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A evolução das condições políticas e comerciais que estiveram na origem do declínio da galé grossa enquanto um dos principais transportadores de mercadorias (especialmente de elevado valor), acabaram por ser igualmente responsáveis pela sua adaptação a um novo tipo de embarcação de combate – a galeaça –, cujo aparecimento parece ter ocorrido por volta de 1550, quando Gian Andrea Badoer mandou instalar, numa daquelas embarcações, um número de peças de artilharia invulgarmente elevado.

O maior problema revelado pelas novas embarcações de guerra, residia na sua reduzida capacidade de progressão e manobra, o que limitava significativamente as eventuais vantagens tácticas da sua utilização. Mesmo em Lepanto, e apesar da sua contribuição para a vitória sobre a armada otomana, muitos observadores contemporâneos preferiram realçar as limitações resultantes da sua reduzida capacidade de manobra [Com efeito, as galeaças tiveram de ser rebocadas para poder ocupar com precisão, e em tempo útil, o seu lugar na vanguarda da armada cristã], do que enaltecer as suas características inovadoras.

A decisiva manobra táctica executada em Lepanto já havia sido tentada anteriormente, embora recorrendo a navios de alto bordo em lugar das galeaças; no entanto a incapacidade dos veleiros para manobrar na ausência de vento, inviabilizava a sua utilização. Ao contrário, ainda que com uma capacidade de manobra e uma velocidade francamente inferiores à das galés ordinárias, as galeaças, ao contrário dos veleiros, podiam superar aquela contrariedade, manobrando à força de remos.

Para dotar as galeaças de capacidades de navegação equivalentes à das galés, e melhorar significativamente a sua prestação em combate, tornou-se essencial proceder a uma correcção do seu sistema de propulsão, tarefa que ocupou uma parte significativa das preocupações (e vastos recursos) dos responsáveis do Arsenal de Veneza durante as três últimas décadas do século

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XVI, e chegou a originar uma discussão teórica em torno de alguns postulados dos Problemata da Mecânica pseudo-aristotélica, que envolveu alguns dos espíritos mais brilhantes do tempo.

A definição e descrição de uma galeaça mediterrânica de finais do século XVI e princípios do século XVII dada por Pantero Pantera é de tal forma precisa (e concisa), que nos parece desnecessário e redundante procurar outra forma mais original (e por ventura mais imprecisa) de o fazer, pelo que nos limitamos a apresentar uma tradução livre de uma curta passagem da sua Armata navale (1612)97, a que acrescentamos (abusivamente, é certo) alguns comentários:

“As galeaças são os maiores de todos os navios, de velas e de remos; são longas e estreitas em relação ao seu comprimento [Na proporção de 1:7,5, no caso da galeaça descrita por Crescentio]; possuem as mesmas partes e os mesmos elementos que a galé. Quanto aos remos, elas possuem tantos quanto uma galé ordinária98, mas estão mais afastados entre si, uma vez que a galeaça é cerca de um terço mais comprida de que a galé ordinária, mais larga e mais alta. O remo da galeaça é consideravelmente mais comprido do que o da galé, por isso, para o manejar são necessários pelo menos sete homens. A galeaça está sempre equipada com três mastros – o principal, de grande altura e grossura, o traquete e a mesena – e três velas. Possui o leme «a la navaresca», isto é, ao modo dos navios [de alto bordo], e um grande remo à popa, em cada um dos flancos, para a auxiliar a virar de bordo mais rapidamente. A galeaça sendo muito pesada e de grande volume, evoluía com alguma lentidão. Hoje em dia [início do século XVII], em Veneza, constroem-se galeaças com tal arte que, ainda que sendo tão grandes como aquelas que se construíam à muito tempo [galés de mercato], e que estejam mais carregadas com artilharia, conseguem evoluir e virar, sem reboque, quase tão facilmente como as galés mais ligeiras (ou sutiles). A galeaça possui, à proa e à popa, dois espaços com dimensão suficiente para colocar a infantaria e a artilharia.

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A partir da tradução em língua francesa publicada por Auguste Jal, Archéologie Navale.

Tome premier, Paris, Arthus Bertrand Éditeur, 1840, págs. 395 e segs.

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Esta afirmação é confirmada pelos dados apresentados na relação e inventário de Andrés de Amezqueta (AMO, vol. III, t. I, págs. 294-308), que atribui um total de quarenta e oito bancos, em ambos os bordos (vinte e quatro por banda), a cada uma das quatro galeaças venezianas que participaram na Armada espanhola de 1588.

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Está permanentemente rodeada por uma alta e sólida pavesada (impavesate), guarnecida com seteiras (feritore), através dos quais os soldados disparam os mosquetes e arcabuzes, fora da vista dos inimigos e sem poderem ser atingidos pelas suas armas. Na sua parte interior, encostado aos bordos, existe um caminho, uma coxia ou vereda, sobre o qual os soldados estão dispostos com grande comodidade, para combater e para repousar. Ao centro, tem um coxia (corsia) que divide a galeaça e liga a popa à proa; possui uma única cuberta, por baixo da qual se reparte um grande número de câmaras e despensas. As galeaças estão armadas com cerca de setenta peças de artilharia, a mais grossa das quais é o canhão de corsia99 [cruxia ou crujia em espanhol], de quarenta libras e bala de ferro. Outros dois canhões de menor calibre estão colocados de cada um dos lados daquele; dez peças de diversos calibres, entre meios-canhões, meias-culebrinas100, moiane101, ou sacres, estão colocadas à proa, em dois sobrados de madeira sobrepostos [sopra et sotto]; na popa estão oito [peças] de idênticos calibres, [...]. Entre cada banco, da proa à popa, a galeaça possui uma peça (pedreiro), de trinta a cinquenta libras de bala de pedra; estes pedreiros sendo curtos são muito cómodos, e podem ser facilmente manobrados nos reduzidos espaços em que estão montados102. Colocam-se tantos (pedreiros) quantos remos existem”.

É bem possível que as galeaças do início do século XVII tivessem incrementado o seu já considerável poder de fogo, o que não podemos confirmar documentalmente. Apenas possuímos dados seguros e

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Peça de artilharia de grande dimensão, peso e poder de fogo, que lançava projécteis de ferro a distâncias medianas. A sua capacidade destrutiva tornou-a especialmente indicada, em terra, para demolir os panos de muralhas durante as operações de cerco, e no mar, instalada à proa e na cursia das galés e galeaças, podia provocar o afundamento de uma embarcação com um único disparo. De acordo com a terminologia da época subdividia-se nos seguintes tipos, consoante os pesos da peça e do projéctil: canhão, meio-canhão, terço de canhão e quarto de canhão.

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Peça de artilharia que lançava projécteis de ferro, de pequena e média dimensão, a uma distância superior á de um canhão, razão pela qual eram especialmente utilizadas nas perseguições a embarcações inimigas. As culebrinas pesavam cerca de 4.000 libras (1.840 Kg.) e utilizavam balas de doze libras de peso, enquanto as meias-culebrinas, mais ligeiras, não chegavam a atingir as 3.000 libras de peso e as suas balas não ultrapassavam as nove libras de peso.

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Ou moyana, em espanhol; peça de artilharia de médio calibre, superior ao da culebrina. 102

Peça de artilharia utilizada indistintamente no mar e em terra, que utilizava bala de pedra (de maior diâmetro que as de ferro) ou metralha de pedra miúda, a curta distância, e com um reduzido gasto de pólvora. Tinha como principais vantagens a relação entre o (elevado) tamanho do projéctil e o seu (reduzido) peso, bem como um reduzido custo de produção.

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suficientemente pormenorizados para as quatro unidades napolitanas que participaram na expedição de 1588 a Inglaterra, mas que são representativos das galeaças mediterrânicas (na sua maioria construídas e abastecida no

Ataraçanal nuevo de Nápoles) que operaram ao serviço da Armada do Mar

Oceano nas duas últimas década do século XVI.

De acordo com os inventários de Andrés de Amezqueta103, foram entregues aos patrões das galeaças “S. Lorenzo” (capitana), “Zúñiga” (patrona), “Napolitana” e “Girona”, por intermédio de Jusepe [sic] de Palmier, «muniçionero del ataraçanal nuevo» de Nápoles, no período de 27 de Março a 2 de Abril de 1587, a quantidade de «municiones, artillería, armas y otras cosas», para serviço de bordo, que adiante se resume.

A galeaça “S. Lorenzo”, de que era patrão Federico Giudice, recebeu: quarenta e três alabardas, cem picas (ou piques), seis partazanas, cem corazinas (couraças), cem espadas, cinquenta rodelas «pintadas con las armas reales»; duzentos barris de pólvora de oitenta e oito quintales e noventa e quatro

rotulos; e cinquenta peças de artilharia de diferentes calibres, a saber: quatro

canhões em bronze (dois de cinquenta libras de bala e dois de trinta e cinco libras); quatro meios-canhões em bronze (dois de vinte e cinco libras e dois de vinte libras); duas meias-culebrinas em bronze, de quinze libras; dois canhões alemães (um de trinta e cinco libras e outro de trinta e uma libras); sete meios- canhões pedreiros, com «ruedas herradas»; sete sacres104 em bronze, de oito libras de bala; quatro meios-sacres, de quatro libras; e vinte esmeris, em bronze, de duas libras de bala.

À galeaça “Zúñiga”, de que era patrão Francisco Panarano, foram entregues quarenta e quatro peças, das seguintes qualidades e calibres: quatro canhões

103

AGS, GA, Sec. Mar y Tierra, Leg. 214, docs. 41, 44, 45 e 46: Relações de Andrés de Amezqueta (1587 Mai. 8, Nápoles); publicado in BMO, vol. III, t. I, doc. 1667, págs. 294-308. 104

Peças de artilharia em bronze (embora ocasionalmente também fosse fundida em ferro) que equivalia a um quarto de uma culebrina. Lançava balas de ferro de quatro a seis libras de peso, com um alcance idêntico aos dos canhões e meios-canhões: O seu peso médio rondava os vinte quintais (oitocentos e doze quilogramas), muito embora Garcia de Palacio lhe atribuisse um peso ideal de vinte e quatro a vinte e oito quintais. Os meios-sacres pesavam entre onze e quatorze quintais (quinhentos e seis e seiscentos e sessenta e quatro quilogramas), e lançavam balas de três libras.

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de bronze (dois de trinta e cinco libras e dois de doze [sic] libras); um canhão alemão, de trinta libras; três meios-canhões (um de vinte e cinco libras e dois de vinte libras); duas meias-culebrinas em bronze, de dezassete libras; sete meios-canhões pedreiros em bronze, de dezassete libras; dois pedreiros pequenos, em bronze, de três libras de bala de pedra; doze sacres em bronze (dois de oito libras e quatro de seis libras); três meios-sacres em bronze; e vinte esmeris, de bronze, de diversos calibres.

A galeaça “Napolitana”, patrão Marco Testa (que antes o fora da galeaça capitana), recebeu: quatro canhões em bronze (dois de cinquenta libras; um de trinta e cinco libras;e dois de quarenta e cinco libras); dois meios-canhões em bronze, de vinte e quatro libras; seis meias-culebrinas em bronze (três de doze libras; uma de quinze libras; e duas de treze libras); oito canhões pedreiros em bronze, de dezasseis libras; seis sacres em bronze, de seis libras; quatro meios-sacres (dois de quatro libras; um de três libras; e um de três libras e meia); vinte esmeris, de diversos calibres; num total de cinquenta peças.

Por último, a galeaça “Girona”, de que era patrão Salustrio de Michele, recebeu um número de peças idêntico ao distribuído às galeças “Zúñiga” e “Napolitana”, a saber: seis canhões em bronze (dois de cinquenta libras, dois de cinquenta e cinco, e um de vinte e cinco); quatro meias-culebrinas (uma de dezoito libras e três de quinze); seis sacres em bronze, de seis libras; quatro meios-sacres, de quatro libras; oito meios-canhões pedreiros, de doze libras; dois quartos de canhão em bronze, de treze libras; e vinte esmeris em bronze, de três libras.

O número e a qualidade a sua artilharia superava a dos melhores veleiros de guerra do seu tempo, os quais, de acordo com os parâmetros introduzidos pelo Conselho de Guerra no começo da década de 1590, deviam armar trinta peças, no caso das embarcações de maior porte (como os da esquadra Ilírica), e os restantes vinte e cinco peças. A galeaça “Zúñiga”, a mais pequena e a menos artilhada das quatro galeaças napolitanas da “Invencível”, dispunha do mesmo número de peças do galeão português “S. Martinho” (quarenta e cinco

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peças)105. Muito raras eram as unidades que, atingiam ou superavam as cinquenta peças de artilharia; entre os raros casos conhecidos destacamos os galeões (da esquadra de Portugal, em 1588) “S. Martinho” (de mil e cem toneladas e quarenta e oito peças), “S. João” (mil e cinquenta toneladas e cinquenta peças) e o “Galeão de Florença”, construído a partir do casco de uma galeaça (novecentos e sessenta e uma toneladas e cinquenta e duas peças).

Para Sir William Monson, admirador confesso das suas qualidades bélicas, a galeaça mediterrânica assemelhava-se, nas suas características - «low and sung by the water» - aos navios ingleses “Vanguard” e “Rainbow”, e possuía uma guarnição e um poder de fogo semelhante ao de um navio de guerra (de alto bordo); mas o que verdadeiramente a distinguia em combate era o facto de estar equipada com remos, que ainda que lhe não conferissem uma velocidade equivalente à da galé, lhe proporcionavam a capacidade para navegar nas condições adversas (contra o vento ou na ausência dele) que obrigam o veleiro a comportar-se como um simples lenho de madeira («log of wood»)106.

105

Que se encontrava no Ferrol em 1591 (AGS, GA, Leg. 341-183). 106

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