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Jurisdição constitucional nos EUA: método incidental

6 A NECESSIDADE DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL NO BRASIL

6.2 Jurisdição constitucional nos EUA: método incidental

Muitos doutrinadores se referem ao caso “Marbury v. Madison” como o primeiro da história a inaugurar o controle judicial de constitucionalidade das leis. Tal caso célebre foi decidido pela Suprema Corte norte-americana em 1803, sob a presidência de John Marshall.

Não foi ideia original, nem o primeiro caso. Relatado por Marshall, teve inspiração na doutrina, principalmente as lições de Hamilton, no clássico O Federalista, onde se sustentava a competência do Poder Judiciário no controle das leis, e a supremacia da Constituição sobre as leis ordinárias. E nos precedentes jurisprudenciais.

Antes da promulgação da Constituição americana, entre os anos de 1786 e 1787, o político Alexander Hamilton publicou uma série de artigos no Jornal Daily Advertiser, de Nova Iorque.

O Federalista é o produto da reunião de 85 artigos de imprensa, escritos em 1787 e 1788 por três personagens fulcrais do período histórico da fundação dos Estados Unidos: Alexander Hamilton, James Madison e John Jay. Tais ensaios consistiram em argumentos, muito bem fundamentados, em defesa da então proposta de Constituição, elaborada pela Convenção de Filadélfia entre maio e setembro de 1787. Aquela que viria a tornar-se a Constituição norte-americana foi,

imediatamente após o encerramento dos trabalhos da Convenção, objeto de forte contestação por parte de numerosos autores e correntes, que ficaram conhecidos como os “Antifederalistas”.

O capítulo 78 e seguintes deste trabalho traçam análises do papel do Judiciário. Como se perceberá, neste escrito já se coloca, claramente, a competência do juiz a realizar a defesa da Constituição, mesmo contra o Legislativo e/ou Executivo. A seguir, os excertos:

Quem considerar com atenção os diferentes poderes deve reconhecer que, nos governos em que eles estão bem separados, o Poder Judiciário, pela mesma natureza das suas funções, é o menos temível para a Constituição, porque é o que menos meios tem de atacá-la. O Poder Executivo é o dispensador das dignidades e o depositário da força pública; o Legislativo dispõe da bolsa de todos e decide dos direitos e dos deveres dos cidadãos: mas o Judiciário não dispõe da bolsa nem da espada e não pode tomar nenhuma resolução ativa. Sem força e sem vontade, apenas lhe compete juízo; e esse só deve a sua eficácia ao socorro do Poder Executivo.

[...]

A independência rigorosa dos tribunais de justiça é particularmente essencial em uma Constituição limitada [rectius: rígida]; quero dizer, em uma Constituição que limita a alguns respeitos a autoridade legislativa, proibindo-lhe, por exemplo, fazer passar bills of attainder e decretos de proscrição, leis retroativas ou coisas semelhantes. Restrições desta ordem não podem ser mantidas na prática, senão por meio dos tribunais de justiça, cujo dever é declarar nulos todos os atos manifestamente contrários aos termos da Constituição. Sem isso, ficariam absolutamente sem efeito quaisquer reservas de direitos e privilégios particulares. (HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 458-459).

Logo após, Hamilton, Madison e Jay, (2003) demonstram que o Judiciário, por razões lógicas, pode e deve realizar controle de constitucionalidade. Pensar o contrário seria conferir um poder excessivo e não previsto na Constituição ao Legislativo, transformá-lo num superpoder:

Todo ato de uma autoridade delegada contrário aos termos da comissão [a Constituinte] é nulo. Esse princípio é indubitável; e, portanto, todo o ato do corpo legislativo, contrário à Constituição, não pode ter validade. Negar isso seria o mesmo que dizer que o delegado é superior ao constituinte, o criado ao amo, os representantes do povo ao povo que representam. (HAMILTON; MADISON; JAY,2003, p. 459).

E arremata:

[...] a Constituição quis colocar os tribunais judiciários entre o povo e a legislatura, principalmente para conter essa última nos limites das suas

atribuições. A Constituição é e deve ser considerada pelos juízes como lei fundamental; e como a interpretação das leis é a função especial dos tribunais judiciários, a eles pertence determinar o sentido da Constituição, assim como de todos os outros atos do corpo legislativo. Se entre estas leis se encontrarem algumas contraditórias, deve preferir aquela, cuja observância é um dever mais sagrado; que é o mesmo que dizer que a Constituição deve ser preterida a um simples estatuto; ou a intenção do povo à dos seus agentes.

Mas não se segue daqui que o Poder Judiciário seja superior ao Legislativo; segue-se, sim, que o poder do povo é superior a ambos e que, quando a vontade do corpo legislativo, declarada nos seus estatutos, está em oposição com a do povo, declarada na Constituição, é a essa última que os juízes devem obedecer: por outras palavras, que as suas decisões devem conformar-se antes com as leis fundamentais do que com aquelas que não o são. (HAMILTON ; MADISON; JAY, 2003, p. 459-460).

Em síntese, as ideias defendidas por Hamilton, Madison e Jay (2003) que serviram de base ao modelo até hoje existente sobre controle judicial de constitucionalidade, são as seguintes: a) a Constituição estatui limites ao Poder; consequentemente também os estabelece à atividade legislativa; b) desta forma, não é adequado que o Legislativo seja “juiz” de suas próprias limitações; c) a interpretação das leis é função típica do Judiciário, e, sendo a Constituição uma lei, é natural que lhes seja atribuída a função de interpretar a Constituição; d) o Judiciário, por não dispor nem da “espada” nem do “tesouro”, é o ramo menos perigoso (“the least dangerous branch”) do poder do Estado para interpretar os direitos previstos na Constituição.

Como dito, “Marbury v. Madison” não foi o primeiro caso. E eis que o histórico é inventariado por Rui Barbosa (1929, p. 418):

Eis, pois, em succinta nomenclatura, as decisões da suprema corte americana annullando actos do congresso federal:

1 – Questão Hayburn. Ag. 1792. Contra a Lei de 23 de março de 1792, que conferia auctoridade aos tribunaes em matéria de pensões.

2 – United States v. Yale Todd. Fev. 1794. Sentença contra a lei de 23 de março 1792, já aludida, que conferia á justiça poderes não judiciais.

3 – Marbury v. Madison. Fev. de 1803. Contra uma disposição da lei de 1789, concernente á organização judiciária, que dava jurisdição originária á corte suprema nos casos de ‘mandamus’.

Não foi o primeiro, mas foi o paradigma e notabilizou o que já era feito esporadicamente por alguns poucos Tribunais e, mais importante, por todas as instituições ainda por firmaram-se, visto ter sido a Constituição americana celebrada

em 1787. Incontroverso ainda de que histórica decisão de Marshall serviu como um marco fundamental para a teoria do controle de constitucionalidade das leis.

Para um melhor entendimento do caso e de sua repercussão será feita uma rápida suma da questão, das condições psicossociais e políticas da época e, especialmente, traçar um perfil de seu artífice, John Marshall. Ao final, o que se quer demonstrar é que um dos primeiros casos registrados de controle judicial de constitucionalidade foi uma solução essencialmente política.

Marshall, juntamente com Joseph Story, são considerados os mais importantes Chief of Justice da Corte Suprema dos EUA no século XIX. Ex- advogado, ex-parlamentar, considerado “ultraconservador”, ingressou no Tribunal em 1801, no fim do governo de John Adams na Presidência da República. As transcrições a seguir são de Lêda Boechat Rodrigues (1992, p.22-23):

Vencidos nas eleições, procuraram os federalistas, no seu pouco tempo restante de administração, entricheirar-se nos tribunais. Nova lei judiciária foi sancionada a 27 de fevereiro [de 1801], visando a extensão do Judiciário nacional e criando numerosos lugares de juízes. Na véspera da posse de JEFFERSON, até as 21 horas, ADAMS ainda lavrava nomeações, cujos beneficiários foram apelidados pelos republicanos de ‘juízes da meia-noite’. [...]

Já a 3 de fevereiro de 1802, revogava o Senado, por votação estritamente partidária, de 16 contra 15 votos, a Lei Judiciária de 1801. JEFFERSON queria, a todo custo, livrar-se dos juízes federalistas, e o impeachment seria uma das armas utilizadas. Nesse mesmo ano, na imprensa e no Congresso, foi a Côrte Suprema violentamente atacada, alvitrando-se o impedimento dos juízes daquele tribunal, caso concedessem a ordem de mandamus impetrada por Marbury contra Madison.

Marbury foi legalmente nomeado juiz de paz em Columbia, com base na Lei Judiciária de 1801, revogada em 1802, por decisão do então Presidente Adams. Por ordens do novo Presidente Jefferson, porém, foi impedido de tomar posse, pelo novo Secretário de Governo, Madison. Marbury, desta forma, ingressou com ação judicial com base na lei revogada. O caso foi submetido em 1803 à Suprema Corte, sob a presidência de John Marshall, e alcançou enorme celeuma, tendo sido considerado um “conflito entre poderes” devido ao interesse expresso do então recém empossado Presidente da República.

O contexto era complicado: a mídia à época dando enorme atenção ao caso, com opiniões ora que o Judiciário poderia se intrometer, ora que não. O Executivo com o interesse de que Marbury – o juiz nomeado – não podia assumir. O Senado tendo editado uma lei casuística. E o Judiciário agora tendo que decidir tal questão, com o perigo de que o writ de Marbury, acaso concedido, não fosse cumprido. O final da história é narrado por Lêda Boechat Rodrigues (1992a, p.36 e 38):

Enfrentava-se, assim, situação dificílima. Indeferir simplesmente o pedido seria, conforme observou CROSSKEY, capitulação demasiado visível; afirmar apenas que a lei judiciária sòmente autorizava o mandamus pela Côrte Suprema em grau de apelação, era resultado insatisfatório. A Côrte, de modo muito inteligente e hábil, procurou, então, mascarar o recuo inevitável com um ato de afirmação contra o partido no poder. Invertendo a ordem do exame das questões preliminares, assim decidiu: MADISON, na realidade, agira ilegalmente [rectius: inconstitucionalmente] ao negar posse a MARBURY; e, de acordo com os princípios aplicáveis da Common Law, havia remédio para tal caso, o mandamus, pelo qual MADISON poderia ser compelido a dar posse a MARBURY. Não cabia, porém, o writ, porque pedido diretamente à Côrte Suprema, cuja competência originária era estritamente definida na Constituição e não podia ter sido dilatada pela Lei Judiciária de 1789. Era, assim, inconstitucional e nulo o art. 13 dessa lei, que atribuíra à Côrte Suprema competência originária para expedir ordens de mandamus.

[...]

Ao declarar inconstitucional o art. 13 da Lei Judiciária de 1789, visava MARSHALL fim meramente político, mostrando, através da discussão do mérito, haver JEFFERSON cometido uma ilegalidade [rectius: inconstitucionalidade], mas falecer à Côrte, por uma questão preliminar, de falta de jurisdição, competência para corrigi-la. [...] A decisão de MARSHALL, disse CORWIN, foi ‘um panfleto político destinado a irritar o inimigo até o limite máximo da tolerância’ e traz tôdas as marcas ‘de um deliberado golpe partidário’.

A seguir trecho emblemático da célebre decisão, que é um resumo do raciocínio da jurisdição constitucional:

É, sem dúvida, da alçada e dever do Poder Judiciário declarar a lei. Aquêles que a aplicam aos casos particulares devem, necessàriamente, explaná-la e interpretá-la. Se duas leis se contrariam, os tribunais devem decidir sôbre o seu âmbito de ação. Assim, se uma lei estiver em antagonismo com a Constituição, e se tanto uma como outra forem aplicáveis à espécie, de modo que o tribunal tenha de decidir o caso de acordo com a lei, desatendendo à Constituição, ou de acordo com a Constituição, rejeitando a lei, êle, inevitàvelmente, terá de escolher dentre os dois preceitos opostos o que regerá o assunto. Isto é da essência do dever judicial. Se, portanto, os tribunais devem ter em vista a Constituição, e se esta é superior a qualquer lei ordinária do Poder Legislativo, a Constitucional e não a lei ordinária há de reger o caso a que ambas dizem respeito.

A redação da Constituição dos Estados Unidos confirma e fortalece o princípio, suposto essencial em tôdas as Constituições escritas, de que uma lei contrária à Constituição é nula; e que os tribunais, da mesma forma que os outros departamentos do Gôverno, devem obediência àquele instrumento. (RODRIGUES, 1992, p. 37-38).

Assim, sem qualquer apoio em texto expresso da Constituição norte- americana, Marshall atribuiu ao Judiciário o poder de invalidar os atos legislativos contrários à Constituição, em termos que não poderiam ser recusados pelo Presidente Jefferson.