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A qualidade dos navios de alto bordo construídos nos estaleiros de Ragusa, a sua capacidade produtiva, e a disponibilidade de mão-de-obra especializada nos diversos trabalhos marítimos (da construção à navegação), concorreram para tornar conhecida aquela República em quase todos os países marítimos da Europa mediterrânica e atlântica, nos séculos XVI e XVII. Alguns autores chegaram mesmo a reconhecer a influência das técnicas construtivas do Levante na construção naval espanhola do século XVII163. Os seus galeões tornaram-se um dos símbolos mais difundidos da construção naval e do comércio mediterrânicos. No Mercador de Veneza, Shakespeare, designa-os por «Argosy ships», expressão que viria a sobreviver na língua inglesa, e que actualmente se encontra divulgada sob a forma modernizada de «ragusan argosies»164.

A par da intensa e lucrativa actividade comercial, que os leva aos países da Europa setentrional, e às Índias ocidentais e orientais, estes «Argosy ships» vão passar a integrar as armadas espanholas, raramente no Mediterrâneo, talvez para não suscitar a desconfiança ou a ira do império otomano165 e, a partir do início da década oitava do século XVI, participam na maioria das grandes acções navais espanholas e integram a primeira grande unidade naval permanente da Monarquia Hispânica: a Armada do Mar Oceano.

No período entre 1584 e 1654, os cidadãos da República de S. Brás perderam nada menos de cento e setenta e oito embarcações de alto bordo (entre galeões, carracas e naus), saídos dos estaleiros Ragusa e Ragusa vecchia, de

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Goodman, David, op. cit., págs. 117-18.

164

R. B. Wernham, The Return of the Armadas. The last years of the Elizabethan war against

Spain, 1595-1603, Oxford, Clarendon Press, 1998, pág. 100.

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Quando em 1592 chegou à Sublime Porta a notícia de que uma esquadra ragusana se preparava para integrar a armada espanhola, os embaixadores da República de S. Brás viram- se forçados a desmentir formalmente aquela notícia, oferecendo as suas mãos como penhor, como se pode ler na relação enviada pelo embaixador veneziano Mateo Zane, escrita no bairro de Pera, e datada de 13 de Dezembro de 1592, e publicada nos CSP, vol. IX, doc. 115, págs. 51-52: “The Sultan also wished to know if the rumour about the ragusan ships hired by the King of Spain was correct. The ragusan ambassadors offered to lose their hands if there was a word of truth in the report”.

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Slano, de Canosa, de Malfi, de Santa Croce in Gravosa, e das ilhas de Calamotta, Mezzo, e Giuppana, além de muitos outros «che si passano sotto silencio», e lamentaram a morte «di molte migliaja di scelti giovani affogatisi sotto Tunisi, Algieri, Tripoli, e nell’Oceano, mentre secondavano le guerre degli Spagnuoli contro i Franchesi, gli Olandesi, ed Inglesi»166.

A família Ivelja Ohmuchievich e a esquadra Ilírica.

Pedro (ou Petar) Ivelja Ohmuchievich-Gargurich era um dos oito filhos de Giovanni Ivelja, conde de Tuhelj, uma família eslava de cultura italiana como cujos membros se distinguiram na luta contra o islão, ao serviço da Ordem de Malta ou da Coroa de Espanha. O reconhecimento dos seus serviços valeu-lhe, em 2 de Março de 1596, nos derradeiros dias de vida, a atribuição de hábito da Ordem de Santiago, e da correspondente renda anual no valor de 3 mil escudos.

Parece ter iniciado os seus serviços ao serviço da Monarquia Hispânica no preciso momento em que esta consumou a anexação do Reino de Portugal, servindo na campanha de Portugal sob as ordens do marquês de Santa Cruz, a quem acompanhou, posteriormente, em 1582 e 1583167, nas duas expedições navais ao arquipélago dos Açores. Nesta última expedição, que culminou na ocupação da ilha Terceira, participaram sete navios de Ragusa, num total de cinco mil e oitenta e duas toneladas, transportando quatrocentos e setenta e quatro marinheiros e dois mil quatrocentose cinquenta e quatro homens de guerra168. Participou juntamente com dois irmãos e um sobrinho, Estefano de

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Appendini, F. M., Notizie istorico-critiche sulle antichità, storia e letteratura de’Ragusei [...], t. II, Ragusa, 1703, pág. 225.

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AGS, GA, Legajo 299-15; Consulta do Conselho de Guerra, datada de 26 [?] de Fevereiro de 1590.

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«Relacion de los baxeles de diversas suertes y gente de mar y guerra que van en la armada

de Su Magestad a la impresa de las Islas de la Tercera de que ba por Capitan General el Marques de Santa Cruz la qual sale del Rio y puerto de la ciudad de Lisboa a 23 de Junio de 1583 años», consevada na Biblioteca da Ajuda (Lisboa), na Colecção «Symmicta Lusitanica»,

t. IV, fol. 233, que é cópia da pág. 246 do códice 818 da Biblioteca Vaticana, e publicada no

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Olisti, na grande expedição naval enviada contra Inglaterra no ano de 1588, integrado no esquadrão de «Naves Levantiscas», comandado por Martín de Bertendona. O seu navio “La Regazona” (1.294 ton.) era o maior de toda a armada: montava oitenta peças de artilharia, era manobrado por oitenta marinheiros, na sua maioria ragusanos, e transportava trezentos e quarenta e quatro homens de guerra das companhias de D. Pedro Camacho (134), D. Francisco de Cespedes (76) e D. Pedro Sandoval Ponce de Leon (134)169.

Contratou com a coroa espanhola a construção de uma armada de doze galeões ragusanos destinada a integrar a recém-criada Armada do Mar Oceano, onde deveria servir por espaço de cinco anos, e da qual foi nomeado general. Em 2 de Março de 1596 foi agraciado com o hábito de cavaleiro da Ordem de Santiago, honra que gozou durante pouco tempo, por ter falecido em Lisboa nos últimos dias do mês de Setembro do mesmo ano170.

Estefano (ou Stefano) de Olisti Tasovich, filho de uma irmã do general Pedro de Ivella, viajou com o tio para a Corte espanhola, no início de 1586, a fim de negociar o assento de uma esquadra de galeões ragusanos171. No ano de 1588 acompanhou os seus tios na expedição a Inglaterra, comandando o seu próprio navio, denominado “La Anunziada”, (703 ton.), de vinte e quatro peças de artilharia, transportando as companhias de D. Gonçalo de Monroy e Estevan de Ochoa. Os estragos provocados pelo confronto com os navios ingleses no Canal obrigaram, algum tempo depois, à sua evacuação e abandono, por inútil para a navegação, sendo queimado no porto irlandês de Limerick172.

Participou activamente na constituição da esquadra Ilírica, da qual foi nomeado almirante e, após a morte do seu tio, que o nomeou seu testamenteiro e

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Relacion de los galeones, navios, pataches y zabras, galeaças, galeras y otros nauios, que

van en la felicissima Armada, que Su Magestad ha mandado juntar en el rio desta ciudad, de que es Capitan General el Duque de Medina Sidonia [...], impresso em Lisboa, por Antonio

Alvarez, em 9 de Maio de 1588, e publicada por Herrera Oria, op. cit., págs. 384-435.

170

ANTT, CC, P. II, M. 276, doc. 18, s.d. (1596): «asiento y cuenta» referente ao período compreendido entre 15 de Novembro de 1594 e 29 de Setembro de 1596.

171

AGS, GA, Leg. 299-137; Consulta do Conselho de Guerra, datado de 1 de Agosto de 1590.

172

Relação de Alonso de Porres, escrita em Laredo a 4 de Outubro de 1588, e conservada no AGS, Estado, Leg. 165-251, publicada por Herrera Oria, op. cit., págs. 320-22.

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herdeiro, sucedeu-lhe no comando daquela173. Em meados de 1598 continuava a servir na Armada do Mar Oceano, continuando a beneficiar do soldo de general da esquadra de galeões que fora de seu tio, o que não o impediu de escrever a Felipe II, queixando-se da insuficiência daquela verba e do elevado prejuízo que lhe advinha, a si e à sua família, de não se terem fechado as contas relativas à perda do galeão “San Gerónimo" de que era proprietário174.

As esquadras ragucesas ao serviço da monarquia hispânica na primeira metade do século XVII.

O relativo insucesso, financeiro e militar, que estas operações de recrutamento de efectivos navais e humanos fora das fronteiras da monarquia representaram para os seus intervenientes - os armadores e a Coroa - não foram suficientes para impedir futuras iniciativas. Ainda durante o reinado de Felipe II, o general Esteban de Oliste ofereceu ao monarca espanhol os serviços do seu irmão Jorge de Oliste, que manifestara a sua disponibilidade para servir na Armada espanhola com uma nova esquadra, cuja base era formada pelos três galeões ragusanos que resgatara em Constantinopla. Recomendou, igualmente, os serviços do seu compatriota Vicencio Bune, então a servir em Lisboa, para qualquer serviço relacionado com a construção e reparação navais, especialidade em que mais tarde se haveria de distinguir175.

Na primeira década do novo século, os aventureiros e homens de negócios da república de S. Brás continuam a considerar compensadores os seus

173

AGS, GA, Leg. 513-100: carta de Esteban de Oliste a Felipe II, datada de 12 de Março de 1598.

174

AGS, GA, Leg. 516-156: carta de Esteban de Oliste a Felipe II, escrita na Coruña a 13 de Junho de 1598.

175

AGS, GA, Leg. 511: carta de Esteban de Oliste a Felipe II, escrita na Coruña a 4 de Janeiro de 1598: «Si se huuieren de adreçar las dichas naos leuantiscas en Lixboa, el cappitan Vicencio Bune esta alli, que es hombre de arta deligencia, y esta naçion quiere ombres afables como el lo es, para seruir de voluntad». O capitão Vicencio Bune, sobrinho do já referido capitão Marolin de Juan, aparece referenciado pela primeira vez em Portugal em Junho de 1587, durante os preparativos para a expedição a Inglaterra, onde viria a participar na qualidade de entretenido. Após uma longa e brilhante carreira, que incluiu uma efémera e penosa passagem pelo Estado da Índia (1595-1597), veio a falecer no Reino de Nápoles nos derradeios dias de 1612.

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investimentos, pessoais e financeiros, ao serviço da Espanha. Temos notícia de ter servido neste período mais um membro da família dos condes de Tuhelj, na pessoa de D. Juan Dinich-Tasovich, primo de Pedro de Ivella, vindo a distinguir-se nas várias acções navais em que participou, sob o comando dos condes de Miranda e de Benavente, ou na Armada do Mar Oceano, sob as ordens de D. Luis Fajardo.

A contratação de unidades navais ragucesas, inteiramente equipadas, artilhadas e tripuladas, revelou ser uma dos meios mais eficazes e céleres de incrementar o poder naval espanhol 176; por essa razão, a Coroa em breve viria a celebrar novos contratos com uma nova geração de «generais assentistas» ragusanos, nas pessoas de Vicente Martolozi e Nicolas de Masibradi. O primeiro viria a entrar ao serviço da Armada do Mar Oceano em 31 de Janeiro de 1623, no comando de uma esquadra que deveria contar inicialmente doze unidades, mas que findo o contrato já só contava com sete galeões, a saber: «La Concepcion, capitana, de porte de seiscientas toneladas; La Encarnacion, almiranta, de seiscientas, poco mas o menos; S. Carlos y San Juan, de quinientas y cincuenta toneladas cada vno; San Blas y San Francisco, de quatrocientas y cinquenta; y San Antonio, de quatrocientas; que todos hazen tres mil y seiscientas toneladas, pocas mas o menos»177.

Após a sua morte, Martolosi foi substituído no cargo por Nicolas de Masibradi, seu compatriota, possívelmente seu familiar, e seguramente seu associado nos negócios, que viria a concluir o contrato, e logo após a renová-lo por um novo período de seis anos, que teve início no dia 1 de Janeiro de 1632. Por este novo contrato prometia servir na Armada do Mar Oceano com uma esquadra composta por dez galeões, com um porte total de quatro mil setecentas e quarenta toneladas, para o que se propunha construir e aparelhar, nas atarazanas de Nápoles, três galeões «novos, de 300 tonelladas cada hum» e dois patachos «de 120 tonelladas», que deveriam largar daquele Reino o mais

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AGS, GA, Leg. 796; carta de D. Luis Fajardo a Martín de Aróztegui, escrita em Cádiz a 17 de Maio de 1614.

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BCM, J 22 14/16 (fotocópia de microfilme do documento original existente na Biblioteca de Harvard): «Colecção de vários documentos e papéis régios e administrativos respectivos às armadas e expedições marítimas», folio 136 r.-147 v.

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tardar no dia primeiro de Janeiro do ano seguinte178, a fim de se juntarem às sete unidades que se encontravam em serviço.

O número de cidadãos de Ragusa ao serviço da Monarquia Hispânica aumentou continuamente ao longo da primeira metade do século XVII, iniciando a partir daí uma acentuada decadência, para a qual se apontam variadas razões, como o esgotamento demográfico daquela pequena República, ou o desinteresse motivado pelo crónico incumprimento nos prazos de pagamento das obrigações financeiras contratadas por aquela Monarquia. Qualquer que seja o motivo, na segunda metade do século XVII, quando era já evidente a supremacia naval das novas potências setentrionais (a Inglaterra e as Províncias Unidas), a Espanha via encerrada uma das suas mais importantes fontes externas de recursos navais.

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