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2.2 FATORES DE RISCO RELACIONADOS AO ESTILO DE VIDA: CONCEITOS,

2.2.4 Consumo abusivo de álcool

O álcool é uma substância psicoativa com propriedades que levam à dependência e o seu consumo é considerado fator causal em mais de 200 tipos de doenças e lesões. A ingestão de álcool está associada ao risco de desenvolver alguns tipos de câncer, doenças cardiovasculares, cirrose hepática, além de distúrbios mentais e comportamentais (WHO, 2014b; SMYTH et al., 2015).

Contudo, uma proporção significativa da carga de doença atribuível ao consumo de álcool decorre de lesões involuntárias e intencionais, incluindo os acidentes de trânsito, violências e suicídios. Ademais, o consumo de álcool pode ocasionar graves consequências na gravidez, como a síndrome alcoólica fetal e complicações de parto pré-termo, e, recentemente, também foi relacionado à incidência de doenças infecciosas, como a tuberculose, bem como na evolução da AIDS (WHO, 2014b).

Além das consequências para a saúde, o uso nocivo do álcool provoca perdas sociais e econômicas significativas para os indivíduos e a sociedade em geral. Os custos econômicos ligados ao consumo de álcool englobam tanto custos diretos, relacionados aos gastos com saúde, assistência social, danos ou perdas de propriedades, custos relacionados ao crime, aplicação da lei e custos com a bebida alcoólica em si, como

custos indiretos, relacionados, principalmente, à perda de produtividade, desemprego e mortalidade prematura (THAVORNCHAROENSAP et al., 2009).

Os custos associados ao álcool representam mais de 1% do PIB em países de alta e média renda. Esses custos envolvem tanto danos sociais, tais como a perda da produtividade, como custos relacionados à saúde (REHM et al., 2009). No Brasil, o consumo de álcool representa um importante problema econômico, impactando significativamente o sistema de saúde. Os custos diretos associados ao atendimento ambulatorial e hospitalar de doenças relacionadas ao consumo de risco de álcool no Sistema Único de Saúde (SUS) são estimados em mais de 8 milhões de dólares ao ano (COUTINHO et al., 2016).

Em 2015, 10,9% da carga global de doenças foram atribuíveis ao consumo de álcool, o que corresponde a mais de 111 milhões de anos de vida perdidos ajustados por incapacidade (DALY). Além do mais, por ano, aproximadamente 2,3 milhões de mortes ocorrem em todo o mundo decorrentes do consumo abusivo de álcool, representando 7,15% do total de mortes (GBD 2015 RISK FACTORS COLLABORATORS, 2016). As consequências do consumo de álcool na mortalidade e na incapacidade ocorrem precocemente no curso de vida das pessoas. A exemplo disso, na faixa etária de 20 a 39 anos de idade, aproximadamente 25% do total de mortes são atribuídas ao álcool (WHO, 2014b).

O consumo abusivo de álcool muitas vezes também está atrelado ao uso de drogas ilícitas. Embora não seja considerado fator de risco para as principais DCNT, o uso de drogas ilícitas constitui um problema de saúde pública em todo o mundo, e, suas principais consequências referem-se aos transtornos devido ao uso, como a overdose, implicações relacionadas a aumentos nas taxas de suicídios, acidentes de trânsito, lesões, violência (UNODC, 2018; ABDALLA et al., 2018), e aumento na ocorrência de algumas doenças, como AIDS e hepatites. Exceto na África subsaariana, o uso de drogas injetáveis é responsável por 30% dos novos casos de infecção por HIV em todo o mundo (WHO, 2017c).

O número de usuários de drogas ilícitas está crescendo mundialmente. Estima-se que, em 2015, 5,6% da população mundial, entre 15 e 64 anos, tenham utilizado alguma droga pelo menos uma vez ao ano (UNODC, 2018). No mesmo ano, foram atribuídas 450 mil mortes ao uso de drogas ilícitas, considerando as mortes por overdose,

suicídios, HIV e hepatites. O uso de drogas é responsável por 1,5% da carga global de doenças (WHO, 2017c).

O Brasil é considerado um dos países com mais altas taxas de consumo de drogas estimulantes, como a cocaína, por exemplo, cuja prevalência no ano de 2012 foi de 2,2%, excetuando os indivíduos idosos. Dentre as razões que contribuem com esse cenário estão a localização geográfica, por fazer fronteiras com os maiores produtores de cocaína do mundo, a grande quantidade de jovens na população, a melhora no nível socioeconômico observada na última década, o que representa aumento do poder de compra, e o baixo preço da cocaína no país (ABDALLA et al., 2014).

Os resultados do aumento no consumo de drogas no país são comprovados no expressivo crescimento da carga de doenças referentes aos transtornos mentais decorrentes do uso de drogas. Dentre todos os transtornos mentais, esses apresentaram a maior elevação (37,1%) nas taxas de DALY entre 1990 e 2015, atingindo principalmente homens jovens (BONADIMAN et al., 2017).

Devido a essa relevância para a saúde pública, e à sua associação com o consumo de álcool, considerou-se oportuno mencionar o consumo de drogas ilícitas nessa revisão, mesmo não sendo objeto de estudo dessa tese.

Retomando a discussão sobre o consumo de álcool, três indicadores são utilizados para mensurar os danos relacionados a esse consumo: o volume de álcool consumido, o padrão de consumo da bebida alcoólica, e, mais raramente, em relação à qualidade do álcool consumido. O volume consumido é normalmente expresso em consumo de álcool puro per capita em litros por ano ou consumo de álcool puro per capita em gramas por dia (WHO, 2014b). Esse indicador é utilizado porque existe uma relação dose-resposta entre o volume consumido e a maioria das doenças e lesões causadas pelo álcool, como por exemplo, em todos os tipos de câncer atribuídos ao álcool, quanto maior o consumo, maior o risco de desenvolver a doença (IARC, 2010; SHIELD; PARRY; REHM, 2013).

Não só o volume, mas a forma como se consome o álcool ao longo do tempo também afeta os riscos às doenças e lesões decorrentes do álcool. O efeito cardioprotetor do consumo de álcool, por exemplo, desaparece completamente diante da presença do consumo abusivo (ROERECKE; REHM, 2012). O consumo abusivo de álcool é definido, pela OMS, como o consumo de 60g ou mais de álcool puro em uma única ocasião, com frequência de pelo menos uma vez ao mês. O volume de álcool

consumido em uma única ocasião também é considerado importante para muitas consequências agudas da ingestão de álcool, tais como intoxicação alcoólica, lesões e violências, sendo prejudicial mesmo quando o nível médio de consumo de álcool do indivíduo é baixo (WHO, 2014b).

Embora seja menos utilizado epidemiologicamente, devido a própria dificuldade de avaliação, a qualidade das bebidas alcoólicas ingeridas também é um indicador proposto pela OMS e pode afetar a saúde e a mortalidade das populações, quando, por exemplo, as bebidas alcoólicas produzidas em casa ou ilegalmente estão contaminadas com metanol ou outras substâncias tóxicas, como desinfetantes. Embora o consumo desses produtos possa levar a eventos trágicos, eles representam menos de 1% de todas as mortes atribuíveis ao álcool (WHO, 2014b).

Acerca do consumo de álcool no mundo, em 2010, os indivíduos acima de 15 anos de idade beberam, em média, 6,2 litros de álcool puro, o que correspondeu a 13,5g de álcool puro por dia. Existe uma grande variação do consumo total de álcool entre as regiões da OMS. Os níveis de consumo mais elevados são encontrados nos países desenvolvidos, em particular na Europa (10,9 litros) e no continente americano (8,4 litros), os níveis intermediários de consumo são encontrados na Região do Pacífico Ocidental (6,8 litros) e na Região Africana (6,0 litros), enquanto os níveis de consumo mais baixos são encontrados na Região do Sudeste Asiático (3,4 litros) e no Mediterrâneo Oriental (0,7 litros) (WHO, 2014b).

Tais diferenças são resultados de interações complexas entre uma ampla gama de fatores, que incluem aspectos sociodemográficos, nível de desenvolvimento econômico e fatores culturais, como predominância da religião islâmica e os tipos de bebidas preferidas. A exemplo disso, apenas 5,4% da população da Região do Mediterrâneo Oriental haviam consumido álcool nos últimos 12 meses, refletindo em uma pequena participação do consumo total de álcool em relação ao seu contingente populacional. Por outro lado, a região europeia abriga 14,7% da população mundial com mais de 15 anos de idade, mas consome mais de um quarto (25,7%) do álcool total consumido em todo o mundo (WHO, 2014b).

Já em relação ao consumo abusivo de álcool, 7,5% de toda a população mundial no ano de 2010 relataram consumir 60g ou mais de álcool em única ocasião, em ao menos uma vez ao mês. O mesmo padrão de distribuição entre as regiões se repete, com

maiores prevalências na Europa (16,5%) e na América (13,7%), e menores na Região do Sudeste Asiático (1,6%) e no Mediterrâneo Oriental (0,1%) (WHO, 2014b).

No Brasil, o consumo abusivo de álcool é definido como a ingestão de cinco ou mais doses de bebida alcoólica para homens e quatro ou mais doses para mulheres, em uma única ocasião, pelo menos uma vez nos últimos 30 dias. Sendo considerado uma dose de bebida alcoólica o equivalente a uma lata de cerveja, uma taça de vinho ou uma dose de cachaça, uísque ou qualquer outra bebida alcoólica destilada (BRASIL, 2014c). Tal medida se equipara ao critério proposto pela OMS e facilita a coleta da informação.

Uma análise de tendência temporal do consumo abusivo de álcool em indivíduos com 18 anos ou mais de idade nas 26 capitais brasileiras e no Distrito Federal, realizada entre os anos de 2006 a 2013, a partir de inquérito telefônico, apontou prevalências de 15,6% em 2006 e 16,4% em 2013. Tais dados sinalizam uma tendência estacionária da prevalência do consumo de álcool no Brasil. Contudo, com a manutenção de valores bastante elevados, que representam o dobro daqueles observados mundialmente (MUNHOZ et al., 2017).

Já a PNS (2013), pesquisa de maior abrangência geográfica, revelou uma prevalência de consumo abusivo de álcool em brasileiros com 18 anos ou mais de idade um pouco inferior. Na pesquisa, 13,7% dos brasileiros referiram tal consumo (GARCIA; FREITAS, 2015).

Embora com prevalências um pouco distintas, até mesmo por se tratar de recortes amostrais diferentes, ambas as pesquisas apresentam, de maneira consistente, importantes diferenciais sociodemográficos no padrão de consumo abusivo de álcool no Brasil. Neste sentido, no Brasil, existe uma tendência dos homens apresentarem maiores prevalências de consumo abusivo de álcool do que as mulheres, assim como os indivíduos mais jovens e de maior escolaridade (GARCIA; FREITAS, 2015; MUNHOZ et al., 2017). Estes resultados estão em consonância com o padrão observado em diferentes países do mundo (NAZARETH et al., 2011; WHO, 2014b; DAWSON et al., 2015).

Contudo, embora o consumo seja mais prevalente entre os homens, as mulheres parecem ser mais vulneráveis aos danos causados pelo álcool. Tal fato é motivo de preocupação para a saúde pública, tendo em vista o aumento do uso de álcool entre as mulheres, principalmente devido ao desenvolvimento econômico e a mudanças de papéis de gênero na sociedade, além das graves consequências do consumo de álcool

durante a gestação (WILSNACK; WILSNACK; KANTOR, 2013; POPOVA et al., 2013).

Por outro lado, embora indivíduos com mais escolaridade e melhor nível socioeconômico façam maior uso de álcool, as pessoas com pior nível socioeconômico são mais susceptíveis a problemas tangíveis e consequências do consumo de álcool. Uma possível explicação para esta vulnerabilidade é que estes indivíduos são menos capazes de evitar as consequências adversas devido à falta de recursos, logo, tanto os danos sociais como os relacionados à saúde tornam-se mais acentuados (GRITTNER et al., 2012).

Além disso, fatores de natureza mais abrangente, como o desenvolvimento econômico, a cultura, a disponibilidade de álcool e o nível e eficácia das políticas relacionadas ao álcool são relevantes para explicar as diferenças de vulnerabilidade entre os grupos populacionais, bem como os danos causados pelo álcool (BABOR et al., 2010; NELSON et al., 2013).

No Brasil faltam políticas públicas direcionadas ao controle do consumo nocivo de álcool. Apesar de se reconhecer que as políticas constituem a estratégia mais bem- sucedida para o enfrentamento de problemas de saúde, ao envolver a iniciativa privada na mudança de estilo de vida de indivíduos, tal como ocorreu com o controle do tabagismo, pouca evolução foi observada nas políticas voltadas à redução do consumo nocivo do álcool no país (GARCIA; FREITAS, 2015).

E é nesta perspectiva que, não só o consumo de álcool, mas os demais hábitos de estilo de vida, tratados neste capítulo, devem ser priorizados. Fica clara a relevância dos fatores de risco relacionados ao estilo de vida no desenvolvimento das DCNT, e por isso, a inclusão destes fatores de risco nas agendas mundiais de saúde. Entretanto, o desafio no desenvolvimento de políticas públicas efetivas é emergente, com vistas a possibilitar que individualmente as pessoas possam optar por hábitos mais saudáveis de estilo de vida, e que esses hábitos possam perdurar ao longo da vida.

O tempo de vida vivido livre desses fatores de risco relacionados ao estilo de vida possibilitará ganhos para a qualidade de vida da população, no sentido de diminuir as DCNT e suas consequentes incapacidades, e aumentar o tempo de vida saudável. A próxima seção traz uma abordagem sobre conceitos relacionados à expectativa de vida saudável, realizando um retrospecto dos estudos desenvolvidos no Brasil que utilizam esse conceito.

2.3 EXPECTATIVA DE VIDA SAUDÁVEL: CONCEITOS E DESAFIOS