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É hoje aceite pela maioria dos investigadores nas áreas da história e da arqueologia navais, a existência de um critério de classificação universal das embarcações que estabelece uma distinção nítida entre embarcações de vela (ou redondos) e embarcações de remo (ou longos). Sem querer pôr em causa esta metodologia, consideramos apropriado e justificável, tendo em conta a dificuldade em caracterizar convenientemente as embarcações europeias em madeira, do período estudado no presente trabalho (séculos XVI e XVII), a adopção de outro tipos de critérios, como os que tenham em conta as características estruturais, as formas e proporções, a propulsão, e a funcionalidade.

No que respeita à classificação das embarcações de acordo com o seu processo conceptual e construtivo, e tendo em conta que estão identificados dois tipos fundamentais - um iniciado a partir da ossatura (skeleton first), outro a partir da modelação inicial do casco (shell first) – não temos dúvidas em considerar as galés europeias da Idade Média e do período moderno, como embarcações concebidas e construídas segundo o primeiro daqueles dois princípios.

Independentemente das suas dimensões, e do número dos seus bancos e remos, as galés foram continuamente construídas segundo um princípio de proporcionalidade que ditava uma relação eslora-manga (isto é, entre o seu comprimento e a sua largura máximas) de 8:1. Mesmo as galeaças venezianas, que foram as maiores de todas as embarcações de remo modernas, apesar de apresentarem uma relação eslora-manga que não excedia os 6:1, podem ser caracterizadas como navios longos.

A propulsão é seguramente o mais polémico dos critérios, quando se trata de classificar a galé, ou mesmo a grande maioria das embarcações ditas de remo.

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Embora esta denominação seja universalmente aceite, o certo é que uma análise mais atenta dos seus sistemas de propulsão aconselha a uma reavaliação daquela classificação. O seu hibridismo conferia-lhe a capacidade para navegar nas mais diversas circunstâncias e condições, o que a tornou na mais completa (embora não na mais eficaz) das embarcações até ao aparecimento da navegação a vapor; capacidade que obviamente faltava aos veleiros, aos quais a gente de remo apelidava depreciativamente de navios «mancos». Se não existem quaisquer dúvidas quanto à complexidade dos sistemas de propulsão mecânica das galés, embora a avaliação do seu rendimento ainda hoje não seja consensual, o desempenho proporcionado pelo seu aparelho latino continua a ser, regra geral, injustamente subavaliado. Para ajudar a contrariar este notório preconceito, não queremos deixar de apresentar aqui dois pequenos exemplos de navegações de longa distância, realizadas maioritariamente à vela, por galés de categorias funcionais distintas, em épocas diferentes.

A primeira, e mais antiga, é a viagem realizada pelas galés venezianas empregues na chamada Carreira da Flandres, que ligava Veneza a Londres, Southampton e Bruges, cuja duração média era de cerca de sete a oito meses, ida e volta, incluindo as escalas. Uma vez ultrapassado o Estreito de Gibraltar a viagem era efectuada inteiramente à vela, e a maioria das vezes sem realizar qualquer escala. As capacidades náuticas destas embarcações (galés de

mercato), construídas exclusivamente para a actividade comercial, eram

capazes de surpreender os seus próprios tripulantes, como se pode ver pela passagem de uma carta escrita por um dos seus capitães (datada de 4 de Novembro de 1498), a propósito da excelência das construções realizadas pelo mestre Marco Francesco Rosso: «As [galés] deixaram Cádiz a 21 de Outubro; dobraram o Cabo de S. Vicente a 22 de Outubro, o Finisterra no dia 24, vogando em direcção a Southampton, sempre com mar grosso e vento forte, tendo chegado à vista de Southampton a 30 [de Outubro]»; Haviam passado dois meses e meios desde que tinham deixado Pula (na Ístria), e destes apenas quarenta de dois dias haviam sido de navegação34. É certo que estas

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embarcações foram construídas propositadamente para a actividade comercial, tendo em conta um tipo específico de navegação (rápida, com poucas escalas, e sem escolta), efectuado em vários contextos geográficos (Mediterrânico e Atlântico), o que as foi diferenciando das restantes galés grossas, e mais ainda das galés sotis; para Frederic Lane esta linha evolutiva das galés da Flandres, transformou-as profundamente, aproximando-as de um ponto de vista estrutural aos navios redondos. Apesar da pertinência da observação de Lane, convém não esquecer, que a despeito da diferenciação das formas, que a documentação e a iconografia da época parecem sugerir, estas embarcações mantinham no essencial, as principais características das demais embarcações longas.

Um segundo caso, não menos notável (segundo a nossa apreciação), diz respeito às viagens transatlânticas realizadas pelas galés espanholas, enviadas da Europa a partir da década de 1570 com o objectivo de assegurar a soberania espanhola sobre os territórios americanos, ameaçada pelo aumento do comércio ilegal e da pirataria. Sobre estas viagens, de que trataremos mais pormenorizadamente num capítulo próprio, limitamo-nos a assinalar que, uma vez libertadas da pressão que a chusma constituía para as suas limitadas reservas de alimentos e de água potável, as galés espanholas, recorrendo apenas ao seu velame, atingiam uma velocidade de cruzeiro de tal forma elevada, que não podia ser acompanhadas por nenhuma das embarcações de alto bordo, chegando ao seu destino vários dias antes das frotas.

Por último, e no que respeita à funcionalidade, preferimos assinalar o desenvolvimento paralelo, iniciado a partir do século XIV, de dois tipos diferenciados de galés (grossa e sotil), utilizadas para o comércio ou para a guerra naval, de acordo com as suas características dominantes (capacidade de carga e velocidade), ao invés de atribuir à galé (em abstracto) uma polivalência ou multi-funcionalidade que, no limite, qualquer embarcação pode possuir.

Em suma, dependendo da época e da sua especialização, as galés utilizaram maioritariamente uma das duas formas de propulsão, ou mesmo uma

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combinação de ambas. Apesar da escassez de dados que permitam uma avaliação rigorosa para as épocas anteriores ao século XVIII, sabemos que as

galeas di Fiandra, que efectuaram uma ligação marítima regular entre o

Mediterrâneo central e o Mar do Norte, realizavam a maior parte da viagem à vela, ao passo que as galés francesas do Mediterrâneo, no século XVIII, (de acordo com os seus diários de bordo) realizavam 20% da viagem exclusivamente à força de remos, outro tanto exclusivamente à vela, e os restantes 60% numa combinação de ambas as formas35.

Os tratadistas do século XVI e XVII adoptaram distintas tipologias para a classificação das embarcações, embora no essencial não diferissem muito entre si. Por uma questão de mera curiosidade apresentamos em seguida um resumo das reflexões que este assunto mereceu ao Padre Fernando Oliveira e ao capitão Pantero Pantera, dois tratadistas cujas obras estão separadas por mais de meio século de distância, e por uma experiência naval baseada em tradições náuticas substancialmente diferentes.

No capítulo IV, do Livro I, da Armata navale, intitulado «De i vascelli, che si usano hoggi nel mar Mediterraneo, e nell’Oceano»36, Pantero classifica as embarcações segundo duas categorias (specie), definidas de acordo com o tipo de propulsão: «facendo alcuni di essi il viaggio à vela senza remi, & alcuni à vela, & à remi». Por aqui se conclui que para o capitão das galés pontifícias não existem embarcações de remo puras, sendo a galé entendida como uma embarcação de propulsão mista. E porque utilizam exclusivamente velas latinas, Pantero diferencia os vários tipos de «vascelli latini, che vanno à vela, & à remi» segundo as suas dimensões: as galeaças, as galés grossas e as galés ordinárias (primeira grandeza); as galeotas, os bergantins, as fustas e as fragatas (medianos); caíques, gôndolas, esquifes, batelli, barchette, felucas (filuchi), e uma grande quantidade de embarcações hoje praticamente desconhecidas, como os castaldelli, speroniere, fisolere, grottoline, peotte (todos de pequena dimensão). Para as grandes embarcações da primeira

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Gardiner, Robert (ed.), The Age of the galley. Mediterranean oared vessels since pre-

classical times, London, Conway Maritime Press, 1995, pág. 204.

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categoria, Pantero considera diferentes subtipos, de acordo com as dimensões e proporções do casco, a dimensão dos remos, a quantidade de bancos, e o número de remeiros por banco. Por seu lado, os veleiros puros, são divididos apenas em dois tipos distintos, consoante o velame utilizado: redondo ou latino.

Nunca existiu qualquer espécie de ordenança primordial que permita ao historiador classificar e diferenciar os diferentes tipos de embarcações de remos, e em particular as galés, embora existam princípios e regras mais ou menos comuns aos diferentes estaleiros mediterrânicos, que os tratadistas do século XVI souberam identificar e sistematizar. Socorremo-nos por isso (uma vez mais) do tratado do capitão Pantero, para estabelecer uma divisão entre os tipos principais de galés utilizadas pelas armadas navais mediterrânicas: a sotil (ordinária) e a bastardella (bastarda). A diferença entre ambas reside, não apenas nas suas dimensões (sendo a sotil mais ligeira), mas também na forma externa das respectivas popas: «divisa come doi spchi d’aglio», na bastardella; «unida», no caso da sotil. Quanto ao resto eram idênticas em tudo, excepto nas características náuticas: a bastardella navegava melhor com vela do que a

sotil, enquanto esta vogava «meglio à remi». Uma e outra podiam instalar um

número de bancos que podia variar entre um mínimo de vinte e seis (mais comum) e um máximo de trinta bancos por banda (no caso das galés reais).

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