nem sequer daquelas que são, em certos aspectos, racionais). Ocorre que nossas decisões afetariam diariamente a vida de espécies não- humanas, podendo lhes causar grande sofrimento. Por isso, excluí-los das questões de justiça demonstraria uma deficiência injustificável das teorias alicerçadas no contrato social” (George M. Lima: 215-216). Favorável a este entendimento, as ideias de Martha Nussbaum (in The Frontiers of

Justice: disability, nationality, species membership. Cambridge: The Belknap Press of Harvard

assim, a ideia de democracia também adquire nova forma, no sentido da democracia participativa.

E isso se torna tanto mais factível com o barateamento e difusão dos meios de comunicação de forma praticamente instantânea, já antevista por Bobbio (2000, p. 954):

Com relação às duas diferenças fundamentais entre democracia dos antigos e democracia dos modernos, sobre as quais falei até agora, pode-se timidamente prever que a democracia do futuro goza do mesmo juízo de valor positivo da democracia dos modernos, embora retornando em parte, através da ampliação dos espaços da democracia direta, tornada possível com a difusão dos meios eletrônicos, à democracia dos antigos. (Grifo nosso).

Assim, a tecnologia atual posta à disposição de um universo de um número cada vez maior de pessoas, de forma cada vez mais barata e rápida, não deixa de ser um dos meios para efetivar tal democracia com participação.