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Capítulo 3. As táticas das correntes trotskistas no Brasil

2. Programa revolucionário e tática política

2.2 O Trabalho

Em ambas as eleições de 1998 e de 2002, as plataformas eleitorais apresentadas pelo PT continham elementos que não contemplavam as reivindicações da corrente O Trabalho. A política de alianças do partido também contrariava as orientações políticas dessa corrente. Vejamos, então, em quê consistiam as propostas da corrente O Trabalho.

Durante o período estudado, a corrente O Trabalho defendeu a derrubada do governo de Fernando Henrique Cardoso. Este seria caracterizado pela destruição dos serviços estatais, pela entrega do patrimônio público através das privatizações, pela sangria do país através do pagamento da dívida, pelo atrelamento das decisões governamentais ao Fundo Monetário Internacional, pela destruição dos direitos trabalhistas, entre tantas outras medidas que prejudicaram diretamente a condição de vida dos trabalhadores. Por isso, a corrente colocava que o momento seria o de retirar o governo de Fernando Henrique Cardoso. E avaliava, em ambos os momentos eleitorais, que o PT poderia derrotar o governo da situação e derrubar o modelo neoliberal através da candidatura Lula.

A corrente fornece vários indícios de que somente após concluída essa primeira etapa é que se abriria uma possibilidade de perspectiva socialista no país. Sendo assim, a próxima tarefa seria a de disputar os rumos do governo Lula. Essa tática foi usada nos dois anos eleitorais. Seus dirigentes sustentavam, em 1998, que:

“O nosso primeiro compromisso é com a luta desses milhões, que vêem em Lula a sua aspiração a viver dignamente numa nação, com reforma agrária, salário e emprego, reestatização da Vale [do Rio Doce] e recuperação dos serviços públicos. Deste ponto de vista, hoje, nada é mais urgente do que acabar com o governo FHC.

[...] A tarefa é, em torno da candidatura de Lula, organizar os trabalhadores para expulsar FHC, contribuindo assim para que adquiram a força e confiança necessárias para efetivamente virem a governar em ruptura com os ermírios, brizolas e quércias [em alusão ao empresário Antônio Ermírio de Moraes e aos políticos Leonel Brizola e Orestes Quércia]. É a ‘via mais econômica’ para que, por sua própria experiência, o povo trabalhador liberte-se de preconceitos e

ilusões, dotando-se da organização correspondente às suas necessidades. É possível derrotar o governo do FMI. Não seria divisionista opor-se a esse passo necessário?”.130

A alternativa que seus dirigentes encontraram para a “tarefa de organizar os trabalhadores” foi a de uni-los em torno de “comitês”. A tarefa dos comitês seria primeiro eleger Lula para depois fazer pressão pelas “reivindicações do povo brasileiro”. Esse foi um dos argumentos utilizados pela corrente para justificar o apoio à candidatura Lula nas duas campanhas eleitorais.

No ano de 1998, o PT decidiu lançar a candidatura de Lula para presidente da república junto com Leonel Brizola (PDT), como vice-presidente, e com uma frente política que aglutinava outros partidos, como o PCdoB, o PSB. As principais críticas de O Trabalho à candidatura “Lula-Brizola” consistiam em dois pontos. Primeiro, não concordava com a política de alianças do partido “com setores da burguesia”, como Brizola, Arraes e Requião.131 O segundo ponto da crítica operou em relação ao programa apresentado para aquela candidatura, que defendia a manutenção do Plano Real.132

130 “Resposta ao PSTU”. Em O Trabalho, n. 437, de 27 de maio a 10 de junho de 1998. 131 Em relação a esse ponto a corrente diria:

“Não podemos recomendar que se vote em partidos como o PSB de Arraes, ligado aos latifundiários, governador dos precatórios e das privatizações. Ninguém espera que ele e seu partido façam outra coisa. Requião representa quem? Não são os trabalhadores. Brizola é contra as ocupações de terra. Não é possível conciliar no governo interesses da burguesia com os interesses dos trabalhadores. Este problema já está presente na própria marca da campanha. A estrela sumiu. Com esses partidos, não há lugar para o PT. Um governo do PT, que atenda as reivindicações, exige a ruptura com os que se submetem ao grande capital”.

Em “Cinco questões em debate”, O Trabalho, n. 441, de 22 de julho a 12 de agosto de 1998.

132 A defesa de um programa baseado na estabilidade monetária do Real seria “uma posição

inadmissível, pois coloca-se nos marcos de aceitação do Plano Real, e não de ruptura”. Assim, a corrente apresenta uma proposta para a campanha eleitoral do PT em uma moção encaminhada à Executiva Nacional do partido, defendendo: 1) a inutilidade das medidas tomadas para manter a estabilidade monetária (demissões, privatizações, falências por juros altos, reformas, etc.), pois os especuladores iriam querer sempre mais; 2) que a “estabilidade” do Real seria uma falácia que beneficiaria os especuladores e as multinacionais contra a “nação e o povo”; 3) que o governo PT não deveria se submeter ao FMI; 4) o uso do programa eleitoral para as manifestações de 7 de setembro, rompendo com o FMI, o Bird e a OMC; e 5) a adoção de uma “plataforma de

Em 2002, com a guinada do PT à direita, as divergências tenderam a aumentar. Giraram em torno dos mesmos pontos: política de alianças e programa de campanha.

As principais reivindicações da corrente no campo programático abordavam sobre o rompimento com o Fundo Monetário Internacional e o não pagamento da dívida externa, a reestatização das empresas privatizadas, a criação de empregos e a recuperação dos salários, a retirada do governo brasileiro das negociações da Área de Livre Comércio das Américas, a reforma agrária, entre outros pontos.133

Como mostramos acima, o programa petista que se desenhou ao longo da campanha eleitoral ia de encontro com estas reivindicações, propondo a manutenção do acordo com o Fundo Monetário Internacional, do superávit primário para honrar os compromissos junto aos credores, da política de juros altos e de ortodoxia monetária e, ainda por cima, o PT fez questão de se retirar do Comitê de Organização do Plebiscito sobre a Área de Livre Comércio das Américas.

Em reunião do Diretório Nacional do PT, realizada a 17 de março, para homologar as prévias eleitorais, os militantes da corrente O Trabalho, Markus Sokol e Laércio Barbosa, colocaram uma proposta, na qual defendiam a ruptura

emergência” (redução da jornada sem redução dos salários, cessar o pagamento da dívida externa, bloquear as especulações financeiras, reestatizar, reforma agrária). Cf. “Proposta para a campanha eleitoral do PT”, O Trabalho, n. 444, de 9 a 23 de setembro de 1998.

133 Por volta do mês de junho, a corrente escreveria no editorial de seu jornal: “Como é possível

aceitar exigências de ‘honrar contratos’ ou ‘compromissos externos’? O povo jamais decidiu sobre a dívida ou a Área de Livre Comércio das Américas! Aceitar isso é igualar todos os candidatos e confunde o eleitor”. Em “Como é possível?”, O Trabalho, n. 516, de 6 a 20 de junho de 2002.

com o Fundo Monetário Internacional e a não coligação com o Partido Liberal.134 Contudo, a proposta foi derrotada. De fato, a corrente mostrou-se bastante incomodada com a aproximação à direita com o PL135 e com a busca de alianças

com outros partidos burgueses, como o PMDB. Em um artigo, Sokol criticaria um discurso do então coordenador da campanha, Antônio Palocci, de que na composição de seu programa iriam ouvir todos os setores da “sociedade civil” e de que construiriam uma “novo pacto social”. Sokol diz que a corrente seria contra essa postura e defende que a própria fundação do PT teria sido necessária porque já havia partidos da “sociedade em geral”, “o que faltava era um partido dos trabalhadores”. Esse partido seria, segundo ele, posto em questão pelas políticas de alianças do momento que, “privariam os trabalhadores de um instrumento próprio” de luta.136

Mas, se o partido mostrava-se disposto a abandonar seu programa anterior – defendendo parte das políticas neoliberais –, se deixava claro que não aspirava mais a uma alternativa classista para as eleições optando pela aliança com a grande burguesia, por que então O Trabalho manteve seu apoio à candidatura Lula? Por que não abandonou a campanha ou até mesmo o partido?

Para tentar responder a esta questão, devem ser levados em consideração dois fatores. O primeiro diz respeito à situação concreta em que se encontrava a

134 Cf. “Nosso voto no DN”, O Trabalho, n. 511, de 28 de março a 11 de abril de 2002.

135 São vários os artigos nos quais a corrente desqualifica o PL e José de Alencar. A corrente

direciona esse ataque ao longo do ano todo de 2002. Por exemplo, diriam em um artigo que José de Alencar seria a favor da Área de Livre Comércio das Américas, defenderia a manutenção de Armínio Fraga no Banco Central, criticaria a luta do MST como “um mal” e elogiaria a ditadura militar como uma alternativa à suposta “comunização” que o país estava sendo submetido; assim,

corrente. Devido ao reduzido efetivo de sua militância, caso rompesse com o PT, O Trabalho correria o risco de se desintegrar ou de cair em um completo isolamento. O outro fator corresponde diretamente à sua tradição teórico-política. Podemos ver a influência desta tradição em ambos os períodos eleitorais, mas em 2002 ela fica mais clara. O motivo alegado para o apoio à candidatura do PT seria o de que o eventual governo Lula estaria em disputa. Avaliavam que o resultado do esforço da corrente em torno da organização dos “comitês”, que chegou a coletar perto de 7 mil assinaturas de apoio, seria um ponto positivo, um contrapeso na luta pela disputa das políticas do governo Lula. O povo votava em Lula contra o programa que ele apresentava. Em depoimento, o dirigente da corrente Júlio Turra diria:

“O governo PT [caso eleito] é um governo pressionado pelo imperialismo americano, de um

lado, e pelas massas de outro. Para que lado ele vai? A luta de classes é que vai decidir. A nossa política é defender o PT como partido das classes trabalhadoras: Lula presidente, mas para romper com o FMI, sem Alencar.

Isso vai ser contraditório com o programa do Lula? Provavelmente vai ser. Mas pretendemos politicamente preparar exatamente a segunda etapa [de resistência e disputa pela

direção em que vai o governo Lula]. Não devemos descartar a hipótese teórica de que a pressão

das massas faça o Lula ir muito mais adiante do que se propõe. Isso já aconteceu historicamente, como no caso de Fidel Castro e a Revolução Cubana”.137

Ao referir-se à “preparar politicamente para a segunda etapa de resistência e disputa pela direção em que iria um futuro governo Lula”, Júlio está fazendo

é escrito: “ A aliança com o PL de Alencar só pode ser uma tentativa de anular o PT como partido dos trabalhadores”. Cf. “Isto é José de Alencar”, O Trabalho, n. 512, de 11 a 25 de abril de 2002.

menção à organização dos comitês. A intenção de unir os trabalhadores em torno de comitês parece estar diretamente relacionada à proposta de se organizar para fazer a luta reivindicativa, indicando que a corrente caminha no sentido de privilegiar as reivindicações transitórias a partir da leitura que faz do Programa de

Transição.

Como vimos, o principal motivo alegado pela corrente para a permanência no PT seria o de que ele é o partido dos trabalhadores. A argumentação para essa posição – que é caracterizada por alguns de lambertismo, em referência ao seu dirigente histórico Pierre Lambert –, é a de que a construção do partido revolucionário deve vir do movimento operário, democraticamente articulado entre as diferentes correntes stalinistas, anarquistas, social-democratas, etc. Esse partido não poderia ser autoproclamado por uma vanguarda e deveria ser essencialmente um partido da classe trabalhadora. O Trabalho argumentaria que, no caso brasileiro, as massas trabalhadoras encarariam o PT como esse partido e isso faria com que a corrente militasse no seu seio. Além do que, ainda segundo a corrente, o PT não teria passado pela experiência capital que no Brasil seria representada pela direção do governo federal e, por isso, não se poderia afirmar a questão da crise de direção – como faria o PSTU.138

Entretanto, defender a permanência em um partido calcada unicamente na sua origem operária pode ser uma prática contraditória com qualquer perspectiva programática. Ao fazê-lo, a corrente tende a conferir um papel positivo a qualquer

137 Júlio Turra, entrevista concedia a Andriei Gutierrez, na cidade São Paulo a 20 de maio de 2002. 138 Cf. idem, ibidem.

iniciativa que venha das camadas populares em detrimento do seu programa político. Corre-se o risco de ser obrigado a defender um programa contraditório às suas orientações políticas. Parece ser esse o caso da corrente O Trabalho.

O fato de “as massas acreditarem em Lula” não quer dizer que o seu programa seja progressista. Por isso, vimos a contradição em que caiu a corrente O Trabalho: ajudou a eleger a candidatura Lula-Alencar, com um programa social- liberal – que na prática não deixava de ser um programa neoliberal com medidas paliativas – contra toda a sua base teórica, contra o programa histórico que defendia e que representava o inverso das medidas que reivindicavam.

O PT não precisou passar pela experiência para provar para que vinha, houve vários indícios durante o ano de 2002 que mostravam em qual sintonia estava o partido. Assinou a “Carta ao povo brasileiro”, comprometendo-se com os especuladores e o setor financeiro; declarou sua subserviência ao Fundo Monetário Internacional, no segundo semestre, ao aceitar a manutenção do acordo assinado por Fernando Henrique Cardoso; abandonou qualquer perspectiva classista ao se aliar com o Partido Liberal e, mais tarde, a possibilidade de afirmar uma política progressista na questão externa saindo da organização do plebiscito da Área de Livre Comércio das Américas.

Assim, entendemos que a contradição entre a prática política e as orientações políticas da corrente O Trabalho é reflexo da leitura que esta faz do programa trotskista, como também da influência que lhe exerce a tradição lambertista, conferindo-lhe uma noção formalista de classe operária. De um lado,

seus dirigentes dão demasiada importância às reivindicações transitórias, como sendo um passo que obrigatoriamente conduz ao socialismo. De outro, pregam a necessidade da permanência em um partido de massas, composto apenas por extratos das camadas trabalhadoras, independentemente do programa político que esse partido defende.