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A infância não é um problema filosófico relevante para Platão, segundo Kohan (2005), mas o filósofo a situa em uma análise educativa com intencionalidades políticas, pois educar a infância para ele é possibilitar uma pólis mais justa, mais bela, melhor. Para o autor, Platão se refere às crianças por meio de duas palavras: paîs e néos, sendo a primeira com o sentido de filho ou filha e a segunda, mais utilizada, para designar literalmente o “novo”, “jovem”, “recente”. Outras palavras em grego clássico são utilizadas para referir-se às crianças sem nenhuma exclusividade ou especificidade para alguma etapa ou idade em particular. Para Kohan (2005), talvez a ausência de uma palavra para marcar essa etapa, possa sugerir uma totalidade indissociável em detrimento de partes diferenciadas. Contudo, não significa que Platão não tenha pensado a infância, mas pelo contrário compôs um conceito complexo, difuso e variado da infância: o primeiro é a ausência de uma marca específica, ou seja, a presença de uma ausência associada a uma etapa primeira da vida humana, valorizada em seus efeitos na vida adulta, mas de caráter incompleto, inacabado; a segunda marca é a inferioridade frente ao homem adulto, é a marca do ser desvalorizado e hierarquicamente inferior. Em sua obra As Leis, Platão afirma que as crianças são seres impetuosos, incapazes de ficarem quietos com o corpo e com a voz, sempre pulando e gritando na desordem, sem ritmo e harmonia, de temperamento arrebatado e que devem ser sempre conduzidas por adultos; a terceira é a marca do não importante, o supérfluo, portanto o que pode ser excluído da pólis, o que não tem lugar. Platão, segundo Kohan (2005), não abria espaço para o diálogo filosófico com jovens, mas propunha impedi-los de entrar em contato com a dialética e afirmava que desde a infância deveriam ser ensinadas geometria, cálculos e toda educação propedêutica; finalmente, a infância instaurada pelo poder em que sobre ela, recai o discurso normativo para afirmar a perspectiva de um futuro melhor. Desta forma, as crianças não são interessantes pelo que são, mas porque serão adultos que governarão a pólis no futuro. Portanto, a educação torna-se uma tarefa eminentemente política e determinada.

Enquanto estrutura social e como condição psicológica, a infância surgiu por volta do século XVI e, segundo Postman (1999), desenvolveu-se intensamente durante 350 anos. Para o autor cada nação tentou entendê-la e integrá-la à sua cultura, mas afirma que os gregos prestavam pouca atenção a ela, pois não havia qualquer concepção de desenvolvimento infantil e de escolarização. Embora os gregos tenham inaugurado a ideia de escola relacionada ao ócio, não foram eles que criaram a ideia de infância, mas deram o seu prenúncio. Para

Postman (1999), foram os romanos que iniciaram essa conexão por meio da noção de “vergonha”. Este conceito é considerado importante para o autor, pois para proteger as crianças dos assuntos e segredos dos adultos (como por exemplo, a sexualidade) evoluiu o conceito de infância e começou a ser estabelecida as diferenças entre faixas etárias.

Com a difusão dos escritos no século XVI pelo surgimento da prensa tipográfica, aumentou o acesso à escrita e a leitura. Assim, para Postman (1999) as mudanças culturais advindas do ato de ler contribuíram para a disseminação e hierarquização do conhecimento. O autor revela que havia uma separação entre os que podiam e os que não podiam ler, e que a leitura foi estabelecida como coisa de adulto. Para as crianças entrarem no mundo letrado exigia-se uma educação, desse modo, com a necessidade da alfabetização expandiu-se a ideia de criação de escolas e assim foi instaurada uma nova concepção de infância baseada na incompetência da leitura. Para conquistá-la a educação tornou-se indispensável. A civilização europeia para Postman (1999) reinventou as escolas, pois transformou a infância em necessidade, sendo o primeiro estágio o de domínio da fala e o segundo o início do aprendizado da leitura.

No decorrer dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX Postman (1999) afirma que mudanças foram acontecendo na diferenciação entre crianças e adultos, tais como: vestuário, linguagem diferenciada entre crianças e adultos, literatura diferenciada para crianças, entre outras, formando assim a ideia de existência de estágios do desenvolvimento infantil.

Nos estudos sobre a história social da criança desenvolvidos por Ariès (2006), o autor afirma que o sentimento da infância na sociedade medieval não existia e para explicar esse sentimento ele diz que este não significa afeição por elas, mas sim a consciência da particularidade infantil que distingue a criança do adulto. Para Ariès a sociedade via mal a criança e a duração da infância era reduzida a um período de fragilidade, ou seja, assim que a criança conseguisse algum desembaraço físico, era misturada aos adultos e tornava-se um homem jovem. A socialização das crianças segundo ele, não era assegurada e nem controlada pela família e a aprendizagem delas era garantida pela convivência com os adultos, ou seja, a criança aprendia o que deveria saber ajudando os adultos a fazê-las. Assim, a passagem da criança pela família e pela sociedade era breve e insignificante e a arte medieval por volta do século XII nem tentava representá-la.

Na Idade Média, as “idades da vida” ocuparam lugar importante nos tratados pseudocientíficos da época segundo Ariès (2006), pois foram empregadas terminologias como: infância e puerilidade, juventude e adolescência, velhice e senilidade, sendo que cada

uma dessas palavras designavam um período diferente da vida. A este estudo coube atentar à terminologia infância.

As “idades da vida” era um termo considerado erudito que com o tempo tornou-se familiar, conhecido, repetido e usual, passando assim de um conhecimento científico para a experiência comum. A idade do homem anuncia Ariès (2006), era uma categoria científica que pertencia a um sistema de descrição e de explicação física no século VI a.C. que inspirava livros de vulgarização científica. Modo como os conceitos da ciência tornava-se familiar e passavam a hábitos mentais e na representação da vida cotidiana, pois traduziam noções que na época correspondiam ao sentimento popular e comum da vida. Assim, nos textos da Idade Média a primeira idade é a infância, idade chamada de enfant (criança), que quer dizer não- falante.

O termo enfant no início do século XVIII, segundo Ariès (2006), foi descrito pelo dicionário francês Furetière como “termo de amizade utilizado para saudar ou agradar alguém ou levá-lo a fazer alguma coisa” (ARIÈS, 2006, p. 12). Falava-se em “pequenas almas”, “pequenos anjos”, expressões que anunciavam sentimentos e seu romantismo. Porém, nos séculos XIV e XV, final da Idade Média, percebe-se que o termo era empregado na França tanto para um rapaz, como para uma criança, pois até o século XVIII não havia lugar para a adolescência. Neste período segundo o autor, esta foi confundida com infância, mas que no século XVII esse termo tornou-se mais frequente.

A criança, para Ariès (2006), não estava ausente na Idade Média, mas não era retratada de modo real, pois na iconografia estava relacionada a temas de anjos e infâncias santas, porém, esta era uma representação que estava caracterizada pelo seu tamanho, nada além. A descoberta da infância é anunciada por Ariès (2006) no século XIII, entretanto até o fim deste, as crianças não eram caracterizadas por uma expressão particular, mas já se encontrava cenas, como na Bíblia de São Luís, de acentos de ternura, raros e limitados ao Menino Jesus até o século XIV. A partir deste, o autor sinaliza que se verificaram progressos na consciência coletiva do sentimento de infância, pois os artistas começaram a destacar os aspectos graciosos, ternos e ingênuos da primeira infância como: a criança buscando o seio da mãe, brincando ou comendo, entre outros. Neste período, observa-se que traços do realismo da vida cotidiana eram tratados com mais frequência e a infância religiosa deixava de se limitar à infância de Jesus. Começou a florescer histórias de crianças nas lendas e contos que se manteve até o século XVII.

Especial importância é dada por Ariès (2006) ao século XVII, pois a evolução dos temas da infância se tornou mais comum nesse período e à criança foi dado um lugar

privilegiado em cenas de infância de caráter convencional: a lição da leitura, a lição de música ou grupos de crianças brincando. Assim, o autor afirma que sinais de desenvolvimento tornaram-se mais significativos a partir do século XVI e durante o século XVII, e que houve até mesmo mudanças importantes relacionadas à família para com a criança, pois esta modificou profundamente à medida que modificou suas relações com a criança.

Ao atentar para as transformações e evoluções da iconografia religiosa da infância, Ariès salienta que a criança se tornou personagem frequente dessas pinturas e inspirou cenas até o século XIX, mas em geral não como descrição exclusiva da infância. Para o autor, essa ideia sugere: primeiro, crianças misturadas com adultos; segundo, pintores gostavam de representar crianças por sua graça. Dessas duas ideias, o autor parte para o que temos hoje: uma tendência arcaica a separar o mundo das crianças do mundo dos adultos e outra que anuncia o sentimento moderno da infância.

Em contraponto aos estudos de Ariès (2006), para Heywood (2004) a infância na Idade Média na Europa não foi ignorada, mas definida de forma imprecisa e, por vezes, desdenhada, pois a elite instruída preferia mostrar a criança como uma criatura pecadora, “um pobre animal suspirante”. Heywood (2004) afirma que os autores medievais preferiam falar sobre os adultos. Contudo, a infância era reconhecida também como um processo, ou seja, havia uma compreensão da dinâmica do crescimento. Entretanto, segundo o autor, a peculiaridade da infância medieval europeia resume-se a desestruturação e indefinição, uma vez que havia a ciência das etapas de desenvolvimento com nivelamento de responsabilidades, a infância e a adolescência pareciam distintas e especiais naquele período, mas elas pouco opinavam sobre suas questões. Para os ingleses, o autor anuncia que houve um silêncio de mil anos com relação às crianças, entre Santo Agostinho e a Reforma, com raras exceções em poemas e referências autobiográficas, pois quem escrevia a história na Idade Média, escrevia sobre reis, batalhas e principalmente sobre política.

A figura de destaque no século XVIII na reconstrução da infância para Heywood (2004) foi Jean-Jacques Rousseau. Para o autor, foi ele quem se opôs mais intensamente à tradição cristã do pecado original, com o culto da inocência das crianças. Sua obra foi considerada radical, pois sendo assim consideradas, as crianças correriam o risco de serem sufocadas por preconceitos, autoridades e instituições a que estão submetidas. Rousseau argumentou que as crianças “tem formas próprias de ver, pensar, sentir” (1999, apud, HEYWOOD, 2004, p. 38) e uma forma particular de raciocínio diferente da razão do adulto. Assim:

Não se conhece a infância; no caminho das falsas ideias que se têm, quanto mais se anda, mais se fica perdido. Os mais sábios prendem-se ao que aos homens importa saber, sem considerar o que as crianças estão em condições de aprender. Procuram sempre o homem na criança, sem pensarem no que ela é antes de se tornar homem (ROUSSEAU, 1999, apud HEYWOOD, 2004, p.04).

O autor centrou-se, sobretudo, na incapacidade de se conceber a criança na sua especificidade, apenas a considerando como um adulto em miniatura. Na perspectiva rousseauniana a criança deveria ser tratada e compreendida de acordo com a sua subjetividade e especificidade, uma vez que a mente infantil opera diferentemente da do adulto, ou seja, a mente infantil não é nem carente, nem insuficiente, mas se estrutura de outra forma. Com ele nasce uma filosofia da educação onde aparece um forte afeto pela criança.

De forma irrefutável, as concepções de Rousseau foram determinantes para a expansão e modernização das representações e das práticas da infância, edificando plenamente o conceito de infância ao ter constatado que a criança deve ser apreendida na sua especificidade.

No final do século XVIII e início do século XIX houve uma mudança na noção rousseauniana. Ao contrário de Rousseau, a concepção romântica de infância, apresentou as crianças como “criaturas de profunda sabedoria, sensibilidade estética mais apurada e uma consciência mais profunda das verdades morais duradouras”, de acordo com o historiador David Grylls (apud HEYWOOD, 2004, p. 39). Visão que gerou a noção de infância como um tempo para a educação do self do adulto. Assim, foi redefinida a relação entre adultos e crianças, de modo que esta agora poderia educar o educador.

Nos Estados Unidos, por volta de 1750, havia menor preocupação das famílias em apresentar as crianças como adultos em formação, mas sim como imaturas e de atitudes lúdicas. Heywood (2004) afirma ser possível dizer que a obra de William Wordsworth de 1807 influenciou poderosamente as ideias sobre infância do século XIX quanto Freud para os dias atuais, pois ficaram evidentes as perdas de qualidades visionárias das crianças como, por exemplo: “mensageiros do paraíso”. Entretanto, o autor sinaliza que a visão do pecado original custou a desaparecer, pois a ênfase na inocência das crianças tinha pouca relevância já que os moralistas concebiam a criança como dotadas de uma natureza má e que os pais deveriam conter-lhes a paixões perversas.

Ainda na Europa, De Lauwe e Feuerhahn (2001) ponderam sobre o modo como a criança é compreendida na França, e afirmam que ela é marcada por sua história pessoal, um sujeito que vive no presente, no meio social no qual está inserido em uma relação de categoria dominada e categoria dominante. Essa relação para os autores imprime nas representações da criança uma marca que designa o lugar do sujeito que se expressa. O efeito desse processo nas

crianças seria a transmissão social de modos de pensar e de descrever a infância. Os autores dizem que a passagem de uma linguagem “sobre” a criança a uma linguagem “pela” criança pode ser traduzida em múltiplos significantes, que são as diferentes imagens das diversas características dos comportamentos e atitudes. O conjunto desses significados parciais unifica-se, segundo De Lauwe e Feuerhahn (1991, p. 30), “para constituir um ideal abstrato de criança”.

Ao discorrer sobre como eram percebidas as crianças ao longo do tempo, De Lauwe e Feuerhahn (1991) destacam que as representações da infância variaram ao longo da história. Alguns historiadores afirmaram que a infância era uma descoberta recente. Pois, do século X ao século XIII a criança era representada como um adulto reduzido. Até o século XVII, era percebida como desinteressante e a maioria dos autores se referem à infância de maneira negativa, próxima da animalidade e do pecado. Com a evolução do direito, o modo de pensar e situar a criança abre caminho para uma nova atitude referente a ela, onde os pais já não são mais proprietários dos filhos, mas responsáveis por eles. No fim do século XVIII uma tomada de consciência dos direitos do indivíduo e das categorias mais frágeis inverte o sistema de valores e a família burguesa passa a considerar mais a criança. Nesse momento o sistema educacional tenta compreender os seus sentimentos, especificando um novo estatuto para a criança, o escolar, futuro adulto a ser formado. Na segunda metade do século XIX percebe-se a idealização da infância, em que a criança mais do que um ser em desenvolvimento, é investida da projeção de desejos de uma sociedade, que não garante a compreensão das necessidades reais das crianças, pois são compreendidas irrealisticamente e consequentemente educadas em função de modelos dos adultos.

Na década de 60 a 70 a criança já não é mais percebida como um ser a ser protegido, mas sim como pessoa e sujeito autônomo, ator social que participa de decisões que lhe dizem respeito.