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Apesar de ser pouco vulgar a sua incorporação nas armadas portuguesas, as galés, tal como outros tipos de navios de remo, foram utilizadas quase exclusivamente no Índico, ao serviço do Estado da Índia; em Portugal, até ao reinado de Felipe II, a sua acção limitou-se praticamente à defesa do Reino do Algarve, à segurança do Estreito de Gibraltar, e ao abastecimento reforço das praças africanas da Coroa de Portugal.

No início de 1559, a Rainha D. Catarina, viúva de D. João III, e regente na menoridade de D. Sebastião, nomeou Lourenço Pires de Távora, antigo embaixador na Alemanha e em Castela, como novo representante da Coroa de Portugal junto do Soberano Pontífice, em substituição do Comendador D. Afonso de Lencastre179. Tendo partido de Lisboa a 22 de Abril de 1559, o novo embaixador chegou a Roma ainda a tempo de conhecer o Santo Padre, que o recebeu, juntamente com o embaixador cessante, em audiência particular; poucos dias depois, a 18 de Agosto, falecia Paulo IV.

Das instruções que recebera em Lisboa constavam alguns assuntos que a Coroa portuguesa considerava de grande importância, como eram a manutenção do Tribunal do Santo Ofício, e o incremento do beneplácito régio180, e para os quais se pedia uma rápida resolução. Infelizmente, o novo Pontífice (Paulo IV) apenas foi eleito a 25 de Dezembro desse ano de 1559. Durante o longo período de Sede Vacante Lourenço Pires de Távora pouco mais pode fazer do que procurar inteirar-se dos assuntos que então dominavam a Corte romana. Entre estes pontificava então, para além da conclusão do Concílio geral da Igreja, a intenção da Santa Sé em atribuir ao Rei Católico um novo e vultuoso benefício eclesiástico, destinado a criar e

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D. Afonso de Lencastre, Comendador da Ordem de Cristo e Alcaide-mor de Óbidos, era neto de D. Fernando II, duque de Bragança, e da infanta D. Isabel, irmã de D. João III. Desempenhou o cargo de embaixador em Roma durante quase toda a década de 1550.

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Que implicava a suspensão das legacias papais enviadas a Portugal, e a nomeação do Cardeal D. Henrique como Legado Perpétuo.

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sustentar um armada de «setenta galees em que se montão a seis mil cruzados por galle quatrocentos e vinte mil cruzados por anno»181.

Ao invés de se concentrar na resolução dos assuntos para que fora instruído, Lourenço Pires de Távora tomou a iniciativa de suplicar a Pio IV a concessão de um benefício semelhante ao Reino de Portugal (no valor de 50.000 cruzados anuais), sem para isso estar mandatado, evocando dois poderosos argumentos: a de que os soberanos portugueses se empenhavam, desde a fundação do Reino, na aniquilação dos «inimigos do nome Cristão», e de que em consequência haviam consumido as suas finanças na prosecução destas «sagradas empresas»182. Ao mesmo tempo, apressou-se a informar a Corte portuguesa dos termos exactos da sua iniciativa, aproveitando para enviar uma cópia da Bula concedida a Felipe II, com preciosas anotações sobre as cláusulas que mais desagradavam ao monarca espanhol; na mesma missiva solicitava igualmente o envio de um pedido formal do soberano português, a fim de respeitar o compromisso que antecipada e imprudentemente havia assumido perante o Soberano Pontífice, bem como instruções sobre o modo como havia de havia de conduzir as negociações relativas a esta negociação, convencido que estava de que a sua iniciativa não suscitaria qualquer reparo ou contestação.

O embaixador procurou justificar a sua ousada conduta de um modo bastante engenhoso, afirmando que havia involuntariamente lembrado ao Soberano Pontífice, no decurso de uma das diversas aundiências que este lhe havia concedido, a importância e o valor dos trabalhos e empresas empreendidos pelos soberanos portugueses nas guerras contra os infiéis, sugerindo que este serviço prestado à Cristandade merecia da Sé Apostólica um justo reconhecimento e recompensa, à semelhança do que fora prestado à Coroa espanhola. E apenas porque Sua Santidade concluísse que o embaixador propunha este «negocio da parte» do seu soberano, perguntando-lhe «com que contia de dinheiro [este] se contentaria, é que Lourenço Pires de Távora,

181Carta de Lourenço Pires de Távora (1560 Out. 13, Roma) in CDP, vol. IX, pág. 71.

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Machado, Diogo Barbosa, Machado, Diogo Barbosa, Memórias para a história de Portugal,

que comprehendem o governo Del Rey D. Sebastião [...], Lisboa, 1736, t. I, cap. IX: págs. 446

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depois de assegurar não ter «comissão» para tratar daquele assunto, ousou manifestar a sua opinião pessoal: «sincoenta mil cruzados em cada hum anno seria pensão toleravel», afirmou, que poderia ser repartida «sem muita gravesa» pela Igreja portuguesa. E porque esta observação pessoal viria a merecer do Pontífice uma inesperada (mas justificada) atenção, o embaixador justificou nestes termos as suas não solicitadas diligências: «Cheguei tanto adiante com este tratado e contra minha vontade não sabendo a de Vossa Alteza por me forçar o descurso e boa desposição e facilidade que naquella occasião vy em Sua Santidade e quanto a ditta somma tinha feito comigo a conta que os bispados desse reino huns por outros digo as igrejas e mosteiros de toda a diocesi poderião sofrer sinco mil cruzados cada hua em lugar de dicima»183.

Aproveitando o atraso na realização do Concílio, a Regente pronunciou-se oficialmente, considerando justa e financeiramente equilibrada a atribuição de um subsídio anual no valor de 50.000 cruzados destinado a auxiliar as despesas com a guerra de África e «sustentação das galees que andão na costa do Algarve», lembrando ao Soberano Pontífice que para além destes serviços prestados à Cristandade, a Coroa de Portugal se encontrava empenhada no combate contra os turcos e os mouros nas partes da India Oriental.

O embaixador português não perdeu tempo a transmitir a Pio IV a mensagem do seu soberano, nem deixou de reafirmar a justa expectativa que este tinha em ser beneficiado com idênticas mercês às que haviam sido concedidas a «ElRey de Castella», não apenas em recompensa das muitas empresas em que se empenhara em prol da Cristandade e da própria Sé Apostólica, mas sobretudo porque a manutenção da «continua guerra que tinha com os mouros de Africa por hua parte e com o Turco pella da India», contra o qual se

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Carta de Lourenço Pires de Távora (1561 Mai. 5, Roma); publicada in CDP, vol. IX, pág. 253-255.

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«alcansavão cada dia muitas e assinaladas victorias», exigia dobrados cabedais, que a esgotada Fazenda Real dificilmente conseguia suportar184.

Por esta altura, a atribuição de um subsídio eclesiástico à Coroa de Portugal já não parecia suscitar grandes reservas no espírito do Soberano Pontífice, nem particulares receios ao embaixador português; já a questão do valor do Subsídio parecia mais controversa e delicada. Pio IV mostrava-se inclinado a reduzir o montante de 50.000 cruzados inicialmente sugerido pelo próprio embaixador; este, temeroso de ver reduzido substancialmente o montante já anunciado à Corte, utilizava os seus vastos recursos retóricos para fazer sentir ao Santo Padre os graves prejuízos que uma tal decisão representava para o interesse geral, e também para a sua própria pessoa, a quem não deixaria de ser atribuída a responsabilidade por um eventual revés nas negociações.

Do que parecia não haver dúvidas era da primazia que o Pontífice atribuía às negociações com Felipe II; por essa razão, as condições de um futuro benefício atribuído à Coroa de Portugal nunca poderiam ser mais vantajosas do que aquelas que fossem acordadas com a Coroa espanhola. Disso mesmo dava reservadamente conta o nosso embaixador quando informava a Corte de que, «por ventura, Sua Santidade» deveria condicionar a atribuição do Subsídio à constituição de uma «armada eclesiástica». Esta modificação alterava significativamente o sentido do benefício do Subsídio tal como fora entendido inicialmente pela Coroa portuguesa. Ao contrário da Espanha, que se encontrava profundamente empenhada na suplantação naval do império otomano no Mediterrâneo, e que para isso necessitava de todo o apoio financeiro e naval que conseguisse obter junto da Santa Sé, dos seus aliados e dos Estados clientelares, Portugal contava obter apenas mais uma graça eclesiástica, semelhante àquelas de que há largo tempo regularmente

184«[...] posto que a India podesse parecer muito remotta de Roma avia ja lá tantos christãos que a devia Sua Santidade reputar como Bolonha ou qualquer outro estado da igreja pera esse modo lhe acodir e soccorrer em tudo o que pudesse e que estando a fazenda de Vossa Alteza em muita necessidade pella muita despeza que lugares [sic] de Africa e nas galees do Algarve e nas armadas da India continuamente se fazia [...] e que Sua Santidade soubesse certo ser a conquista de Vossa Alteza naquellas partes principalmente por honrra de Deus e accresentamento de nossa fee, e que era igual quasi a despesa na continua guerra com o fructo que do comercio se tirava» (idem).

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beneficiava, sem outra contrapartida que não fosse a prosecução do combate que continuamente travava (em África e no Oriente) contra os inimigos da Fé.

Sem atender às implicações que esta alteração tinha nas obrigações do Reino, a 26 de Setembro de 1561 Lourenço Pires de Távora informava oficialmente a Corte de que o Santo Padre lhe confidenciara a intenção de atribuir a «graça dos cinquenta mil cruzados», e de que pelo seu lado se comprometera a que o Rei de Portugal servisse «Sua Santidade [...] não tão somente com a armada que na dita contia se montasse em qualquer espedição geral contra infieis quando [aquele] lhe ordenasse, mas ainda com outra [armada sua], [...] conforme à obrigação e dezejos que tinha de servir a [...] See Apostolica e espender a fazenda e vida em defensão da Christandade»185.

Este pronto reconhecimento assumido por Lourenço Pires de Távora, que tantas críticas lhe valeu mais tarde, foi (segundo o próprio) motivo de «grande contentamento per Sua Santidade», por constituir um exemplo a seguir nas negociações com Felipe II; orgulhoso com o rumo que as suas diligências tomavam, o embaixador português informava que (em reconhecimento) Sua Santidade deliberara «fazer consistorio para despachar este negocio [...] antes que despachasse ao conde Brocardo»186, como de facto veio a acontecer.

Uma vez conseguida esta vantagem, o embaixador procurou demover Pio IV a aplicar à Coroa portuguesa as mesmas condições («clausulas e obrigações») que estavam estipuladas na «bulla da concessão das galles a El Rey de Castella, solicitando a nomeação de dois cardeais com os quais pudesse «tratar e acomodar as condições que comprião» àquele negócio, tendo sugerido as pessoas dos Cardeais Simonetta e San Clemente, «por serem letrados» e estarem habituados a desempenhar semelhantes «oficios»187.

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Carta de Lourenço Pires de Távora (1561 Set. 26, Roma); publicada in CDP, vol IX, págs. 350-52.

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Enviado de Felipe II. 187

Carta de Lourenço Pires de Távora (1561 Set. 26, Roma); publicada in CDP, vol IX, págs. 350-52.

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No entanto, esta opção de manter em aberto a negociação sobre as cláusulas da Bula do Subsídio comportava alguns riscos e desvantagens: em primeiro lugar, porque era incerto que o Papa acedesse às pretensões de Felipe II; em segundo lugar, porque se antevia altamente improvavel que as cláusulas da concessão fossem mais favoráveis a Portugal do que à Espanha; em terceiro lugar, porque implicava uma dilação que poderia revelar-se prejudicial para os nossos interesses.

O risco das negociações se arrastarem por longo tempo parecia, aliás, bastante provável, como se informava de Roma, porquanto corriam notícias de que o conde Brocardo apresentara ao Santo Padre um novo pedido de Felipe II para «accresentamento no numero das galees, e prorogação do tempo, e moderação nas condições da outra bulla»; acrescia a isto o facto do conde Brocardo ser um mero emissário que não estava mandatado para prosseguir as negociações, o que o obrigava a efectuar morosas deslocações entre as Cortes espanhola e romana.

Por estas razões, para evitar qualquer prejuízo resultante de uma mais que expectável demora na condução daquelas negociações, e porque o seu cargo de embaixador lhe conferia mais autonomia negocial do que a que fora outorgada ao enviado espanhol, decidiu Lourenço Pires de Távora aceitar a Bula na forma que lhe fora apresentada pelo Soberano Pontífice, mesmo sem ter recebido instruções específicas e detalhadas sobre aquela matéria188, por considerar que a mesma era globalmente favorável aos interesses do soberano e do Reino, sem constituír um encargo excessivo para a Igreja portuguesa. Por carta de 27 de Outubro assegurava ao seu soberano que as vantagens de ter conseguido obter a concessão do Subsídio, excediam largamente os eventuais prejuízos resultantes de algumas condições ou omissões de que a Bula padecesse, ao mesmo tempo que assegurava a sua intenção de tudo fazer

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«Eu me vy em trabalho não tendo avisso algum de Vossa Alteza nem resposta ao que na materia das condições da concessão escrevi por Diogo Boroa não sabendo as que podião aprazer ou descontentar Vossa Alteza nem o que queria que as daquella bulla se anhadisse, ou alterasse, nem se seria seu serviço exceptuar alguns estados ou condições de pessoas ou beneficios» (idem).

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para conseguir introduzir qualquer alteração que fosse considerada necessária189.

Uma vez expedida a Bula do Subsídio, o que ocorreu na décima terceira Kalenda de Outubro de 1561 (19 de Outubro)190, Lourenço Pires de Távora apressou-se a enviá-la para a Corte (por intermédio do seu filho Cristóvão de Távora191 ), juntamente com a Legacia atribuída ao Cardeal D. Henrique.

No entanto, sobre esta aparente vitória diplomática pesava a sombra de uma negociação conduzida de forma leviana192) e apressada. Disso mesmo devia estar consciente o embaixador, o que é visível no teor excessivamente justificativo da missiva em que anunciava à Corte a resolução de tão importantes questões.

Uma vez explicadas as razões que o levaram a procurar apressar a expedição da Bula, impunha-se uma justificação, não menos plausível, sobre a inclusão de algumas cláusulas tão controversas como as que diziam respeito à constituição de uma armada com a verba do Subsídio, e à prestação de auxílio sempre que requerido pela Santa Sé. Esta última podia mesmo ser entendida como particularmente lesiva dos interesses e da soberania do Reino, para além de ser uma das cláusulas que mais haviam desagradado a Felipe II. Por essa razão, o embaixador esforçou-se por esclarecer que a indesejável cláusula havia resultado de um infeliz equívoco, ocorrido quando afirmara ao Santo Padre que o Rei de Portugal se considerava tão empenhado no combate aos infiéis como agradecido aos benefícios concedidos pela Sé Apostólica, e que por isso era de esperar que se empenhasse não apenas na constituição de uma armada de galés «que se podesse soster com aquelles sincoenta mil

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«Tambem poderam pareçer sobejas algumas condições na bulla do subsidio ou se desejara por ventura mais alguma cousa [...] poderei ynda querendo Deus ser a tempo, e farei as lembranças necessarias, e spero seja facil ho remedio: porque a importanctia [sic] he star ja seguro da introdução do subsidio [...]»: carta de Lourenço Pires de Távora ao Rei (1561 Out. 27, Roma); publicada in CDP, vol. IX, págs. 396-97.

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«Romae apud Sactum Petrum M.D. LXI. XIII Kal. Octobris»; publicada in Barbosa Machado,

op. cit., Parte I, Livro II, Cap. IX, págs. 451-55.

191Carta de Lourenço Pires de Távora (1561 Out. 29, Roma); publicado in CDP, vol. IX, pág. 401-4.

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Isto é, sem possuir mandato expresso, nem instruções pormenorizadas sobre cada uma das cláusulas.

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cruzados» anuais (valor que, segundo estimava, não daria para mais do que oito unidades), «mas inda com outros tantos navios e muitos mais quando cumprisse a hua espedição contra infiéis»193.

Depois de explicar que aquela frase não havia passado de uma vulgar cortesia, proferida unicamente com o intuito de agradecer a graça anunciada, a que o Santo Padre «lançou mão» com a intenção de alterar as «condições na concessão que se fazia a El Rey de Castella» - mas que afinal, como seria de esperar, acabaram também incluídas na Bula concedida ao monarca português -, Lourenço Pires de Távora não deixou de minimizar os seus efeitos, nem tão pouco de valorizar a importância espiritual, política e financeira de uma concessão tão invejada pelos demais Príncipes cristãos194.

Além do mais, no seu entendimento, o Santo Padre só invocaria esta cláusula em circunstâncias tais, que o monarca português não poderia excusar-se a atender (como católico fidelíssimo que era), ainda que a isso não se encontrasse contractualmente obrigado. Confidenciava ainda que o próprio Pontífice lhe dissera em privado que o não havia de «metter em castello pello quebrantamento della», dando «claramente» a entender que o seu incumprimento seria tolerado. A simples menção de que o Santo Padre lhe sugerira (mesmo em privado) que aceitaria de boa mente a violação de qualquer uma das condições de concessão da Bula era, por si só, um facto que roçava o insulto à honra e dignidade de qualquer um dos seus signatários; por outro lado, esperar que o Santo Padre abdicasse futuramente de um direito, quando não mostrara a mínima intenção de o fazer durante o período de negociações, podia ser considerada uma ingenuidade pouco compatível com o cargo de embaixador junto da Sé Apostólica.

Quando a Bula chegou finalmente a Portugal, coube ao Cardeal D. Henrique a iniciativa de ordenar a elaboração de um parecer sobre as condições da concessão do Subsídio, por se terem achado nela «algumas clásulas que não

193Carta de Lourenço Pires de Távora (1561 Out. 29, Roma); publicado in CDP, vol. IX, pág. 401-4

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«[...] segundo me o papa disse e eu sei dos menistros das propias partes venecianos e el rey de França pedem o mesmo modo de subsidio [...]» (idem).

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eram decorosas à soberania da Coroa»195. Essa incumbência foi confiada ao Doutor João Afonso de Beja, Desembargador da Casa da Suplicação, que prontamente elaborou um parecer196, redigido num tom algo destemperado e atrevido, em que aconselhava a Coroa a não aceitar aquela graça apenas porque Sua Santidade se resolvera a conceder um benefício semelhante ao Rei Católico197, e ainda para mais servindo-se dos frutos devidos ao serviço dos clérigos198, para além de considerar aviltantes os argumentos invocados pelo embaixador para justificar aquela concessão. Para o jurisconsulto, a invocação da penúria do Rei e do Reino, transformavam uma simples petição num indigno «petitório»; e lembrava que nos primeiros tempos da Monarquia, em que Portugal era verdadeiramente pobre e estava «cheio de Mouros, [qu]e não tinhamos mais que até Coimbra, vinha um Rey muy pobre com tão poucos Portugueses, e tomava-lhes Santarém, e Lisboa, e todo o Alentejo, e dava batalha no Campo de Ourique a tantos Reis, e vencia-os, e desbaratava-os sem Bulas, e sem Papa, e sem pedir esmola, e alegar pobreza». Para além de indigna, e seguramente escusada, a exposição pública das nossas eventuais dificuldades financeiras – fossem verdadeiras ou simuladas – constituía igualmente (no seu entendimento) um incentivo a todos os Estados com quem tinhamos «guerras e trabalhos» por causa da «India, e [d]a especiaria»; e rematava, que uma tal confissão de fraqueza ele próprio não a daria ainda que sofresse «trezentos tratos de corda».

Em seguida, o Doutor Afonso de Beja analisa e comenta, uma por uma, as obrigações constantes na Bula de Pio IV, a saber. 1º - que o fundamento da concessão de um benefício de duzentos e cinquenta mil cruzados199 é a

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Machado, op. cit., págs. 457-58. 196

Parecer do Dr. João Afonso de Braga (s.l, s.d); publicado in Machado, op. cit., págs. 459-77. Existe uma outra cópia no Arquivo Fronteira («Papéis vários e curiosos, vol. 6, pág. 208 v.), publicada in Ribeiro, Luciano, «Colectânea de documentos acerca de D. Sebastião: estudos e

documentos», Lisboa, 1960, págs. 208-16.

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«Nem porEl Rei Filipe a pedir, e se lhe conceder, fica logo justificada a causa de Portugal, porque os termos são diferentes, e cada Rei, e cada Reino tem sua devoção, e condição, e segue sua inclinação».

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«Estes frutos são devidos ao serviço que eles fazem a nosso Senhor rogando por nós, e por todos; são mercês, jornal, e satisfação de seus trabalhos, e lhes são devidos por justiça natural».

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Cinquenta mil cruzados por ano, por espaço de um quinquénio («unum quinquaginta millium

ducatorum cruciatorum nuncupatorum subsidium annuum usque ad quinquennium proximum à Kal. Januarii proxime futuri»).

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constituição e manutenção de uma «Armada Ecclesiástica» («Classis

Ecclesiastica»), composta por galés, ou navios, ou caravelas («triremium, seu navium, aut caravellarum»); 2º- que para além desta «Armada Eclesiástica», o

Rei de Portugal se compromete a manter, exclusivamente à sua custa, a Armada que presentemente tem ao seu serviço; 3º - que a dita «Armada Eclesiástica» há-de servir não apenas contra os «infiéis, hereges e cismáticos», mas contra quaisquer pessoas ou entidades que o Santo Padre