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Embora seja possível dizer que o homem tem uma natureza, é mais significativo dizer que o homem constrói sua própria natureza, ou, mais simplesmente, que o homem constrói a si mesmo.

(BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 72)

A idéia de uma construção de nós mesmos e do mundo a no ssa volta, requer que admitamos algumas condições básicas de existência, que vão subsidiar tal processo construcionista da realidade. Para tanto a realidade é aqui compreendida como pertencente a uma classe de fenômenos que existem independentes de nossa volição, mas que pode ser interpretada, vivenciada e até mesmo idealizada a partir de uma infinidade de possibilidade fenomenológicas, o que se configura como a construção de multi-versos, presente nas idéias de Alfred Schütz (apud SCHRÖDER, 2006).

Compreendendo a realidade como um dado externo, anterior à existência pessoal, esta [realidade] é transferida e contaminada ao mesmo tempo para e pelo indivíduo. A partir de costumes, hábitos, valores e crenças o indivíduo encontra-se imerso numa realidade da qual se torna partícipe no tempo, construindo e assimilando uma ordenação dessa realidade que a partir das interações entre humanos, torna-se social.

Ao contrário do que possa aparentar nem a realidade, nem o conhecimento sobre algo, são uníssonos ou caminham na mesma direção, ambos dependem dos contextos sociais para que possam ser compreendidos e conhecidos.

Schröder (2006, p.20), numa leitura de Alfred Schütz, autor de fundamental para as teorias de Berger e Luckmann, nos auxilia a compreender melhor o modo como esta realidade externa é internalizada e construída pelo indivíduo. Segundo Schröder: “A realidade se constitui através da forma específica como o homem se direciona às coisas, ela nasce na maneira da sua atitude perante as coisas. Portanto, mudanças na atitude cognitiva mudam o mundo também.”

Na teoria construcionista de Berger; Luckmann (1985) chama-nos a atenção o fato de ser a vida cotidiana que se apresenta, uma interpretação que antecede o individuo, dotada subjetivamente de sentido e coerência. Organizada a partir de

necessidades corporais que exigem respostas satisfatórias para o aqui e agora do indivíduo.

Este caráter prático da realidade cotidiana acaba por tornar verdade consensual, dentro de um determinado grupo, o entendimento deste cotidiano como sendo a realidade. Uma ressalva deve ser feita para o fato de que o mesmo indivíduo pode experimentar mais de uma realidade no mesmo espaço. Nesse estudo, vamos considerar as atividades cotidianas como realidade, com o intuito de melhor compreendê-las.

Ao acordar pela manhã o individuo está envolto pelo tempo que o liga aos acontecimentos do dia anterior, aos afazeres cotidianos de seu presente e aos planos que estrutura para o futuro, ou seja, tem ele a realidade cotidiana emaranhada com o passado, presente e futuro. Se não é possível termos acesso ao passado ou ao futuro, é no presente e no cotidiano que o indivíduo tece novas relações que confirmam e reconfiguram sua realidade. Ocorre que o presente não é partilhado unicamente por um indivíduo, mas ao contrário, nosso tempo é partilhado permanentemente com um outro, ou outros, e requer do indivíduo formas de relacionamento que medeiem tais circunstâncias.

Há um tipo de relação, chamada face a face, que possivelmente seja a que permite maior apreensão do outro e maior possibilidade de compartilhar o tempo presente, vivido pelos indivíduos envolvidos nesta relação. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 47)

Nesta relação de proximidade com o outro, tomamos este como espelho e sinalizador para reconhecer como são, ou como não são todas as coisas, situações e até pessoas ao nosso redor. A partir desta relação construímos representações do que venha a ser a realidade compartilhada.

Há, porém um perigo que pode rondar esta relação inevitável. Dentro do cotidiano, quando se está em contato face a face com pessoas, com as quais não temos tempo suficiente para conhecê-las, usamos esquemas sociais tipificados, pré-realizados pelos grupos sociais, que permitem a apreensão facilitada do outro ou das situações, antes mesmo da relação face a face ser vivenciada. O perigo do uso contínuo destas tipificações torna-se danoso e até mesmo insuportável, quando o individuo passa a se relacionar com o(s) outro(s) a partir unicamente destes referenciais de apreensão a priori.

Do mesmo modo como ocorre com as pessoas, também é possível a criação e adoção de tipificações acerca de circunstâncias, eventos e coisas que permeiam nossa existência. Podemos compreender então, que a estrutura da vida social é a somatória de tipificações que são compartilhadas e pactuadas, tornando-se assim parte da realidade. Tal entendimento nos possibilita compreender a realidade a partir de sua aparência, do modo como esta é percebida e interpretada pelos participantes, e não pelo modo como elas possam ser de fato.

Nas interações sociais da vida cotidiana, as relações do tipo face a face possibilitam o acesso à subjetividade do outro no momento da relação. Entre os indivíduos, este tipo de relação, faz com que, em alguns momentos, seja possível ter a sensação de conhecer melhor ao outro do que a si próprio.

Outros tipos de interações sociais podem se derivar desta, podendo a relação face a face ser objetivada de maneira simbólica através de artefatos, objetos e sensações que podem trazer à memória a presença vívida do outro por um instante, através dos sentidos: olfato, tato, paladar, visão e audição. Estes sentidos se combinam para compor e proporcionar sensações, que nos trazem vividamente à lembrança do momento face a face vivido no passado. Berger; Luckmann (2004), salientam que estes artefatos, produtos da interação humana com o meio, servem como índices mais ou menos duradouros dos processos subjetivos daqueles que os produziram, permitindo então que as interações se estendam além dos momentos vividos.

Neste sentido, a idéia e a importância do ensino de arte, se justificam nas idéias de Berger e Luckmann, que dizem:

Estou constantemente envolvido por objetos que “proclamam” as intenções subjetivas de meus semelhantes, embora possa às vezes ter dificuldade de saber ao certo o que um objeto particular está “proclamando”, especialmente se foi produzido por homens que não conheci bem, ou mesmo não conheci de todo, em situação face a face. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p.54)

Auxiliar na construção de sentidos e significados de objetos produzidos pelas culturas é o papel primordial da arte-educação, buscando refletir sobre as tipificações a partir da assimilação e construção de novos significados com as obras e objetos estéticos.

Este momento de interação faz-nos pensar sobre o quanto os arte-educadores, apreciariam momentos de face a face com aqueles artistas que admiram, bem como

com aqueles que não causam tão boa impressão, possivelmente descobririam que utilizam alguma idéia tipificada acerca da produção destes artistas.

Esta imprecisão instrumental da leitura da imagem, acerca da subjetividade presente nas obras artísticas, evidencia uma fragilidade na comunicação e na compreensão entre obras de arte e observadores/apreciadores. Muito do que aprendemos e conhecemos acerca da Arte nos foi transmitido através de um entendimento prévio, de alguém ou de algum grupo, chegando a nós em muitos casos idéias já retificadas sobre estes objetos.

Apesar de imprecisa, ou parcial a linguagem é a forma pela qual melhor transmitimos nossos pensamentos, e esta é considerada e definida como um sistema de sinais, sendo a verbal, dentre todos os sistemas de linguagem, o mais importante sistema de sinais das sociedades humanas.

A vida cotidiana é acima de tudo, vida com linguagem. Sem este instrumento, desenvolvido e compartilhado por indivíduos de um mesmo grupo, as experiências e saberes acumulados pelos antigos se perderia com a fragilidade da carne. É através da linguagem que participamos e comungamos com nossos semelhantes as experiê ncias cotidianas objetivas; bem como aquelas que não são objetivas, mas ainda assim são vívidas e significativas para a nossa existência. (BERGER; LUCKMANN, 1985).

Estas experiências vívidas e significativas, mas não objetivas, encontram em nossa existência maior dificuldade de serem transmitidas com exatidão. Neste âmbito se localizam as experiências estéticas e as religiosas. Nestes campos de conhecimento existe uma maior possibilidade de criarmos segmentos de significação, caracterizando - se como subuniversos [sic] de significação. Justamente por tratar-se de um conhecimento dotado de especificidades objetivas, mas que traz como bagagem uma considerável carga de subjetividade e experiência pessoal. Segundo Berger e Luckmann, “não é preciso dizer que esta multiplicação de perspectivas aumenta muito o problema de estabelecer um docel estável simbólico para a sociedade inteira” (p.119).

O conhecimento é de fato um produto social e a gente de transformação da sociedade; será então a partir linguagem que as interações sociais se realizam, através de símbolos configurados e comungados dentro do próprio grupo que promovem tal transformação.

A linguagem oral carrega consigo, possivelmente, uma qualidade que a distingue de todas as outras formas de linguagem. Numa co nversa consegue-se

articular idéias, expressas em palavras, bem como é possível sincronizar todo o corpo que irá também se comunicar, corroborando com o manifesto em palavras ou ao contrário, indicando um desencontro de idéias. Ambos os personagens envolvidos na conversa vivenciam o aqui e agora da linguagem, assimilando objetivamente o significado das palavras e as intenções subjetivas presentes nos gestos que acompanham o diálogo, é realizado o face a face das interações sociais.

O caráter excepcional da linguagem, dentro da Construção Social da Realidade dá-se principalmente pelo fato dela [a linguagem], transcender o espaço vazio entre meu universo de experiências e saberes e o do outro. Através dela podemos trocar impressões, idéias, transgredir a dimensão tempo e espaço, pode-se ainda criar conceitos e tipificações altamente abstraídos da experiência diária.

Torna-se assim de interesse geral, entender a importância da linguagem oral, porém no universo observado por esta pesquisa salientamos que a cada d ia, a ocorrência da linguagem visual faz-se presente como elemento de comunicação, comumente interpretado a partir de idéias e conceitos tipificados.

Vivo em um mundo de sinais e símbolos todos os dias. O universo individual e coletivo de conhecimento é co tidianamente ampliado pelo acervo social disponível do conhecimento, o mesmo acontece na direção oposta, o acervo social disponível do conhecimento é constantemente ampliado pelos indivíduos e pelos grupos, através da comunicação de idéias e percepções sobre a realidade objetiva e/ou subjetiva (BERGER; LUCKMANN, 1985).

A existência humana ocorre deste modo, num mundo de linguagens e de interações sociais, que validam o conhecimento sobre as coisas, até o momento em que surge um novo problema que não encontra solução dentro dos termos estabelecidos e conhecidos anteriormente. Os acervos de conhecimento pessoal e social disponível são deste modo revistos e ampliados.

Importante lembrarmos que a distribuição destes conhecimentos não dá-se de forma homogênea e/ou regular, haja vista estes não serem partilhados com todas as pessoas do mesmo modo e intensidade, a partir destas diferenças os subuniversos são criados.

Estes subuniversos se dividem entre grupos que estão dentro das normas legais e que detêm os conhecimentos reificados, todos que divergem e discordam de tais saberes são mantidos fora do subuniverso. Para tanto, devem ser criados procedimentos práticos e teóricos que preservem quem está dentro e mantenham fora

quem está fora. Um exemplo dessas formas e sistemas de exclusão e reserva de saberes podem ser os conselhos profissionais, que habilitam pessoas capacitadas, acadêmica e/ou tecnicamente, para o desempenho de determinadas funções.

Podemos pensar que a própria produção plástica contemporânea pode ser um outro exemplo de procedimentos mantenedores dos subuniversos. A partir de procedimentos inovadores e com um gigantesco distanciamento dos conceitos de arte compartilhados pela maior parte da sociedade, tem se fechado ao entendimento social a partir de discursos e de manifestações artísticas que exigem dos que estão fora do circuito artístico, informações adicionais que não estão disponíveis na própria obra.

Importante salientar que não estamos buscando eliminar os subuniversos, apenas salientamos a importância dos diálogos entre estes grupos dentro desta visão construcionista. A idéia de um universo de conhecimento legitimamente aceito, reificado, pode pressupor o afastamento do homem em relação ao mundo, já que as relações passam a ser mediadas por uma estranha facticidade que antecede os acontecimentos. Nesse sentido os subuniversos promovem o movimento necessário para construção permanente da realidade.

O que é considerado como socialmente natural pelos indivíduos é uma construção feita em parceria, ainda que o outro possa achar pouco natural o que um individuo julga natural. Nesse ponto reafirmamos a citação feita no início desse item, onde a idéia de construção de uma natureza humana é o próprio processo de construir a si mesmo.

Tal construção é um contínuo desenvolvimento social e cultural, mediados pelas linguagens e seus significados. Sabe-se hoje que apenas uma pequena percentagem das experiências humanas torna-se lembrança consciente e reconhecível. Esta pequena quantidade de experiência que compõe o substrato dos conhecimentos seria morta ou inválida, caso não se pudesse compartilhar um acervo coletivo de conhecimento (BERGER; LUCKMANN, 1985).

Os grupos sociais objetivam nas linguagens e incorporam através delas um conjunto maior de experiências, vivências e idéias sobre o mundo. Lendas, tradições, crenças, hábitos entre outros aspectos acabam por se sedimentar e tornam-se, novamente através das linguagens, possíveis de serem ensinados e vivificados em tempos e espaços distintos.

Sendo então a realidade dotada simultaneamente de objetividade e subjetividade, Berger e Luckmann identificam ainda dois tipos de socialização entre os

humanos que fazem parte desse processo de sucessão de conhecimentos, crenças e valores:

 Socialização primária, que ocorre nos anos iniciais de vida em grupo experimentado pelo indivíduo ainda na infância. É nesta fase que o individuo se identifica como membro de um determinado grupo, neste momento ocorre a partir de uma ação dialética, os fenômenos de exteriorização, objetivação e interiorização do mundo, sendo que tais acontecimentos não podem ser analisados em separado. É o momento de introdução dos indivíduos no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 175)

 Socialização secundária, que consiste em qualquer outro processo subseqüente a socialização primária, que introduz o indivíduo na realidade objetiva de um grupo social. Toda estrutura da socialização secundária seve seguir as bases oferecidas pela socialização primária. Será a partir das definições manifestadas pelo individuo a partir das situações particulares, que irá definir a realidade objetiva. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 175)

Em função do poder de esquecimento e da preguiça [sic] humana, os grupos sociais criam momentos de aprendizagem para rememorizar e reimprimir os conhecimentos apreendidos pelos processos de socialização. Nestes momentos, os significados institucionalizados são simplificados e comumente organizados em pequenas fórmulas, para que possam ser aprendidas e gu ardadas pelas gerações futuras.

Nesse processo de construção social, as sociedades passam por três momentos distintos em que os indivíduos interagem com o conhecimento social acumulado, são eles: exteriorização, objetivação e interiorização. Estes momentos ocorrem de forma não linear com os grupos sociais e não podem, mesmo a título de análise, serem verificados separadamente, haja vista acontecerem simultaneamente. “O mesmo é verdade com relação a um membro individual da sociedade, o qual simultaneamente exterioriza seu próprio ser no mundo social e interioriza este último como realidade objetiva.” (BERGER; LUCKMANN, 1985, p.173).

O ponto inicial desses momentos ocorre no nascimento do indivíduo, a partir da interiorização imediata de acontecimentos objetivos e subjetivos manifestos pela família, sendo estes dotados de sentidos e significação para esse núcleo social. Nesse processo de interiorização a compreensão não é, necessariamente, fiel ao sentido objetivado pelo indivíduo que a manifesta, exterioriza, podendo aquele que a interioriza compreende-la de modo diferente. Por exemplo, lágrimas podem ser interiorizadas e compreendidas como sendo um momento de tristeza, quando em realidade o indivíduo que as objetiva, de fato está apenas emocionado, possivelmente feliz.

Compreendemos então a realidade como uma construção social, resultante de acontecimentos que precedem o indivíduo, mas que simultaneamente é elaborada por este a partir das vivências dentro dos grupos sociais, mediado pelos processos de interiorização, objetivação e exteriorização. A partir deste entendimento é possível afirma que a realidade como única é no mínimo improvável. Porém, acreditamos que a partir deste mesmo entendimento histórico e social, permeado pelos fatores que objetivam o mundo sensível, seja possível encontrar na subjetividade dos grupos, através da produção dos discursos que manifestam suas representações, qual o entendimento que estes indivíduos, no nosso caso professores(as), possuem acerca do ensino de Arte Contemporânea; o que remete a idéia de um ensino contemporâneo de arte como superação do que tínhamos num passado recente, onde o ensino deste conhecimento estava ligado a uma prática lúdica, sem o compromisso de proporcionar aos alunos oportunidades de construção de sentido e significado acerca do universo artístico construído pela humanidade.