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Capítulo 1. A tradição teórica trotskista

4. Contradição e sobredeterminação

Nossa análise pauta-se pelas contribuições de Louis Althusser, escritas em seu trabalho Pour Marx (na tradução brasileira: A favor de Marx). Nesse trabalho, Althusser revoluciona o campo da filosofia marxista ao fazer uma reinterpretação dos trabalhos de Marx, de Engel e, sobretudo, de Lenin.

Grande parte dos marxistas do século XX afirmavam que a dialética marxista consistia simplesmente numa inversão da dialética hegeliana. Marx não teria feito outra coisa senão tirado o “invólucro místico” que envolvia a dialética de Hegel. A dialética seria a mesma, só que separada da filosofia especulativa. Segundo essa concepção, a inovação de Marx consistiria em aplicar a dialética hegeliana à vida, à experiência sensível, no lugar de aplicá-la às idéias.

Para Althusser, a dialética marxista seria distinta da dialética de Hegel. A ideologia hegeliana teria contaminado a essência da dialética, antes mesmo dela ser aplicada na filosofia especulativa. A “envoltura mística” (exterior), a “concepção de mundo”, o “sistema” – um sistema considerado como exterior ao método –, teria a ver com a própria dialética: “a envoltura é a forma mistificada da própria dialética”, disse Althusser. Esse autor salienta que para libertar a dialética marxista do entrave hegeliano é necessário que se vá além da separação da dialética com sua primeira envoltura (o sistema); deve-se libertá-la também da segunda “envoltura”, “que lhe apega ao corpo”, “sua própria pele”, “inseparável

dela mesma”, que é “ela mesma hegeliana em seu princípio”: a noção de um único núcleo determinante, correspondente ao “espírito absoluto” de Hegel.28

A implicação disso tudo é que, em Marx, os conceitos hegelianos encontrariam uma estrutura teórica diferente. Seriam os mesmos conceitos só que com sentidos diferentes. A partir disso, Althusser revê a interpretação da literatura sobre o conceito de “contradição”, e sobre sua utilização em um tema preciso: o tema leninista do “elo mais débil”.

Althusser cita um exemplo histórico dos erros táticos que podem advir dessa confusão conceitual. Antes da Revolução Russa de 1917, os social- democratas alemães acreditavam que a revolução proletária aconteceria na Alemanha e não na Rússia. A Alemanha era um país desenvolvido, com uma burguesia coesa, já formada, onde a contradição entre burguesia e proletariado (que, por sua vez, via um amplo crescimento do operariado) estava bem delimitada. A revolução aconteceria na Alemanha, segundo os social-democratas, porque era lá que a “contradição” estava mais aguçada. Criticando a posição dos social-democratas, Althusser escreve:

“Acreditavam que a história avançava pelo outro lado, o ‘bom’, aquele do maior

desenvolvimento econômico, da maior expansão, da contradição reduzida à sua mais pura

purificação (a do capital e do trabalho)”.29

Com isso, Althusser pretendia mostrar as implicações táticas da utilização da dialética hegeliana, simplesmente invertida, com apenas um núcleo

28 Louis Althusser, La revolutión teórica de Marx. Trad. espanhola de Pour Marx. Buenos Aires,

determinante (no exemplo citado, apenas uma contradição determinante: a contradição fundamental da formação social capitalista: capital/trabalho), como se fosse marxista. Mas o elo mais fraco da cadeia imperialista não era a Alemanha e sim a Rússia. Era a Rússia que acumulava uma série de contradições, desde internas a externas, que faziam dela um país propício à revolução.30 Diz Althusser:

“[...] toda a experiência revolucionária marxista demonstra que, se a contradição em geral (que está já especificada: contradição entre as forças de produção e as relações de produção, encarnada essencialmente na relação entre duas classes antagônicas) é suficiente para definir uma situação na qual a revolução está ‘na ordem do dia’, ela não pode, por simples virtude direta, provocar uma ‘situação revolucionária’ e, com maior razão, uma situação de ruptura revolucionária e o triunfo da revolução”.31

Para que esta “contradição geral” chegue a ser um princípio de ruptura, é necessário, segundo Althusser, que se produza uma acumulação de “circunstâncias” de tal forma que possam se fundir em uma unidade de ruptura; o que ocorreria quando se logra agrupar uma imensa maioria das massas populares para derrocar um regime cujas classes dirigentes estão impotentes para defendê- lo. Sobre essa unidade de ruptura, ele afirma que,

“a ‘contradição’ [ele usa o termo entre aspas para indicar a “unidade das contradições”] é inseparável da estrutura do corpo social inteiro, no qual ela atua, é inseparável das condições

29 Ibidem, p. 79 (grifos do autor).

30 Althusser enfatiza que a Rússia czarista , desde 1905, já havia mostrado sua debilidade, que

resultava de um traço específico: “a acumulação e a exasperação de todas as contradições, até então possíveis, em um só Estado”. Dentre as contradições, o autor cita: a exploração dos camponeses por um regime feudal no início do século XX; a exploração capitalista e imperialista desenvolvidas nas grandes cidades e nos bairros suburbanos, nas regiões mineiras e petrolíferas; a exploração e as guerras coloniais impostas a povos inteiros; o grau de desenvolvimento dos métodos de produção capitalista e o estado medieval do campo; a exasperação da luta de classes em todo o país, não só entre exploradores e explorados, mas também no próprio seio das classes dominantes; etc. Cf. Louis Althusser, op. cit, p. 77.

formais de sua existência e das mesmas instâncias que governa; ela mesma é afetada, no mais profundo do seu ser, pelas ditas instâncias, determinante mas também determinada em um só e mesmo movimento, e determinada pelos diversos níveis, e pelas diversas instâncias da formação social que ela anima; poderíamos dizer: sobredeterminada em seu princípio”.32

Dito de outra maneira, a dialética marxista jamais poderia ser a mesma de Hegel, invertida, sem o “envoltório místico” da filosofia especulativa. Enquanto que a dialética hegeliana, construída dentro de um campo teórico determinado, teria um núcleo central, único, identificado com o “espírito absoluto” da filosofia idealista de Hegel, a dialética marxista seria sobredeterminada em seu princípio.

Conseqüência direta desta concepção é que, agora, a dinâmica de uma situação revolucionária depende de múltiplas contradições. No plano estrutural, ela seria dada não só pela situação da estrutura (base econômica: forças de produção, relações de produção) da formação social, mas pela relação dialética desta com a superestrutura (constituída pelo Estado e todas as formas jurídicas, políticas e ideológicas). No âmbito das classes sociais, uma situação revolucionária seria determinada não mais somente pela relação entre as classes antagônicas do modo de produção capitalista (burguesia e proletariado), mas também pelas contradições das diferentes frações de classes e a relação dialética destas frações de classe com as outras classes sociais da formação social concreta.33

31 Ibidem, p. 80.

32 Ibidem, p. 81 (grifos do autor).

33 Vale lembrar que a noção da necessidade do acúmulo de múltiplas contradições na

Temos outros exemplos históricos, além do explicitado por Althusser da social-democracia alemã, sobre o erro teórico-tático do movimento socialista marxista. Nicos Poulantzas, por exemplo, ilustra o mesmo problema em uma outra situação.

Ao estudar a questão do fascismo, Poulantzas busca os argumentos que explicariam a razão pela qual a Internacional Comunista não estava à espera do fascismo na Alemanha. O erro da Internacional seria o de considerar o surgimento do fascismo como algo intrínseco à situação econômica em que se encontrava o país. Teria surgido na Itália devido ao seu atraso econômico, mas jamais poderia ocorrer na Alemanha, dada a evolução das forças produtivas desse país. Para Poulantzas, o erro encontrava-se na apreensão do processo como uma “evolução econômica linear”, pois a fraqueza do elo alemão, na cadeia imperialista, não se encontrava na situação econômica. O elo alemão seria fraco devido à eminência de contradições em sua formação social. Essas contradições eram oriundas do período da própria constituição do Estado burguês alemão, no qual havia o predomínio dos grandes proprietários de terra sobre a burguesia, dificultando a industrialização e a intervenção estatal maciça em proveito do capital financeiro.34

As implicações dessa avaliação, adotada pela Internacional Comunista, foram drásticas para o movimento operário. Isto ocorreu devido à crença de que a revolução seria, para eles, uma “conseqüência mecânica” da crise econômica, a revolução estava “na ordem do dia”. O fascismo seria, desta maneira, a última

etapa (etapa esta necessária) antes da ditadura do proletariado. Sobre isso, Poulantzas diria:

“A revolução proletária na ordem do dia assumia assim, desde já, o significado de uma

revolução pronta a surgir não importa onde nem quando, compreendida como a conseqüência

mecânica da crise econômica, ela própria efeito dessas contradições econômicas”.35

A tradição teórica trotskista, por sua vez, não faz outra coisa senão privilegiar a estrutura econômica da formação social capitalista, principalmente no que diz respeito às forças de produção. Na elaboração de sua tática, praticamente não têm peso os outros componentes do modo de produção, como o Estado e suas formas jurídicas, como as variações de ordem política, ideológica, etc.

No âmbito das classes, a tradição trotskista tende a considerar apenas uma contradição, a do capital versus trabalho: vê as classes sociais como homogêneas deixando de lado as existentes entre as classes e frações de classe de uma determinada formação social concreta.36 Um traço muito comum às correntes trotskistas, por exemplo, é o constante apelo à necessidade de uma independência da classe operária face às outras classes, implicando na recusa permanente de aproveitar-se de possíveis fissuras na unidade entre as frações da classe dominante.

Devido a esse traço teórico – que consiste em privilegiar a contradição fundamental da sociedade capitalista, isto é, Capital versus Trabalho, num plano, assim como as condições econômicas em detrimento de outras condições de

caráter estrutural, noutro plano – o trotskismo (enquanto teoria) tende a adotar um ultra-esquerdismo economicista que pode conduzir (e em muitos casos concretos conduz) as correntes trotskistas a uma prática política predominantemente marcada (em situações de ascenso do capital) pelo sectarismo e pelo isolamento, como também pode levar a uma prática política que contemple somente questões de cunho estritamente sindical.

36 Vale lembra que o conceito de modo de produção é uma abstração. Uma formação social, por