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4. REFLEXÕES SOBRE O CONTEXTO: ANALISANDO ESPAÇO, CULURA(S) E SUJEITOS

4.2 PERSONAGENS DO CONTEXTO: A PROFESSORA, OS ALUNOS E A DIRETORA

4.3.3 Religião

Dentre os alunos pesquisados, doze alegaram ser evangélicos, vinte católicos e os restantes agnósticos, ateus ou omitiram suas respostas. Tanto a igreja católica quanto a evangélica foram citados como espaços de convivência com a música. Entretanto, os alunos evangélicos revelaram experiências mais próximas e ativas com o fazer musical, enquanto os alunos católicos demonstraram uma convivência mais contemplativa com a música - acompanhando os cânticos durante as celebrações e apreciando a apresentação dos grupos musicais em momentos específicos das missas. Assim, quando comparados aos alunos católicos, os alunos evangélicos tendem a desenvolver-se musicalmente de forma mais expressiva, em função da convivência mais próxima com estímulos relevantes de musicalização.

Dentre as experiências musicais vivenciadas pelos evangélicos no espaço da igreja, foram citadas desde vivências informais de ensino e aprendizagem de música até vivências pedagógicas em espaços e situações específicas de aulas e apresentações nos cultos. As vivências musicais pedagógicas foram relatadas pelo aluno C, que acompanhou durante alguns meses aulas de música na igreja evangélica que frequenta. O aluno comentou:

Aluno C: Minha primeira experiência musical foi na Igreja, né? Tinha um rapaz lá que dava aula, e me ensinou a tocar violão.

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Pesquisador: Ele ensinou o que pra você?

Aluno C: Ele me ensinou [a ordem das] cordas do violão, notas, depois passamos para acordes, cifras e teoria musical.

Pesquisador: E o que ele dizia sobre a teoria?

Aluno C: Ah, ele mostrava como era importante. Tipo quando ele ensinou a montar acordes.

Souza (2015, p. 14) comenta que, na contemporaneidade, "muitas igrejas evangélicas possuem um espaço físico reservado ao exercício educativo-musical", o que corrobora para a seguinte afirmação da autora: "as igrejas evangélicas tornaram-se grandes celeiros de músicos e cantores no país" (SOUZA, 2015, p. 14). O aluno C deixou claro que a música feita por ele - tanto na Igreja quanto fora dela - acompanha-se munida de uma atmosfera espiritual e de fé, a qual o aluno potencializa o seu fazer musical com inspirações divinas e direciona sua prática para funções específicas:

Aluno C: Quando eu toco, a minha função é louvar a Deus. A música que faço é inspirada por Deus. Eu gosto de tocar música assim e ouvir também […] Todas as músicas que toco em qualquer canto são para Ele.

As inspirações da fé e a prática voltada exclusivamente ao louvor paracem configurar- se como relevantes fatores de motivação no desenvolvimento musical do aluno. Creio que o indivíduo nesta perspectiva motivacional ama tanto Deus que pretende superar as dificuldades e aprender a tocar as músicas para louvá-lo. Assim, alguns princípios ideológicos religiosos parecem configurar-se como engrenagens fundamentais no processo de aprendizagem musical do educando.

A exaltação ao Senhor partindo da música como meio fundamenta-se nas palavras sagradas: “louvai ao Senhor, porque é bom e amável cantar louvores ao nosso Deus; fica-lhe bem o cântico de louvor” (SALMOS 147:1). Como aponta Hustad (1991), a música na igreja é uma arte funcional - ela é criada por seres humanos para servir aos propósitos de Deus e da igreja, particularmente na expressão coletiva da adoração congregacional, sua comunhão e seu trabalho missionário. O ensino, voltado para o aprendizado de músicas religiosas e para o aprendizado de fundamentos da teoria musical, configurou-se – pelo momento em que durou - como uma preparação potencial para o garoto assumir futuramente apresentações na Igreja. O jovem demonstrou interesse na atividade e comentou que o professor utilizava da perspectiva futura de que os alunos se apresentassem nos cultos como fator motivacional:

Aluno C: "Ahh, sim… Eu quero muito. O professor ficava falando que quem tivesse tocando melhor já ia poder tocar no culto… Mas aí acabaram as aulas lá por um tempo"

As vivências musicais informais na Igreja ocorreram a partir do contato de jovens (aluno V, aluna A e aluna R) com instrumentistas do culto, que, em ocasiões distintas, demonstraram como tocar seus instrumentos e permitiram a experimentação dos jovens. As apresentações foram relatadas pelo aluno V, que integra um grupo coral que se apresenta semanalmente nos cultos. Neste sentido, em comparação aos católicos, os evangélicos parecem ter uma maior aproximação com os músicos. Um fator contribuinte para esta diferença de aproximação certamente é a regularidade que frequentam suas igrejas: apenas seis católicos comentaram que frequentam suas igrejas ao menos uma vez na semana, enquanto todos os evangélicos relataram a frequência de ao menos uma vez na semana e sete deles alegaram frequentar duas ou mais vezes semanais.

Além deste fator, outro ponto a ser destacado é a flexibilização que vem sendo adotada pelas vertentes evangélicas (em amplos sentidos, inclusive no musical). O aluno M, que assumiu ser católico, quando questionado se a Igreja Evangélica teria mais presença de música do que a Igreja Católica, comentou:

Não. Eu acho que a Igreja Católica e Evangélica, em questões de presença de música, ambos estão no mesmo nível. Só que na Igreja Católica as músicas são mais lentas, tem umas até tristes. Nas Igrejas Evangélicas as coisas são mais animadas, mais diretas [...] Aí acaba empolgando mais as pessoas, até a aprender a tocar, ou cantar...

Jungblut (2007), apoiado em dados obtidos em Censos Demográficos e em pesquisas sociológicas e antropológicas, afirma que o número de evangélicos no Brasil vem crescendo aceleradamente e que este crescimento acompanha-se de ampla transformação na conduta e no modo de ser dos evangélicos. Em investidas para sua popularização, muitas correntes evangélicas tem se apropriado de elementos simbolicamente e esteticamente sedutores, mobilizadores de atenções e consumo, acessíveis a um grande público. Dessa forma:

mídia, marketing, computação, internet, artes visuais, moda, estética moderna, músicas profanas, estilos e comportamentos de vanguarda, rapidamente são incorporados, ressemantizados ou instrumentalizados individual e institucionalmente por crentes e grupos de todas as vertentes evangélicas para incrementar a pregação e divulgação do Evangelho (JUNGBLUT, 2007, p. 145).

Percebe-se que "o tradicional rigorismo puritano e o notório sectarismo de parte considerável desse grupo religioso vêm sendo paulatinamente minimizados nos últimos anos"

(JUNGNLUT, 2007, p. 144). Na esfera musical, este rigorismo manifesta(va)-se no apego a uma estética restrita das músicas da celebração, seguindo padrões relativamente restritos de instrumentação, elementos rítmicos, harmônicos e melódicos nas músicas. A minimização do rigorismo na música tem se revelado nas igrejas evangélicas através da apropriação de variados elementos estéticos, instrumentos musicais, padrões, gêneros e possibilidades que tem como vetor em comum a temática religiosa das letras.

A fala dos alunos evangélicos e católicos-praticantes10 foi ressaltada em muitos momentos da análise dos dados, em função de sua intensa participação nas situações de coleta de dados. Em uma perspectiva geral, os alunos envolvidos intimamente com a prática religiosa apresentaram boa capacidade de articulação verbal e alguns com discursos especialmente lúcidos e pragmáticos sobre determinados assuntos que diziam respeito a seu contexto. Pensando em possíveis interpretações para a relação entre a prática religiosa e a polidez e refinamento do discurso dos jovens11, considero que o estímulo ao exercício da leitura das escrituras sagradas - confirmado pelos jovens, por parte de familiares e demais membros da comunidade religiosa - pode estar conectado ao incremento do vocabulário e capacidade de comunicação. Além disso, nas celebrações, estes jovens tem o contato regular com variados discursos de padres e pastores, configurando estímulos de oratória. Em adição, a série de normas de conduta estabelecidas por estas religiões pode guiar os indivíduos a realidades mais disciplinadas, focadas em determinados objetivos de vida e princípios. Assim, constatam-se potencialidades positivas da experiência religiosa em certas perspectivas do desenvolvimento educacional dos jovens.

Os valores normativos das atitudes morais básicas de uma pessoa ou grupo social são compreendidos por Kung (1999) como ethos. Fantecelle (2014) apresenta que a palavra advém do vocabulário grego antigo, significando lugar de morada e abrangendo o sentido também para o modo de habitá-la. Com o passar do tempo, o termo começou a ser compreendido como os valores inerentes ao convívio em harmonia, já que para a convivência em uma moradia era necessário um padrão de conduta socialmente aceitável. Neste sentido, o ethos religioso é "o conjunto de valores inerentes à prática de algumas religiões, que orientam o modo de agir do homem em relação aos outros homens na sociedade [...]” (KUNG, 1999, p. 252). Dentre os valores compartilhados no ethos religioso cristão estão a ajuda ao próximo, a busca por atitudes saudáveis, o perdão, o desvio de situações de risco etc. Assim como

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Alguns alunos consideram-se católicos apenas por herança cultural familiar, não enxergam a Igreja como espaço rotineiro de visitação nem sua ideologia orientadora da vida.

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Fantacelle (2014) assume em seu trabalho, que se bem entendidos e articulados numa perspectiva universal, esses valores podem atuar como ferramentas na prevenção de crimes e outras formas de violência, alguns valores do ethos religioso cristão podem atuar também como ferramentas que impulsionem o êxito escolar dos alunos.

Entretanto, como há diversas maneiras de estimular fiéis a cumprirem determinados ensinamentos, códigos e normas (CIPRIANI, 2007), se o ethos religioso for orientado (condutor da cerimônia religiosa) e assimilado (fiel) em perspectivas extremistas e opressoras, pode ser elemento catalisador de alienações e conflitos sociais, como a intolerância religiosa.

Pesquisador: Alguém é de alguma religião diferente da católica e evangélica?

Aluno F: Candomblé. [em tom sarcástico, como se fosse um absurdo ser desta religião]. Os colegas riram e em seguida alguns alunos discorreram ofensivamente sobre os termos "macumba" e "macumbeiro". Esta cena refletiu a intolerância como um marcante significado apreendido e compartilhado pelos alunos em seu(s) contexto(s). Nenhum aluno se pronunciou como praticante de alguma manifestação religiosa afro-brasileira – se houvesse alguém, certamente seria hostilizado.

Silva (2007) comenta que um fator relevante para a disseminação da intolerância religiosa contra tradições afro-brasileiras foi o crescimento do universo evangélico, especialmente das vertentes neopentecostais nas últimas duas décadas. Estas, deliberadamente dissiparam a ideia de que "tudo que se refere às religiões afro-brasileiras é contagioso; é obra do diabo e deve ser evitado por aqueles que optaram por 'aceitar Jesus'" (LUI, 2008, p. 211).

Nesse sentido, Silva (2007, p. 10) aponta que os casos de intolerância na contemporaneidade "se avolumaram e saíram da esfera das relações cotidianas menos visíveis para ganhar visibilidade pública, conforme atestam as frequentes notícias de jornais que os registram em inúmeros pontos do Brasil". Para demonstrar indícios do acirramento da intolerância, o autor apresenta uma compilação de informações - trabalhos acadêmicos e notícias publicadas – que tematizam casos de intolerância entre estas manifestações. Em conjunto, estas informações abrangem: (1) ataques feitos em cultos das igrejas neopentecostais e em seus meios de divulgação; (2) agressões físicas contra terreiros e seus membros; (3) ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras em locais públicos; (4) ataques a símbolos da herança africana no Brasil que tenha relações com manifestações religiosas afro-brasileiros em locais públicos; (5) ataques decorrentes de alianças entre igrejas e políticos evangélicos e (6) reações públicas dos adeptos das religiões afro-brasileiras.

Um fator relevante que justifica os ataques é destacado pelo autor como a busca por adeptos de uma mesma origem socioeconômica, em uma cruzada na qual as igrejas neopentecostais vem arregimentando um número crescente de "soldados de Jesus". Estes soldados aprendem que "grande parte dos males deste mundo pode ser atribuída à presença do demônio, que geralmente é associado aos deuses de outras denominações religiosas" (SILVA, 2007, p. 10-11) e são encaminhados a seguirem os ensinamentos de Jesus Cristo: "Para isto se manifestou o Filho de Deus: para destruir as obras do diabo" (I Jo. 3:8) - assim, legitimam-se as intervenções (por vezes violenta) em situações e espaços nos quais se acredita que há a presença do demônio.

Nessa cruzada do século XXI, além dos discursos ao vivo nos púlpitos, um importante elemento de cativação e alienação ideológica dos fiés, que inflama a intolerância e o ódio, são os programas evangélicos exibidos diariamente em emissoras abertas de televisão. O conteúdo em muitas ocasiões envolve "dramatizações nas quais os símbolos e elementos das religiões afro-brasileiras são retratados como meios espirituais para a obtenção unicamente de malefícios: morte de inimigos, disseminação de doenças, separação de casais [...]" (SILVA, 2007, p. 11). Também são comuns as exibições de testemunhos de ex-praticantes destas religiões, "confessando" malefícios realizados com o auxílio de entidades afro-brasileiras.

Esses programas televisivos são investidas certeiras que diariamente atingem um número enorme de telespectadores - muitos deles sem o amadurecimento crítico suficiente para poder discernir as informações construtivas das destrutivas, para filtrar conteúdos negativos e questionar sobre a credibilidade daquilo que é apresentado. Dentre os telespectadores atingidos estão os próprios alunos investigados nesta pesquisa e seus familiares. Quando questionados, todos os alunos evangélicos confirmaram já ter assistido algum programa desse tipo, variando na frequência – desde esporadicamente até diariamente - , e que o costume é ou já foi compartilhado com familiares. O arsenal midiático das igrejas neopentecostais é ainda reforçado por programas de rádio, sites na Internet e materiais de divulgação religiosa, tais como livros, jornais, revistas e folhetos.

Diante da realidade dos jovens, na qual habitualmente são bombardeados (mídia/sociedade) e incorporados (jovens) significados depreciativos em torno das manifestações religiosas afro-brasileiras, um trabalho educativo-musical poderia constituir uma alternativa de "desalienação". A aproximação com símbolos e significados da(s) cultura(s) africana(s) auxiliaria na quebra de preconceitos e barreiras e, sob o enfoque musical, o trabalho poderia assumir variadas abordagens, tais como: estudo de manifestações musicais presentes nas diferentes regiões do continente africano; apresentação de

instrumentos musicais típicos de civilizações do continente africano; a apresentação das relações entre a fala e o canto em linguagens africanas – por exemplo, a população Venda da África do Sul (BLACKING, 1995); apresentação das relações entre a dança e a música em manifestações africanas e afro-brasileiras; apresentação das influências africanas em gêneros musicais brasileiros; proposição de vivências rítmicas sincopadas baseadas em gêneros musicais afro-brasileiros e muitas outras alternativas.

Obviamente, este trabalho teria que ser feito com muita sensibilidade e acompanhado de amplos diálogos conscientizadores. Em um momento específico – após [ cessarem as piadas e os risos – expliquei que macumba era, na realidade, um instrumento musical percussivo. Em seguida, perguntei especialmente aos evangélicos se experimentariam a prática musical em uma macumba, se eu levasse para a sala de aula. As respostas foram negativas, em sua maioria tentando fugir da proposta percussiva, mas buscando não mostrar que a privação é por motivos puramente religiosos, conforme exposto na fala do aluno V: "É que eu prefiro outras coisas… como cantar ou aprender a tocar teclado".

A negativa destes alunos em relação à prática percussiva e, mais especificamente, à possível prática da macumba, demonstra uma influência que as teias culturais religiosas emaranhadas em seu contexto de criação exercem em sua concepção do que (não) aprender em sala de aula. Assim, é perceptível que apesar de as correntes evangélicas terem flexibilizado - no sentido de abraçar elementos profanos em vários aspectos (JUNGBLUT, 2007), inclusive nos musicais, os traços de sua rigorosidade ainda cruzam fortemente os caminhos de flexibilização da religião.