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Refletindo sobre relações entre contexto, expectativas e concepções dos jovens em

4. REFLEXÕES SOBRE O CONTEXTO: ANALISANDO ESPAÇO, CULURA(S) E SUJEITOS

4.2 PERSONAGENS DO CONTEXTO: A PROFESSORA, OS ALUNOS E A DIRETORA

4.3.8 Refletindo sobre relações entre contexto, expectativas e concepções dos jovens em

Desde antes de eu entrar nas salas de aula para a coleta de dados nos grupos focais, a professora já comentara sobre um garoto bem diferenciado em uma das turmas, o aluno M. Ela apresentou como exemplos de sua diferenciação o apreço pela Música Popular Brasileira e pelo fato de ter um interesse muito grande pela leitura, incluindo obras da literatura clássica. De fato, quando questionado sobre quais os livros que mais marcaram sua vida, o aluno citou as sete Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, a série completa de Harry Potter, de J. K. Rowling e Sonho de Uma Noite de Verão, de William Shakespeare. Sobre esta última, comentou: "achei muito legal o jeito que ele concilia tudo… Uma coisa que seria real e uma coisa que seria mitológica".

Quando o jovem se posicionava sobre qualquer assunto, eu sentia que cada página digerida por ele durante sua vida parecia estampar resultados na lucidez de suas falas e no refinamento de seus pensamentos. Creio que, além de outros fatores, o exercício recorrente da leitura na vida do jovem proporcionou a ele um acúmulo atípico de bagagens culturais que fez amadurecer aceleradamente. Havia uma beleza poética em seus pensamentos e tive a vontade de passar bem mais tempo conversando com ele. Sobre suas influências, seus anseios e preferências em torno da leitura, o garoto explicou:

Meus pais sempre disseram que ler é muito importante pra vida da gente [...]. Eles passaram a vida toda dizendo o quanto a leitura é boa pra pessoa [...]. As minhas leituras se concentraram mais em fantasia, pra eu conseguir imaginar e criar mundos diferentes do que a gente vive.

Sarti (2005) apresenta que as influências familiares são importantes referências simbólicas da identidade social do indivíduo. Lima e Silva (2011) conferem à família a responsabilidade de proporcionar à criança um ambiente de aprendizagem, "contribuindo para que ela possa se descobrir, se aceitar e sentir-se confiante em sua realidade, encarando as complexidades para adquirir novas aprendizagens" (LIMA; SILVA, 2011, p. 3). O asseguramento desse ambiente de aprendizagem pode ser por via da introdução à leitura: na medida em que estimulam a leitura dos filhos, os pais fomentam o contato das crianças/jovens com referências extremamente positivas que impactarão na constituição identitária das

crianças/jovens e na lapidação de sua visual de mundo. Em perspectivas semelhantes às preferências literárias do aluno M, Araújo (2008) comenta que, em sua pesquisa, grande parte dos livros citados pelos adolescentes investigados circunda as temáticas fantasiosas. Sobre as possibilidades de abstração, ao estímulo à criatividade e à liberdade em torno da prática da leitura, Brito (2010, p. 10) considera que "através de um livro, milhares de crianças podem descobrir um universo de aventuras, um mundo só seu, repleto de magia que é concedido nas páginas de um livro".

A passagem na qual o aluno comenta sobre o exercício de imaginar e criar mundos diferentes, demonstra a importância que a prática da leitura pode ter especialmente em contextos sociais nos quais se vive junto a realidades de desprivilégio socio-econômico. Brito (2010) apresenta qualidades despertadas pelo hábito da leitura em crianças, tais como a visão de mundo, o conhecimento de culturas, situações, pessoas e ideias diferentes: "tais conceitos nos auxiliariam, por exemplo, no combate ao preconceito, abrindo assim a mente para o diferente" (BRITO, 2010, p. 11).

Essa abertura de mente para o diferente e o combate ao preconceito estampam-se na fala do aluno quando expõe suas expectativas quanto a possíveis abordagens em aulas de música na educação básica: “pra mim seria legal se cada um trouxesse uma música que goste, de estilos diferentes… Aí apresentava e cada um falava alguma coisa sobre aquela música, e deixava que os outros também comentassem". Após o comentário sobre como seria a aula, o aluno refletiu sobre as potencialidades dessa abordagem, incluindo seu caráter democratizante, no sentido de conscientizar as pessoas em relação a perspectivas relativistas:

Uma análise de músicas feita por pessoas que tem diferentes conhecimentos, que tem diferentes noções… Eu acho que daria uma boa noção do que significa 'música' em todas as diferenças [...]. Muitas pessoas ouvem um ritmo [gênero] e por elas não gostarem, elas já julgam que aquela música não presta. Mas fazendo essa discussão fica mais amplo o significado [das músicas] pras pessoas.

Mesmo que ele não tenha falado com essas palavras, eu sintetizaria o objetivo geral da aula esperada pelo aluno como: compreender melhor o significado de música e do fazer musical a partir de uma perspectiva multicultural. Retomando o conceito, apresentado previamente no tópico “3.6.”, trata-se de uma abordagem que abarca uma diversidade de produções artísticas e musicais advindas de grupos sociais variados (PENNA, 2005), o que nos permite entrar em contato com diferentes orquestrações da diversidade (TRAVASSOS, 2012). Os dados e reflexões sobre o aluno – envolvendo influências familiares, hábitos, ideias,

buscas, vivências e a consequente maior e mais diversificada carga de capital cultural – apontam para conexões entre seu contexto de criação e desenvolvimento e suas expectativas quanto a aulas de música que gostaria de ter na Educação Básica – perspectivas que exprimem uma sensibilização em relação ao próximo, que buscam o respeito mútuo e afastam preconceitos.

Além do aluno M, a aluna Odefendeu uma aula com traços semelhantes, comentando sobre uma abordagem que pusesse os alunos em contato com músicas de diferentes lugares do mundo:

Eu acho que seria legal se o professor passasse pra a gente vídeos de pessoas de lugares diferentes fazendo música [...] É que a gente até ouve música que não é brasileira, mas é mais música americana, músicas que passam na TV. A gente não ouve falar de música chinesa, por exemplo. Seria legal saber como são as músicas em lugares diferentes do mundo.

Ela demonstra o interesse por aulas expositivas e demonstra que gostaria de aprender, mas não manifesta a proatividade de pesquisa – o que o aluno M naturalmente buscou. Pensar na proatividade educacional dos jovens é pensar em investidas educacionais que lhes ensinem a buscar e aprender a qualquer hora, e não apenas nos restritos momentos dentro de sala de aula. Quem aprende a aprender, não se limita às salas de aula, mas tem a possibilidade de aprender em qualquer lugar.

Além da expectativa por aulas de perspectivas multiculturalistas, outra expectativa quanto às aulas de música foi o aprendizado da teoria musical. Encontrei similaridades entre experiências vivenciadas pelos alunos em especificidades de seus contextos e a expectativa de aprender teoria musical. Os alunos que defenderam a teoria musical como foco das aulas tiveram previamente o contato com aulas de música nas quais os professores em suas abordagens direcionavam os alunos ao reconhecimento de que a teoria musical é fundamental para a aprendizagem musical. Assim, partindo de suas vivências, gostariam de um ensino de música na escola que reproduza parâmetros da Modernidade em Música. Este foi o caso dos alunos C e B, ambos os alunos de violão, um de uma igreja e outro de uma orquestra jovem.

Lortie (1975), referindo-se à socialização prévia no ensino, aponta que os professores desenvolvem crenças sobre o ensino a partir do período prolongado de observação que viveram como alunos durante sua vida. Neste sentido, Marcelo (2009) apresenta que a identidade docente vai se configurando mediante a observação dos futuros professores (em seu tempo de alunos) que vão recebendo modelos docentes com os quais se vão identificando com o passar do tempo. Desta maneira, incorporam, dentre outros aspectos, os conteúdos a ser

trabalhados, as crenças acerca da matéria que se ensina e a forma de ensiná-la. Em suas aulas de instrumento musical (violão), os dois alunos destacados neste espaço passaram pela socialização prévia com professores e incorporaram seus conteúdos e crenças, construindo referências positivas em relação ao contato com a teoria musical e sua relevância no processo de aprendizagem:

Aluno B: Ele passava a teoria, por isso que eu prezo muito por ela, porque foi desde a teoria que comecei a evoluir mais, sabe? [...] Então, como eu disse, eu tive uma experiência muito boa com a teoria e ainda to tendo. Eu acredito que pela teoria você vai poder avançar mais do que ficar só na prática.

Aluno C: Teoria Musical é a base pra todos os instrumentos, porque com teoria você pode aprender mais ou menos o que fazer nos instrumentos, dá pra se virar [...]. Eu gostei muito da sensação de escrever música, mesmo que o básico.

Paulo Freire destaca a inevitável influência que professores incidem nos alunos

O professor autoritário, o professor licencioso, o professor competente, sério, o professor incompetente, irresponsável, o professor amoroso da vida e das gentes, o professor mal-amado, sempre com raiva do mundo e das pessoas, frio, burocrático, racionalista, nenhum deles passa pelos alunos sem deixar sua marca. (FREIRE, 1996, p. 73)

Quase que invariavelmente, acompanhada da defesa da teoria, estava a ideia de que a teoria é capaz de fomentar um sentido de independência no desenvolvimento musical dos alunos. O aluno C comentou sobre seu contato com os fundamentos teóricos da formação de acordes (maiores) e como este contato aguçou o sentido de independência citado anteriormente: “quando o professor mostrou como se monta o acorde de Dó [maior] e os outros acordes eu percebi o quanto de coisa que dá pra treinar daí pra frente. Se ele não tivesse mostrado, eu ia ficar dependendo que ele mostrasse sempre tudo pronto”.

A passagem demonstra um fator positivo do contato do aluno com conhecimentos teóricos, já que a partir daí o aluno conseguiu descobrir e incorporar novas informações relevantes para a sua prática e para o seu desenvolvimento como aprendiz. Assim, destaca-se a possibilidade de descoberta, por parte do aluno, de novos caminhos partindo do conhecimento de sistematizações da teoria musical. Entretanto, apesar de reconhecer a importância do contato com conhecimentos teóricos e de como esse contato pode otimizar o desenvolvimento musical dos alunos, torna-se oportuno frisar que a visão destes jovens e de alguns outros investigados carregava traços de unilateralidade; como se para se ensinar "direito" fosse necessariamente lançar mão da teoria. O aluno D, que teve experiências de

aprendizado de bateria com seu tio, comentou que: "ele não sabia ensinar direito, não… Ele não ensinava teoria, sabe? Era tudo só prática". A ideia de que o contato com conhecimentos teóricos é um procedimento essencial para o desenvolvimento do aluno (JARDIM, 2008) é um reflexo de traços ideológicos do paradigma Modernidade na Educação Musical.

Outra expectativa de aulas de música foi a ideia de proporcionar em sala de aula experiências de prática em conjunto. Todos os alunos e alunas que apresentaram a concepção de aulas voltadas para a prática musical em conjunto relataram experiências prévias com o fazer musical compartilhado. No tópico “4.4.7.” foi apresentado que duas alunas – a aluna T e a aluna G – têm uma banda com outra colega. Quando elas foram questionadas como gostariam que fossem as aulas de música, responderam:

Aluna T: "Seria bom uma aula de música tipo em um mini-estúdio pra a gente tocar… Tipo como se montasse bandas com a turma"

Aluna G [complementando a fala da colega]: "Ah, é que a gente gosta muito de tocar… Aí, sei lá, uma aula de música que explorasse isso de tocar junto e montar tipo umas bandas com o pessoal seria legal"

A aluna G complementou, apontando que gostaria de aperfeiçoar o canto. Com o estímulo da colega, a aluna T também demonstrou interesse em evoluir em suas capacidades vocais: "é… eu até acho que canto legal, mas como eu aprendi sozinha, tentando mesmo, acho que se alguém me mostrasse uns exercícios eu melhorar com um tempo". Nessa perspectiva, a aula de música para as alunas representaria uma aliança entre a satisfação de tocar música em conjunto e o aperfeiçoamento das funções que desempenham na banda. Assim, buscam aulas significativas – em âmbitos motivacionais e de desenvolvimento técnico – para suas vidas, demonstrando afinações entre seus contextos, experiências e expectativas. Santos (2012), que investiga concepções e expectativas de alunos do ensino médio sobre a aula de música da escola, relata que quando questionados sobre possíveis atividades a serem trabalhadas em aulas de música seus investigados apontaram para práticas que envolvem o aprendizado e aprimoramento de habilidades específicas, como cantar e tocar. A autora apresenta que os muitos alunos anseiam por aprendizagens diferentes daquelas que adquirem na vida cotidiana. O aluno S toca violão e guitarra há cerca de um ano. Desde muito novo recebeu de sua família relevantes influências musicais: o pai é saxofonista freelancer, proporcionando-lhe diversos contatos com seu instrumento e com bandas as quais faz participações; uma tia toca acordeon, teclado e violino e proporcionou ao jovem contatos lúdicos com o teclado –; um tio toca contrabaixo e guitarra. O aluno citou situações nas quais este tio lhe ensinou guitarra, em

propostas de imitação e assimilação auditiva e visual. O irmão toca contrabaixo e eventualmente junta-se com ele para que pratiquem juntos. Acumuladas a todos estes estímulos e experiências estiveram as práticas de autoaprendizagem advindas do acesso a revistas e sites de cifras - experiências também evidenciadas por Souza et al (2003) em sua pesquisa com adolescentes.

Eu já comprei revistinha de cifra para aprender músicas… Tenho umas em casa. Mas ultimamente eu aprendi mais pelo Cifra Club32. Hoje em dia tem cada vez mais cifras, videoaulas… Tudo que o cara quiser. Aí quando eu quero tocar alguma música diferente eu procuro as cifras lá.

Um estímulo musical familiar chamou mais atenção e pareceu mais conectado com o que a concepção apresentada pelo aluno para uma aula de música na escola, que foi a de transformar as aulas de música em oficinas de prática em conjunto. O estímulo em questão diz respeito ao acompanhamento aos ensaios do pai em uma das bandas que ensaia:

Quando meu pai vai pro ensaio eu vou também e acabo aprendendo uns negócios com os caras lá da banda. Quando a banda dá alguma pausa, o guitarrista às vezes diz ‘pega aqui [a guitarra] que eu vou ali [permitindo a prática do aluno]. Aí eu aproveito esse tempo pra tocar nos equipamentos dele, e o pessoal da banda às vezes acompanha também, a gente fica só tirando onda lá"

O aluno alegou que acompanhar os ensaios da banda é uma vivência instigante e valorizou o exercício de observar e ouvir os músicos mais experientes. Sobre os momentos de prática musical neste contexto, comentou que

Aluno S: Só de olhar o pessoal tocando já dá pra aprender muita coisa… Mas quando eu pego a guitarra, já tento tocar alguma coisa que eu vi, ou então o próprio guitarrista me dá algum toque, uma dica sobre como tocar.

Pesquisador: O que você lembra de ter aprendido com ele?

Aluno S: Hmm… Quando o guitarrista tava fazendo o solo um dia ele cortou o dedo. Aí ele tinha me ensinado a tocar essa música, só o básico mesmo, aí eu toquei.

Pesquisador: E além dessa música, o que mais?

Aluno S: Ele me ensinou algumas teorias pra fazer solo, essas coisas. Aquela… como é o nome?

Pesquisador: Pentatônica?

Aluno S: É isso mesmo! Que vai de cima até embaixo [demonstrando que o desenho que aprendeu da escala vai da sexta à primeira corda]. Ele também me ensinou a fazer acordes com sétima lá embaixo [referindo-se à região do fim do braço, onde há as notas mais agudas], pra facilitar quando toca a música.

O aluno compreendeu como "teoria" o fato de o guitarrista ter lhe ensinado sobre posições da escala pentatônica menor; mas não foram ensinados os fundamentos teóricos da escala, apenas o conhecimento sobre posições no braço do instrumento. Esta carga de ensinamentos práticos foi suficiente para o jovem entrar em contato com importantes técnicas de improvisação e adquirir certa autonomia para seu desenvolvimento nestas dimensões.

A vivência relatada pelo aluno lembrou-me dos tempos que comecei a tocar bateria. O meu irmão mais velho tinha uma banda e eu – com certa insistência – pedia para que eu o acompanhasse nos ensaios. Essa época coincidiu com meus primeiros contatos com a bateria, e, como eu não tinha o instrumento em casa, cada possibilidade de estar perto de uma bateria era aproveitada ao máximo. Nos ensaios, além da proximidade especificamente com a bateria, me fascinava a sensação de presenciar músicas sendo feitas "de verdade", dos instrumentos plugados e pulsando em conjunto em volumes que fazem tremer o corpo. De maneira semelhante ao aluno S, quando o baterista se ausentava por curtos instantes eu tinha a chance de tocar um pouco o instrumento. Eventualmente eu era até acompanhado pelos outros membros da banda: era bastante impactante e estimulante ouvir simultaneamente os resultados sonoros de uma combinação de instrumentos e também fazer parte ativamente desta combinação. Acredito que o jovem sinta algo parecido com o que senti nesta época.

O aluno S, que viveu experiências positivas de aprendizagem musical em situações que circundaram os domínios da prática musical mesclando intuição, imitação e do fazer, quando questionado sobre suas concepções de aula de música na escola, alegou que “seria bom se a gente tocasse junto… Se montasse como se fosse umas bandas, com o pessoal tocando junto, ensaiando umas músicas [...]. Acho que a gente só aprende música tocando música". Em consonância com as concepções defendidas pelo aluno S e também pelas alunas T e G, os jovens investigados por Santos (2012) indicaram atividades que podem ser realizadas a partir da formação de bandas entre os colegas, enfatizando a prática instrumental.

O Aluno F demonstrou, no decorrer dos encontros no grupo focal, ser um admirador do futebol.

Pesquisador: Por que você gosta de futebol?

Aluno F: Porque pra mim não é só um esporte. É legal de jogar, é legal de assistir, a gente torce de verdade, acompanha o time […] Aí quando vai no estádio tem a galera todinha cantando, a bateria rolando... Eu não vejo muito isso em outros esportes

Pesquisador: Você falou da bateria da torcida… O que você acha dela?

Aluno F: Eu acho massa demais! Sempre fico mais ou menos perto quando vou pro estádio. Aí fico prestando atenção na galera tocando. Tem repique, caixa, surdo…

Para refletir sobre a passagem na qual o aluno considera que o futebol "não é só um esporte", destaco as palavras de Daolio (1989, p. 60), apresentando que o futebol como uma forma de "expressão da cultura brasileira, com todas as suas virtudes e como todos os seus defeitos". Com estas ideias, o autor aproxima o futebol de uma identificação coletiva, abarcando indivíduos a nível nacional. Byington (1982, p. 21) considera que o futebol é um "espetáculo coletivo que se torna ritualístico na medida em que identifica os espectadores com o drama que se desenrola em campo [...]". Rangel (2010), que investigou cantos da torcida organizada "Young Flu" do Fluminense Football Club, apresenta alguns procedimentos padrões realizados no início do jogo, tais como aquecimento da bateria e do público, apresentação de bandeiras, momentos de hostilização a torcidas adversárias, músicas, aplausos e intervenções de recepção dos jogadores e um canto para o início da partida. A autora comenta que quando começam as emoções da partida "a ordem de aparecimento dos cantos entoados está relacionada aos acontecimentos dentro de campo" (RANGEL, 2010, p. 23).

Como perceptível, podemos considerar como parte relevante dentro deste fenômeno ritualístico de identificação entre a torcedores e o jogo as intervenções musicais da torcida. Quando fala sobre alguns instrumentos utilizados, o aluno S demonstra ter conhecimentos sobre a configuração instrumental das baterias das torcidas organizadas. Nos estádios de futebol, associados à cama percussiva proporcionada pelas baterias, estão os cantos, geralmente regidos pelos membros das torcidas organizadas e endossados pelas vozes de milhares de torcedores, que fazem ecoar fortes coros pelo estádio e suas redondezas. Perguntei se ele sabia alguns desses cantos, e ele demonstrou rapidamente alguns, acompanhando-se de uma batucada na carteira na qual estava sentado. Na demonstração, alguns colegas torcedores do time rival interviram, tentando atrapalhar em tons amistosos e de descontração. O aluno F explorava dois timbres/movimentos básicos, representando, a meu ver, basicamente surdos e caixas: a mão inteira (especificamente a direita) batendo no centro da carteira e os dedos indicadores atacando as bordas da carteira, em movimentos marcados quase simultaneamente, aproximando-se de uma técnica que nos métodos tradicionais de percussão é chamada de "flam"33. O compasso transcrito abaixo representa o movimento rítmico que o aluno executou repetidamente