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4. REFLEXÕES SOBRE O CONTEXTO: ANALISANDO ESPAÇO, CULURA(S) E SUJEITOS

4.2 PERSONAGENS DO CONTEXTO: A PROFESSORA, OS ALUNOS E A DIRETORA

4.3.6 Contatos musicais fora da escola

Um contato musical fora da escola citado por vários alunos foi a audição musical involuntária, especialmente proveniente de sons de carro, nos chamados "paredões"14. Este contato musical muitas vezes, além de involuntário, é indesejado – no caso apontado abaixo das alunas N e X –, mas também foi citado como um costume cultural familiar pelo aluno H.

Aluna N: Tem gente que bota o carro estrondando lá perto da minha casa. Bota forró, Grafith…

Aluna X: Lá perto de casa também. O cara liga o paredão todo dia e só bota Safadão [Wesley Safadão - forró eletrônico]. É um saco porque tem horas que ninguém tá afim daquilo e a gente é obrigado a ouvir. Na rua todinha não tem que consiga

conversar... Até de dentro da casa da gente fica alto.

Aluno H: Pois lá com o povo da minha família de vez em quando tem festa com paredão e eu acho é bom!

Sugerindo relações entre o forró eletrônico e o repertório recorrente nos paredões, Costa (2012, p. 186) apresenta que em muitas letras dos forrós eletrônicos encontra-se alusões aos "'paredões de som' em automóveis que, hoje em dia no RN, são marcas distintivas em muitas festas e cidades, além de ritualizados em várias canções de sucesso". O convívio com paredões de som foi atrelado especialmente aos fins de semana. Em volumes bastante elevados, esses sons estrondeantes configuram-se como formas de poluição sonora - termo que faz menção ao efeito nocivo provocado por sons em volume acima do recomendado por especialistas, que supera os níveis considerados normais para os seres humanos (COSTA et al, 2014).

Segundo a Organização Mundial da Saúde (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2003), depois da poluição da água e do ar, a poluição sonora é o problema ambiental que afeta o maior número de pessoas. Assim como outras manifestações poluentes, a poluição sonora deixa uma série de consequências para aqueles que entram em contato com ela. Lacerda et al (2005, p. 2) apresenta que "reações psíquicas como a motivação e a disposição podem ser modificadas negativamente através do ruído. O nervosismo e a agressividade aumentam e a capacidade de aprendizagem e de concentração é sensivelmente afetada".

Quando a aluna X apresenta que o som emitido pelo paredão invade expressivamente sua casa, perturbando a tranquilidade do lar, verifica-se um efeito negativo desta experiência musical forçada. A passagem de Costa (2012, p. 166) - pesquisador que tematiza a indústria cultural e forró eletrônico no Rio Grande do Norte – condiz com a fala das alunas que

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vinculam os paredões ao repertório do forró eletrônico: "um relevante meio de divulgação e consagração de hits do forró eletrônico são os famosos paredões de som (potentes sons automotivos), espalhados pelas festas, bares, ruas, etc.".

O aluno B citou a prática instrumental de contrabaixo em ensaios semanais de uma orquestra jovem à qual faz parte, aulas oferecidas também semanalmente aos membros da orquestra - nas quais o aluno aprendeu violão e teoria musical - e experiências de aprendizagem musical de violão com seu padrasto. Sobre estas últimas, o aluno comentou: “Meu padrasto ensinou o basicão do violão, que foi o nome das cordas, a escala de dó, como fazer uns acordes e ler cifra [...]. Não tinha horário marcado, era de vez em quando”.

O jovem comentou que as aulas oferecidas pela orquestra eram divididas em dois momentos - teoria e prática - e o jovem conferia claramente em sua fala uma grande importância e respeito às abordagens propostas. Em um ano e meio de experiências, recebeu nas aulas influências de doutrinação da teoria musical, levando para si a ideia ordenada de que a prática é necessariamente vinculada à teoria: "Pra mim, só tem prática com teoria".

O aluno C comentou que aprendeu violão em aulas oferecidas por sua igreja (caso comentado no item Música na Igreja) - demonstrando também o contato com ideias de exaltação à teoria musical nestas situações de aprendizagem. Os alunos V, A e R comentaram sobre experiências musicais na Igreja - já apresentadas no tópico “4.4.4.”. O aluno S comentou que costuma acompanhar seu pai, um saxofonista profissional, em ensaios periódicos e que já chegou a tocar guitarra em algumas músicas durante os ensaios - uma análise voltada ao aluno será apresentada no tópico “4.4.9”.

O aluno D comentou que teve aulas informais de bateria com um tio. A descrição do aluno sobre a experiência foi: “eu cheguei lá no meu tio, aí ele disse: 'primeiro você presta atenção, depois você repete'. Aí de primeira eu consegui mais ou menos, aí ele disse 'não é assim, é assim [demonstrando]'. Aos pouquinhos eu fui melhorando". Analisando a fala do jovem, percebe-se que os procedimentos didáticos abordados pelo tio envolveram prioritariamente a prática da observação e da imitação. Silva e Aragão (2012, p. 53) evidenciam a importância da observação nos processos de aprendizagem apresentando que "a aprendizagem pode ser compreendida como sendo o resultado de processos interativos entre os indivíduos e das observações que realizam sobre o meio, os elementos, os fatos e os acontecimentos". Para Vigotsky (2001, p. 332), a imitação é um processo dinâmico que favorece e possibilita a aprendizagem. Assim, “a aprendizagem é possível onde é possível a imitação” (2001, p. 332). Em um trabalho sobre imitação no processo de ensino e aprendizagem de arte, Fernandes (2010) parte da mesma perspectiva, apontando que a

imitação é uma atividade intrínseca ao processo de ensino e aprendizagem. Partindo da prática imitativa, o indivíduo aprende sob a influência do outro mas internaliza o conhecimento de acordo com o nível de desenvolvimento em que se encontra, conforme o aluno D demonstrou em sua fala.

Swanwick (2003) concebe a música como uma forma de discurso. Então, assim como para a aquisição da linguagem verbal é necessária uma vivência auditiva e oral com outras pessoas que falam, para desenvolver-se no discurso musical torna-se necessária esta vivência: o olhar, o ouvir, o imitar e o interagir musicalmente. Ramos (2005) considera que tocar um instrumento musical por imitação e por audição propulsiona o desenvolvimento da memória, da concentração, da habilidade técnica e da musicalidade do aluno. Comentando sobre processos de imitação na aprendizagem do teclado, a autora (2005, p. 29) explica que "na música por imitação, o professor, dentre outros elementos, é também o modelo a ser imitado e o aluno pode e deve observá-lo enquanto toca, incluindo neste contexto, a visão das mãos sobre o teclado". Percebe-se, ao fim da passagem, que a autora realça uma percepção visual do movimento sonoro, que, na situação do aluno D, diria respeito aos movimentos corporais que envolvem a prática da bateria.

Voltando-me mais especificamente para a parcela de alunos que cantam em "situações formais" – já que aqueles que cantam no cotidiano muitas vezes o fazem tão naturalmente que o ato passa despercebido - que envolvem ensaios e apresentações – ou tocam instrumentos musicais em quaisquer circunstâncias, perguntei quais são as influências que suas famílias exercem em sua prática musical. Alguns alunos consideraram indiferentes, mas a fala da maioria aponta para a influência familiar como um relevante fator motivacional para seu desenvolvimento musical.

Aluno E: A minha mãe sempre fala que gosta de me ouvir tocar. Ela vive pedindo pra eu tocar umas músicas que ela gosta e de vez em quando canta junto comigo.

Aluna R: Quando eu cantei pela primeira vez na Igreja, minha mãe ficou realizada. Depois disso ela sempre me incentivou [...] Às vezes quando ela vê que eu vou me atrasar pros ensaios, vem me apressar [risos]. Ela até já foi comigo umas vezes assistir os ensaios.

Aluno S: O meu pai vive me chamando pra eu ir pros ensaios de uma das bandas dele. Na primeira vez que fui, ele me apresentou a todo mundo e a gente ficou lá conversando [...]. Quando todo mundo começou a tocar foi muito massa. Eu ficava olhando pra o que cada um tava fazendo, tentando entender os sons separados [...]. Sempre dá vontade de tocar também quando eu vejo os caras tocando.

Aluno B - O meu padrasto de vez em quando senta pra tocar violão comigo. Tem vezes que ele pede pra mim fazer umas bases simples e aí ele faz uns solinhos. E tem umas vezes que a gente toca as mesmas notas [referindo-se a acordes] e ele canta.

Quando perguntei se alguém já sentiu alguma influência familiar negativa em sua prática/desenvolvimento musical, tais como proibição, desvalorização e desmotivação, ninguém se manifestou positivamente. Em uma pesquisa sobre a influência familiar no desenvolvimento musical de jovens aprendizes de música, Fonseca (2014) apresenta que as atitudes familiares favoráveis ao desenvolvimento musical de seus pesquisados - alunos da Academia de Música de Elvas, de Portugal - manifestam-se quando a família demonstra interesse por atividades musicais em variadas formas, tais como cantar ou tocar instrumentos juntos (situação refletida nas falas dos alunos "E" e "B"), acompanhar o progresso e dar elogios (situação expressa pela aluna "R") e ir a concertos, shows ou outras situações de prática musical (situação vivida pelo aluno "S"). A partir de sua pesquisa, Fonseca (2014, p. 42) indica um “pendor para a existência de uma relação direta entre um ambiente familiar favorável ou desfavorável ao desenvolvimento musical da criança”.

Neste sentido, Daza e Phillips-Silver (2008) comentam que “a família e o meio social envolvente” são fatores determinantes para o desenvolvimento da aptidão musical. Adentrando um âmbito mais profundo que a aptidão musical, no contexto dos jovens investigados nesta pesquisa, constatei que a família e o meio social envolvente são fatores determinantes para os rumos que tomam as escolhas e concepções musicais dos alunos. Muitos comentaram sobre o costume de ouvir músicas que familiares escolhem para ouvir e, em consequência, a tendência de encaminhamentos semelhantes quanto a suas preferências musicais e concepções que envolvem as experiências musicais. Especialmente os alunos que projetam em algum familiar específico a imagem de referência positiva - familiares, geralmente mais velhos, que se configuram como figuras de inspiração - demonstraram que estes são os principais responsáveis pelas suas personalidades musicais. Foi o caso do aluno P que comentou que um primo, rockeiro assumido e mais experiente, foi quem o apresentou o rock pela primeira vez:

Foi em uma vez que eu fui na casa dele... Ele me chamou pro quarto dele e tirou uns CDs de rock e mostrou pra mim… Primeiro só as capas. Eu lembro que achei massa demais os desenhos e as fotos. Aí ele escolheu um do AC/DC e botou. Na primeira música já fiquei doido e aí ele foi me mostrando mais.

Nesse caso, percebe-se o interessante fato de que os elementos visuais do estereótipo rockeiro foram fatores de cativação ao rock ainda precedentes à própria música, e que, em seguida, a experiência sonora foi o complemento fundamental destes primeiros estímulos

estéticos. Apesar de todos os alunos utilizarem os mesmos uniformes escolares, o garoto usava acessórios que afirmavam sua expressão rockeira, tais como os tênis All Star - calçado acessível financeiramente e utilizado por muitos rockeiros – os punk rockers pioneiros dos Ramones e Sex Pistols, por exemplo, costumavam usá-los –, pulseiras pretas e um colar acompanhado por um pingente de caveira. Sua mochila tinha nomes de diversas bandas de rock riscados. Assim, a introdução ao rock pelo primo abriu portas musicais e também comportamentais no jovem, já que – ao olhar para o aluno – são perceptíveis códigos culturais relacionados à cultura rockeira. De forma semelhante, a aluna T comentou que um tio foi o responsável por sua introdução ao rock e que, desde então, afirma seguramente que o rock é seu “estilo de vida”. Carregando consigo elementos visuais bem mais expressivos que o garoto, usava uma gargantilha preta, sombra preta em volta dos olhos, tênis All Star, anéis de prata e um gorro preto, pelos quais escorriam os cabelos pretos e alisados. Estes elementos podem ser genericamente atrelados ao rock, aproximando-se da vinculação do rock ao obscuro e à prevalência do preto.

A aluna T comentou sobre uma banda que tem com outras duas colegas, sendo uma delas colega de sala, a aluna G. A aluna T canta, a aluna G canta e toca violão e a outra participante toca teclado. A concepção de banda para elas é tocar eventualmente em conjunto um repertório escolhido e criado por elas mesmas em parceria. Sobre o fenômeno de surgimento de bandas formadas por adolescentes, já em 2003, Souza et al (2003, p. 68) apontavam que "entre as práticas musicais de adolescentes, tem sido crescente o surgimento de bandas juvenis". As garotas, compartilhando preferência musical e o prestígio concedido a artistas e bandas de rock, uniram-se com a finalidade de fazer música juntas e fazer parte de um grupo. Percebi que, em sala de aula, o fenômeno de agrupamento manifestava-se não apenas entre as duas colegas da banda, mas entre os jovens que se consideravam rockeiros.

Os rockeiros andavam juntos e se vestiam de forma parecida. Pensando sobre manifestações contemporâneas de agrupamento conforme aspectos estéticos e éticos específicos, Maffesoli (2000) sugere o termo "neotribalismo". Jacques (2008, p. 2) explica que, na contemporaneidade, as tribos urbanas "são redes de amizade estabelecidas por processos de atração e repulsão, que constituem cadeias por meio da multiplicação das relações. [...] As tribos constituem-se a partir das emoções compartilhadas e do sentimento coletivo, que é expresso na moda, na ideologia, no linguajar etc".

A influência familiar nas escolhas musicais da aluna G configurou-se de uma maneira diferente; ela não foi apresentada ao gênero por familiares, como no caso dos colegas citados

anteriormente - Aluno P e Aluna T -, mas descobriu o rock e percebeu nele possibilidades de regular sentimentos e amenizar angústias em relação a sua própria família:

Eu comecei a gostar de rock mais por… Tipo, a minha vida familiar, entendeu? Eu sofri muito com a separação dos meus pais e esse tipo de música que eu escuto hoje me ajudou muito a me sentir melhor [...]. Eu lembro que um dia eu tava muito triste, aí por acaso ouvi na televisão um rock bem pesado. Aquele som era bom pra mim. Parece que era o que eu precisava naquela hora… Minha mãe botando homem dentro de casa, e eu não me dava bem com ele… Foi aí que eu comecei a ouvir rock e compor músicas.

Assim, esses acontecimentos familiares foram desencadeadores de sentimentos negativos e o rock, acompanhado do exercício composicional intuitivo, neste contexto, configurou-se como um analgésico:

Escutando rock eu me dava melhor com a raiva que eu tava sentindo no momento [...] Muitas vezes eu escrevo também letras de música. Quando eu vou criar, eu já imagino o ritmo da música, tudo junto… Letra, batida… Começo a cantar e vai saindo. Eu escrevo sempre pra me sentir melhor com algum problema, alguma tristeza.

A aluna descobriu a magia que é transfigurar problemas em arte. Pensando na proveniência humilde e de realidade social conturbada da aluna e de muitos de seus colegas, a tendência à convivência com problemas e tristezas pode ser maior - situações nas quais as experiências musicais podem ajudar. Shifriss, Bodner e Palgi (2014) - no trabalho "Quando você está para baixo e com problemas: Perspectivas do poder regulatório da música" - apresentam que os indivíduos desenvolvem certas estratégias durante a vida para ajudar na regulação do sistema emocional e que um dos modos de ativação deste sistema é a música. Sendo assim, essa ferramenta artística torna-se, para muitas pessoas, capaz de conectar o indivíduo com dimensões sensitivas e de influenciar em seu humor. As relações entre audição musical do rock e regulação de sentimentos também podem ser observadas na fala do aluno P: “tem vezes que eu to meio mal e escuto rock… Aí fico melhor".

Conforme observado no tópico “3.7”, a pesquisa de Sebben e Subtil (2010), com enfoque nas concepções que jovens de uma oitava série - equivalente ao nono ano; mesma faixa etária que os jovens investigados no presente trabalho - tem sobre música, também constatou o caráter "terapêutico" da música. Tal qual a aluna G e o aluno P, os alunos pesquisados por Sebben e Subtil comentaram sobre a música como ferramenta para ajudá-los a superar sentimentos negativos.

Outra aluna afirmou que foi em função de sua irmã mais velha o desenvolvimento do seu gosto pela música pop internacional – referindo-se a cantoras como Katy Perry, Kesha e Christina Aguilera – e de elementos da moda e comportamento lançados e/ou compartilhados na esfera cultural destas artistas. Nesses casos, os familiares configuram-se como “evangelizadores” musicais. Como a compreensão de “música” abarca suas dimensões extra- sonoras, estas influências abarcam conduta, vestuário, valores e concepções.

Em outros casos de experiência musical proporcionada por familiares - representando a maioria dos jovens investigados -, há o compartilhamento doméstico de repertórios musicais sem um envolvimento mais denso com a experiência musical em fatores extra-musicais, ou seja, sem o engajamento direto em um estilo de vida voltado especificamente a parâmetros anunciados pelo gênero. Entretanto, as músicas são apreendidas e assimiladas, constituindo relevantes elementos da experiência musical dos jovens e agregando-se a suas preferências musicais. Neste sentido, foram citadas principalmente experiências musicais vinculadas à escuta de programas de rádio, com repertórios voltados principalmente ao sertanejo universitário e ao forró eletrônico. Costa (2012, p. 164) apresenta em sua pesquisa que "a repetição das canções por meio da inculcação do hit15 na cabeça do ouvinte é, dentre as mais tradicionais, também uma das mais ativas estratégias". Assim, Ortiz (2000, p. 202) apresenta que as rádios "não são apenas um meio de comunicação, mas instâncias de consagração de um determinado gosto". Neste sentido, a aluna I comentou que: “é normal o rádio ficar ligado lá em casa. Tem horas que eu sem nem perceber já fico acompanhando as músicas, cantando…”. Corroborando com o fenômeno apresentado pela aluna, um dos informantes forrozeiros da pesquisa de Costa (2012, p. 164) destacou que "eles [empresários/produtores musicais] obrigam as pessoas a ouvir… paga, o rádio toca. O cara ouvindo todo dia aquilo ali, de tanto ouvir, daqui a pouco tá cantando sem querer”. Assim, conforme apresenta Ortiz (2000, p. 197): “a familiaridade decorre da repetição. Esta, por sua vez, reforça e antecipa o que é esperado".