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Democracia participativa e processo

3 A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E SUA INTERAÇÃO COM O PROCESSO

3.6 Democracia participativa e processo

Como mencionado, o evolver dos Estados de Direito abrange um processo cumulativo. E o Estado Democrático de Direito possui como núcleo essencial à democracia, devendo esta ser entendida em suas múltiplas facetas e, em muitas ocasiões, devendo ser implementada via processo, seja administrativo, legislativo ou judicial. Nesta concepção, Friedrich Müller (2003, p.382) defende que a participação, a mais ampla possível de setores da sociedade, propiciará uma maior concreção dos artigos e normas políticas previstas na Constituição. E que tais atores estão legitimados a participar do processo principalmente devido ao princípio democrático, previsto na Constituição brasileira e alemã:

O estado constitucional aqui referido foi conquistado no combate contra uma história marcada pela ausência do Estado de Direito e pela falta de democracia [unrechtsstaatliche(n) und undemokratische(n) Geschichte]; e esse combate continua. A democracia e o Estado de Direito legitimam desde os seus inícios a dominação da ordem social burguesa; constituições como a brasileira de 1988 ou a Lei Fundamental alemã mencionam expressamente a legitimação pelo povo. É de importância decisiva saber em que campos e em que grau essas pretensões são cumpridas ou descumpridas no funcionamento cotidiano do ordenamento jurídico. Disso faz parte não apenas a atuação dos políticos; mas também o trabalho prático da docência, da pesquisa e, sobretudo da decisão dos juristas,

pois o seu fazer é operacionalizado nos termos do Estado de Direito somente em caso de procedimento racionalmente controlável dos titulares das funções jurídicas no Executivo e no Judiciário, bem como no trabalho prévio para o Legislativo. E só então existe a oportunidade de que ao menos uma parte relevante da vida social seja determinada pela democracia, à medida que ela ainda possa ser genericamente controlada pelo direito. (MÜLLER, 2003, p. 87, grifo nosso).

Na Constituição Federal de 1988 a participação a maior possível de setores do povo na Democracia se encontram previstos em vários de seus artigos. Assim é que os partidos políticos (e.g.) são legitimados ativos para a propositura do controle abstrato de constitucionalidade (art. 103), ou mesmo às minorias parlamentares são facultadas a propositura da abertura de comissões parlamentares de inquérito (art. 58, § 3°).

Assim, a democracia participativa, do ponto de vista processual, deve propiciar ao maior número de pessoas possível a participação efetiva em ações judiciais. E isto não desnatura a concepção clássica de processo, em torno da palavra lide (conflito de interesses resistido, na acepção de Francesco Carnelutti) e de partes (processo intersubjetivo)16. Ou seja, não quando o caso for de conflitos

individuais, onde ainda vigorará a clássica teoria processual de proteção a direitos subjetivos.

A Constituição de 1988, por seu turno, se não foi o início de tudo, foi o marco na História constitucional e institucional brasileira. Mas tal avanço não ocorreu de forma linear: o controle abstrato de normas no Brasil, desde 88, e com as sucessivas reformas constitucionais e infraconstitucionais, paulatinamente, passou a permitir a um maior número de pessoas, associações ou grupos a provocarem, ou mesmo intervierem nos processos de índole objetiva.

16 Para Carnelutti (2000, p.77) (de onde foi retirada nossa terminologia do CPC/1973, além do CPC/1939, quanto ao termo lide), “o conflito existente de interesses denomina-se lide”. E o termo deve ligar-se a parte, isto é, pessoas individualmente consideradas, e não grupos e/ou instituições. Assim, o termo clássico de processo é essencialmente vinculada ao processo subjetivo: “Uma lide, já que é um conflito intersubjetivo de interesses, necessariamente tem dois sujeitos. Cada um deles recebe o nome de parte; com o qual se indica mais sua posição que sua individualidade, ou seja, que é um dos sujeitos do conflito [...]” (p. 78). E o objeto do processo, nesta acepção, deverá possuir cunho patrimonial: “O objeto do interesse é um bem” (p. 80).

Isso também ocorre, em tese, nos processos de proteção aos direitos coletivos e difusos17. Acontece que as reformulações legais ocorridas na década de

1990, na prática, inviabilizaram ou dificultaram tais remédios, especialmente a ação civil pública, com base nas leis que proíbem a concessão de cautelares contra a Fazenda Pública, ou de quaisquer provimentos liminares, antecipações de tutela, medidas cautelares ou demais tutelas de urgência (CF/88, art. 5º, XXXV). Neste sentido: Lei nº 4.348/64, Lei nº 8.437/92, Lei nº 9.494/97, MP n. 2.180-35/2001.

O que tais leis fizeram na prática foi dificultar, a não mais poder, o exercício processual de tais tutelas coletivas ou de urgência. A contradição é patente: de um lado se aumenta o poder do controle concentrado de normas, por reformas sucessivas. De outro, se retira poder do controle incidental difuso, com as restrições que se deram por meio destas malfadadas leis, de duvidosa constitucionalidade.

A difusão de tal conhecimento deve ser a mais ampla possível, vez que não é sequer permitida a discussão sobre a inconstitucionalidade das citadas leis. Explica-se: a mais restritiva de todas, a 9.494/97, foi declarada constitucional pelo STF, em sede de Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC n. 4 DF) onde, como se sabe, sua decisão é vinculante (CF/88, art. 102, § 2°). Eis a ementa de tão lamentável deliberação:

E M E N T A: AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE – PROCESSO OBJETIVO DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO – NATUREZA DÚPLICE DESSE INSTRUMENTO DE FISCALIZAÇÃO CONCENTRADA DE CONSTITUCIONALIDADE – POSSIBILIDADE JURÍDICO-PROCESSUAL DE CONCESSÃO DE MEDIDA CAUTELAR EM SEDE DE AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE – INERÊNCIA DO PODER GERAL DE CAUTELA EM RELAÇÃO À ATIVIDADE JURISDICIONAL – CARÁTER INSTRUMENTAL DO PROVIMENTO CAUTELAR CUJA FUNÇÃO BÁSICA CONSISTE EM CONFERIR UTILIDADE E ASSEGURAR EFETIVIDADE AO JULGAMENTO FINAL A SER ULTERIORMENTE PROFERIDO NO PROCESSO DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO – IMPORTÂNCIA DO CONTROLE JURISDICIONAL DA RAZOABILIDADE DAS LEIS RESTRITIVAS DO PODER CAUTELAR DEFERIDO AOS JUÍZES E TRIBUNAIS – INOCORRÊNCIA DE QUALQUER OFENSA, POR PARTE DA LEI Nº

9.494/97 (ART. 1º), AOS POSTULADOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE – LEGITIMIDADE DAS RESTRIÇÕES ESTABELECIDAS EM REFERIDA NORMA LEGAL E JUSTIFICADAS POR RAZÕES DE INTERESSE PÚBLICO – AUSÊNCIA DE VULNERAÇÃO À PLENITUDE DA JURISDIÇÃO E À CLÁUSULA DE PROTEÇÃO JUDICIAL EFETIVA – GARANTIA DE PLENO ACESSO À JURISDIÇÃO DO ESTADO NÃO COMPROMETIDA PELA CLÁUSULA RESTRITIVA INSCRITA NO PRECEITO LEGAL DISCIPLINADOR DA TUTELA ANTECIPATÓRIA EM PROCESSOS CONTRA A FAZENDA PÚBLICA – OUTORGA DE DEFINITIVIDADE AO PROVIMENTO CAUTELAR QUE SE DEFERIU, LIMINARMENTE, NA PRESENTE CAUSA – AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE PARA CONFIRMAR, COM EFEITO VINCULANTE E EFICÁCIA GERAL E ‘EX TUNC’, A INTEIRA VALIDADE JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DO ART. 1º DA LEI 9.494, DE 10/09/1997, QUE ‘DISCIPLINA A APLICAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA’. (BRASIL. STF - ADC 4, Relator: Min. SYDNEY SANCHES, Relator p/ Acórdão: Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 01/10/2008, DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30- 10-2014).

A própria ementa é uma contradictio in terminis: estabelece que a restrição ao poder geral de cautela dos membros do Judiciário, quando a questão tratar de interesse da Fazenda Pública em juízo, não diminui o direito fundamental à tutela judicial efetiva, insculpida no art. 5ª, XXXV da CF/88.