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As causas da crise do paradigma da Modernidade advém do resultado interativo de uma série de condições teóricas e sociais, que trabalharam em conjunto para desarticular a sua unilateralidade, questionando a veracidade de seus enquadramentos teóricos, suas fórmulas e absolutismos. Indo de encontro ao determinismo, mecanicismo, reversibilidade e ordem, as palavras-chave do novo paradigma podem ser apontadas como imprevisibilidade, espontaneidade, auto-organização, irreversibilidade e desordem. Santos (2009) defende que o paradigma da contemporaneidade é social: sendo uma revolução científica que ocorre numa sociedade, ela própria revolucionada pela ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas científico, mas social. Essa passagem elucida o caráter de revalorização dos estudos humanísticos no âmbito do paradigma científico contemporâneo, acompanhado de uma transformação das próprias humanidades, levando em consideração que as ciências sociais, no século XIX, constituíram-se segundo modelo das ciências naturais clássicas. O paradigma da contemporaneidade instiga o desejo de complementarmos o conhecimento das coisas com o

conhecimento de nós próprios; assim, torna relevante a preocupação com a análise dos contextos culturais.

O desenvolvimento de referenciais epistemológicos educacionais que dialogam com os ideais antropológicos do relativismo cultural instigou reflexões e denúncias incisivas à educação monocultural. A Antropologia nasceu sob influência de valores evolucionistas da modernidade no fim do século XIX, mas em seu amadurecimento ganhou novos procedimentos interpretativos de seus dados de pesquisa e foi constituindo outro referencial teórico (ARROYO, 2002). Em seu amadurecimento, constituiu-se como uma ciência humana que se abre à esfera cultural além do domínio europeu (PINTO, 2005). Os procedimentos interpretativos da ótica antropológica fundamentaram-se em dois conceitos primordiais: a relativização dos processos e produtos culturais, os quais só podem ser compreendidos caso os considerarmos em seu contexto sociocultural (ARROYO, 2002); e o conceito cultura como uma teia de significados (tecida pelo próprio homem) que conferem sentido à existência humana (GEERTZ, 1973).

No campo musical, a adoção da ótica relativista condiz com o amadurecimento epistemológico da Etnomusicologia – campo que se situa epistemologicamente entre a musicologia e a antropologia (PINTO, 2005). Erguida no século XX como campo de estudo que se preocupa com a investigação de manifestações musicais em múltiplos contextos, mergulhou na visão sociocultural da música, ou seja, focando em suas interações com o homem e o contexto. Responsável pelas produções consideradas como “certidões de nascimento” da Etnomusicologia (1904-1905), o pesquisador alemão Erich Moritz von Hornbostel exalta a importância do levantamento de um heterogêneo arquivo sonoro como fundo de materiais de pesquisa, e, quando confere atenção às artes correlatas à música, enxerga também que o registro de campo não se pode ser restrito unicamente ao parâmetro sonoro. Pinto (2005, p. 11) comenta que a "proposta visionária de Hornbostel de 1905, antecipa uma etnomusicologia moderna, que não se limita ao aspecto sonoro da música, mas reconhece a importância de suas múltiplas formas de expressão e de seu meio social como fatores indissociáveis da pesquisa".

Na medida em que confere importância ao meio social em que uma música é produzida e reconhece uma multiplicidade de formas de expressão musical, a Etnomusicologia abala as concepções do evolucionismo e da hierarquização do fazer musical, eixos da concepção musical segundo a Modernidade. A postura relativista propiciou à Etnomusicologia a “superação de uma visão eurocêntrica de música” [...] e o reconhecimento de que já não seria possível falarmos de música no singular" (ARROYO, 2002, p. 20). Em

consonância com estas ideias, Blacking (1995, p. 3, tradução minha) considera que a Etnomusicologia é uma alternativa para "restaurar o equilíbrio de um mundo de música que ameaça voar alto às nuvens do elitismo3". Os ideais etnomusicológicos desarticulam as hipóteses hierarquizadas que erguiam o status de “verdade musical universal” da música erudita.

O trabalho de Alexander Ellis (1814-1890) foi importante para descaracterizar a suposta qualidade "natural" da escala musical. A partir de análises acústicas de instrumentos musicais do sudeste asiático e africano, apontou, em um trabalho publicado em 1885, que “[...] a escala musical não é apenas uma, não é natural, nem mesmo necessariamente fundamentada nas leis de constituição do som musical, [...] mas muito diversificada, muito artificial e muito caprichosa” (ELLIS, 1885). Stumpf, nesse sentido, afirmou que quando o ouvido humano está familiarizado com certas relações intervalares, ele automaticamente corrige os sons que não sigam os padrões específicos destas relações (PINTO, 2005). Essas correções carregam consigo um forte teor de etnocentrismo, já que pressupõem que o outro está errado pelo fato de estar fora das normas do mundo musical próprio – este supostamente “no tom” e “afinado”.

A Etnomusicologia apresenta as produções musicais eruditas europeias como parte de um sistema teórico/prático que emergiu e se desenvolveu em certo período da história (BLACKING, 1995) e, assim como existe esse sistema específico, há uma enorme variedade de sistemas musicais. Estes carregam padrões sonoros, estéticos, e conceituais, os quais indivíduos culturalmente organizam na confecção musical, conferindo-lhe usos, funções e significados. Assim, a partir da ótica etnomusicológica, a música configura-se como um “sistema estabelecido a partir do que a própria sociedade que a realiza elege como essencial e significativo para o seu uso e a sua função no contexto que ocupa" (QUEIROZ, 2005, p. 50).Blacking (1995) confere aos princípios etnomusicológicos o potencial de revolucionar o mundo da música e da Educação Musical. Os intercâmbios estabelecidos entre a Educação Musical e a Etnomusicologia têm demonstrado que essas vertentes epistemológicas do grande campo musical protagonizam uma relação de enriquecimento mútuo: tanto o educador musical precisa compreender complexidades em torno das questões socioculturais da/na prática musical (foco da Etnomusicologia), quanto o etnomusicólogo precisa compreender de que forma os saberes musicais são valorados, selecionados e transmitidos (foco da Educação Musical) (QUEIROZ, 2010). Assim, Queiroz (2010) afirma que

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apesar de se constituírem como áreas autônomas da música e de terem focos de pesquisa direcionados para questões específicas de seus campos de estudo, a educação musical e a etnomusicologia têm encontrado diversos pontos de interseção, sobretudo nas abordagens etnográficas de suas investigações. (QUEIROZ, 2010, p. 128)

Falar em "transição" de paradigmas implica o reconhecimento de uma passagem gradual de um estágio a outro. No meio tempo entre transições, levitando entre essa "gradualidade", há esperadas inconsistências entre o campo das ideias e o campo das ações. Acredito que no âmbito educacional brasileiro, tanto na música quanto mais amplamente, estamos justamente nesse meio tempo, como Santos et al (2011, p. 215) comentam: "ecos da modernidade estão na educação, na cultura e na música e sua institucionalização escolar". Já temos disponível uma série de trabalhos que tratam da superação do modelo da Modernidade, a partir de uma reconfiguração das propostas pedagógicas, de forma que dialoguem com as realidades em questão e se tornem mais democráticas e significativas na vida dos educandos. Entretanto, ainda é bastante frequente no universo escolar brasileiro o distanciamento entre as ideias que vem sendo sugeridas no campo epistemológico – e mesmo nos dispositivos legais – e a ação na vida real. Por esse motivo, tornam-se primordiais as pesquisas que tematizem e reforcem o reconhecimento dos educandos a partir de aproximações à realidade deles e às dinâmicas de seu(s) contexto(s).