• Nenhum resultado encontrado

2.4 A DISCIPLINARIZAÇÃO DA INFÂNCIA

2.4.1 DE CRIANÇA A ALUNO

Para o estudo, foi realizado um levantamento sobre a diferença do conceito de infância e aluno, de criança e crianças e das imagens sociais da infância. Obteve-se na análise a existência de significados plurais sobre diferentes campos semânticos e imagens de crianças construídas ao longo da história por discursos sociais de diferentes naturezas onde se

identificam discursos religiosos, científicos, jurídicos. A esse fenômeno, Moscovici (1978) chamou de sistemas cognitivos, sendo que um é operacional onde se faz associações, inclusões, discriminações e deduções, o outro controla, verifica e seleciona através de regras, lógicas ou não. Trata-se, segundo Moscovici de um metassistema composto por normas sociais e que pode variar segundo seus princípios de organização. A esse respeito, Doise (2011) pontua como tarefa para os psicólogos sociais o estudo das relações entre as normas sociais e o funcionamento cognitivo, pois a atualização das regulações feitas pelo metassistema social no sistema cognitivo constitui o estudo das representações sociais. Esta perspectiva não está contemplada nos objetivos do presente estudo. Porém, contextualizá-la no debate torna-se relevante tendo em vista a importância da compreensão do funcionamento do sistema cognitivo como metassistema no estudo das normas sociais.

No levantamento das imagens sociais sobre a infância percebe-se que existem pontos de ancoragem no decurso da história que possibilitam visualizar e compreender a incorporação e assimilação de novos elementos integrados em um sistema de valores, e que pode traduzir a identidade cultural e a mentalidade grupal na produção do sentido da infância. Sobre o processo de ancoragem Almeida (2011), ao citar Jodelet (1984; 1988; 1989) diz que ela vincula a ancoragem ao enraizamento social da representação e de seu objeto e que a representação é utilizada como um sistema de interpretação do mundo.

Para compreender melhor essa incorporação e assimilação de elementos em um sistema de valores, Javeau (2005) contribui com a análise do campo semântico da criança e da infância e anuncia que a faixa etária do recém-nascido no senso comum é chamada de “infância”, e que o campo semântico, construído socialmente, desse momento da vida é o da improdutividade. Da mesma forma, o autor analisa a imagem do aluno visto como investimento por um sistema de competências, em que o imperativo econômico aparece disfarçado pelo imperativo ético do êxito.

Quanto ao campo semântico da criança, esta é considerada um objeto abstrato ao ser destinada a passar por níveis diversos de aquisição de competências que desconsideram o contexto concreto do seu desenvolvimento. O autor afirma que se não se nasce criança, vem- se a sê-la. No campo semântico das crianças, estas são consideradas uma população de plenos direitos e que não devem ser vistas como uma cópia de adultos em miniatura. Trata-se de um conceito que coloca em evidência as significações que as crianças atribuem aos estilos de vida que levam, tanto na perspectiva da cultura, quanto dos processos de socialização em ação que comporta projetos, ritos e transações espontâneas com o mundo dos adultos. Nesse sentido, constituem-se como objetos vastos de investigação.

A fim de compreender o que se entende por infância educada, obteve-se em Kohan, (2005) o pensamento de Hannah Arendt e a ligação que a autora faz entre educação e nascimento, a qual a educação é apresentada pela autora como uma reação à experiência do nascimento, tendo em vista que este é um início, um começo, uma resposta dos velhos aos novos. Assim, Kohan afirma que há educação porque é preciso responder a esse nascimento. Porém, ao questionar para que se educa, o autor anuncia que há rupturas e continuidades de sentidos, uma vez que se dá o mesmo tratamento à novidade, à diferença. Assim, a educação como recepção da alteridade, é legislada por uma normatividade que procura a instauração do mesmo. Nesse sentido, Arendt (1995) discorre que a relação humana com o mundo é mediada pela educação, mas nunca é dada de antemão, por isso deve ser tecida a cada nascimento, não como pronto e acabado, mas continuamente repensada em função das transformações do mundo e dos recém-chegados. A autora revela que justamente pelo fato do mundo estar continuamente sujeito à novidade e a instabilidade provocada pelos nascituros, deve-se contribuir para que instituições políticas e leis não sejam transformadas em interesses privados de poucos. A esse pensamento Arendt (2005) denomina de amor mundi, uma vez que quem educa não é concebido pela autora como aquele que assume responsabilidades apenas pelo desenvolvimento da criança, mas também pela continuidade do mundo, pela responsabilidade com o ele, por sua conservação e continuidade. Para a autora se trata de apresentar ao jovem um conjunto de estruturas políticas, científicas, racionais, históricas, linguísticas, sociais e econômicas como constituintes do mundo em que vivem. Desta forma, a educação possui um papel político de formação para o cultivo e o cuidado com o mundo comum que pode ser transformado, mas deve estar sujeito também a conservação. Lugar difícil, instável e talvez paradoxal na concepção da autora, pois ao considerar a educação como responsável pela capacidade humana de conservar e transformar o mundo, protegendo as crianças das pressões deste, ao mesmo tempo deve-se preparar a criança para conservá-lo e transformá-lo futuramente. Para Arendt (2005), essas responsabilidades são conflitantes, pois ambos necessitam de proteção e por isso considera a tarefa da educação difícil, crítica, sujeita a crises e um constate repensar.

Na busca pela compreensão de como foi construído o que chamamos hoje de aluno e o modo como chegamos a representá-lo, Sacristán (2005) revela uma construção social de adultos, pois estes são os responsáveis pela organização da vida dos não adultos. Ser aluno, na visão do autor, supõe acumular uma dupla carga semântica, a de ser menor e a de ser escolarizado em meio a variações culturais na forma de conceber a ambos. Como hipótese da consolidação da imagem social de aluno, esta deve ter ocorrido simultaneamente à expansão

dos sistemas educacionais urbanizados, em que na vida cotidiana, do ponto de vista histórico, ser aluno nos é equivalente a ser menor, estar na infância. Para Sacristán, ambos os conceitos, aluno e infância, compartilham um mesmo significado para nós porque foram construídos simultaneamente. Porém, ser aluno é ser estudante ou aprendiz, categorias que supõem comportamentos, regras, valores e propósitos que devem ser adquiridos por quem pertence a essas categorias que proporcionam uma identidade a quem tem essa condição. Já a imagem de infância o autor acredita ser difícil reconstruir os passos seguidos pela cultura, uma vez que isso aconteceu num processo de aprendizagem obtido no exercício de práticas relacionadas com a maneira de tratar os mais novos, e que acumularam ideias, atitudes e sentimentos sobre ela.

Ser aluno, no âmbito da escola e da sala de aula, tal como é conhecido e representado atualmente, é para Sacristán (2005) uma invenção tardia e uma maneira de se relacionar com o mundo dos adultos. Pois, para o autor, existe nessa relação uma ordem regida por padrões através dos quais estes exercem sua autoridade. Assim, é uma forma de exercício do poder sobre os menores.

Ao considerar a evolução do papel dos adultos especializados no cuidado e na educação dos menores, Sacristán (2005, p. 127) considera que “Se aluno é aquele que é educado e ensinado, a constituição dessa figura deve ocorrer ao mesmo tempo em que a daqueles que desempenham as funções recíprocas: a de quem o educa e ensina”.

O professor tornou-se a figura que acumulou e assumiu perante a sociedade e com o seu reconhecimento, a missão de educar e difundir cultura, tendo em vista que foi investido do papel de pais no cuidado, na moralização dos menores e de especialista na difusão de alguns saberes. Desta forma, o autor diz que houve um processo de transferência da função de educar, que antes eram desempenhados pelas famílias e pela igreja. Neste longo processo, ocorreu um processo ambíguo de relação maternal afetiva e severidade, próprios da mãe, pois o professor a substituiria ou prolongaria esse modelo de relação, combinando as duas funções. Assim, o professor assume o papel disciplinador entendido como profissionalismo docente.

2.5 As leis brasileiras, criança e seus papeis sociais: o aluno, o menor e o sujeito de