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Contratos, parcerias e a permanência da agricultura familiar

5. ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL E DISTRIBUIÇÃO DE RENDA NA

5.8. Reestruturação agrícola, relações de trabalho e desigualdade de renda

5.8.2. Contratos, parcerias e a permanência da agricultura familiar

Fica claro que a parceria e a produção sob contrato têm sido formas usuais de participação dos agricultores familiares em cadeias produtivas que envolvem a agropecuária. Os resultados estatísticos que mostram uma recuperação dos ocupados da agricultura familiar na participação relativa na renda total, na última década, embora excessivamente modesta, são compatíveis com as características de participação desse estrato social nos arranjos de trabalho, anteriormente discutidos. Por outro lado, como ficará mais claro adiante, é possível que uma pequena parcela dos agricultores familiares integrados em cadeias produtivas faça parte, efetivamente, do estrato social dos empregadores, na condição de pequenos empregadores.

A participação dos agricultores familiares na agropecuária como um todo nunca foi desprezível, entretanto sua importância tem sido ressaltada, em décadas mais recentes. O desempenho econômico dos agricultores familiares no âmbito das cadeias produtivas do agronegócio é diversificado, de tal forma que sua posição nas ocupações do setor é consistente com a abordagem teórica de Wright (1977), segundo a qual as posições em uma estrutura ocupacional podem ser múltiplas e, de alguma maneira, contraditórias. Collins (1993) chama atenção para a crítica que é feita aos contratos estabelecidos entre empresas e agricultores no âmbito do agronegócio, no que diz respeito à qualificação da força de trabalho do agricultor familiar. Argumenta-se que, na medida em que são feitos direcionamentos em relação a muitos aspectos do processo produtivo, isso estaria representando um elemento de perda de autonomia dos agricultores em relação aos seus conhecimentos acumulados e uma contrapartida de desqualificação de seu trabalho. Entretanto, conforme argumenta a autora, os contratos só podem representar uma desqualificação quando os agricultores nessa condição são comparados com outros em situação de uma agricultura camponesa independente. Agricultores operando sob contrato sofrem restrição na expressão de suas qualificações e no controle dos processos de gerenciamento da produção, em comparação com pequenos agricultores independentes, mas apresentam uma qualificação maior do que a que é esperada dos trabalhadores agrícolas assalariados.

Portanto, há uma complexidade que deve ser levada em conta no que diz respeito ao estrato social dos agricultores familiares. Com relação à mão-de-obra, os agricultores sob contrato ou em parceria, no âmbito das cadeias produtivas, utilizam a força de trabalho de sua própria família, mas, quando necessário, podem fazer uso de trabalho externo. No caso da produção de frutas e hortaliças analisado por Collins (1993), os agricultores sob contrato ou em parceria empregam força de trabalho externa à sua unidade produtiva em pontos chave do ciclo agrícola. Na situação de contratos, especificamente, os agricultores podem empregar sazonalmente a mão de obra local, ou fazer uso da parceria em uma parcela de sua terra. Na condição de parceiros de empresas do agronegócio, os agricultores também podem fazer uso do emprego de força de trabalho temporária externa à família. Os

agricultores sob contrato ou em parceria com processadores ou distribuidores tornam-se, nesse caso, ao mesmo tempo, produtores diretos e pequenos empregadores. Como destaca Collins, existe, na região da fruticultura do vale do São Francisco, um processo de diferenciação entre esses agricultores, alguns sucumbindo em razão de dívidas e de más colheitas e outros se mantendo, inclusive se diversificando e adotando cultivos que não se inserem em arranjos na forma de contratos ou de parcerias.

A fruticultura irrigada do Nordeste é um exemplo da participação da agricultura familiar nas cadeias produtivas do agronegócio brasileiro. Sua importância aparece, também, em outros subsetores, como é o caso da avicultura, com destaque para a região Sul do país. Conforme estudo elaborado por iniciativa do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA (2007), alguns setores industriais ligados ao agronegócio destacam-se por dependerem mais da produção familiar do que outros. Como ressaltado no relatório sobre esse estudo, a utilização do termo Agronegócio Familiar reflete a abordagem dos pesquisadores com relação às cadeias produtivas que envolvem a agricultura familiar, considerada como um segmento do complexo maior da chamada economia do agronegócio, porém ostentando uma identidade econômica própria. A caracterização conceitual do agricultor familiar, por sua vez, obedece aos critérios utilizados na pesquisa que resultou na

publicação do “Novo Retrato da Agricultura Familiar – O Brasil Redescoberto”, de 2000,

por meio da Cooperação do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA com a FAO

(Cooperação Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação - INCRA/FAO). De acordo com a metodologia utilizada nesse estudo, os agricultores são classificados a partir de condições básicas associadas ao processo de produção, que explicariam, em boa medida, suas respostas às variáveis externas e, também, sua forma de apropriação da natureza. O universo dos estabelecimentos dos agricultores familiares foi caracterizado pelo atendimento às seguintes condições: a) a direção dos trabalhos era exercida pelo produtor; e b) o trabalho familiar era superior ao trabalho contratado. Adicionalmente, foi estabelecida uma área máxima regional como limite superior para a área total dos estabelecimentos

familiares, com o objetivo de evitar distorções oriundas da possível inclusão de grandes latifúndios no universo da agricultura familiar.

Percebe-se que há uma diferença entre o critério para a caracterização do agricultor familiar adotado no estudo do MDA (com base na pesquisa acima referida) e o critério da pesquisa da PNAD, no que se refere às características da relação de trabalho. Na pesquisa PNAD a diferença entre o empregador e o autônomo ou conta-própria (que se identifica com o agricultor familiar) faz-se com base no emprego de força de trabalho externa ou de força de trabalho familiar, estritamente. Pelo critério adotado pelo MDA, a caracterização do agricultor familiar permite, também, o emprego de força de trabalho externa, além da força de trabalho da família, que será, sempre, preponderante. Esse critério é compatível com a análise de Collins sobre a participação dos agricultores familiares nos arranjos de trabalho na fruticultura irrigada do Vale do São Francisco, como visto anteriormente e com o relatório produzido em cooperação pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE/MDA, em 2008.

Como mostra o estudo do MDA (2007), algumas cadeias produtivas, tanto da agricultura, propriamente, quanto da pecuária, são mais dependentes da produção familiar, quando comparadas com outras. Com relação à agricultura, propriamente, esse é o caso, por exemplo, da indústria tabagista, cuja matéria-prima tem origem, quase exclusivamente, na produção familiar. Também a indústria do vestuário nordestino utiliza matéria-prima que tem origem na produção de algodão ligada à pequena agricultura familiar dessa região. As indústrias processadoras de óleos vegetais, que têm presença significativa no Sul do país, onde os agricultores de base familiar têm importância expressiva, também integram as cadeias articuladas à agricultura familiar.

Com relação à pecuária, especificamente, destaca-se, na região Centro-Oeste, a produção familiar que abastece a indústria do setor, como é o caso do abate de bovinos e os laticínios em Goiás e o abate de aves no Mato Grosso do Sul. Na região Sul, a agricultura familiar destaca-se no fornecimento de aves e suínos para importantes frigoríficos e

indústrias alimentícias ligadas ao abate e processamento de embutidos (presunto, salame, mortadela etc.). No Nordeste, uma indústria de calçados, embora pequena, é consideravelmente articulada ao segmento familiar.

O estudo elaborado pelo MDA (2007) mostra a evolução percentual dos quatro componentes do agronegócio (setor de insumos, setor agrícola ou pecuário, setor de distribuição e setor de processamento) para o segmento familiar e o patronal, no período de 1995 a 2005. Ambos os segmentos não apresentam alterações expressivas nas parcelas de cada um dos componentes, nesse período. Com relação ao agronegócio especificamente agrícola, os setores de produção agrícola, de distribuição e de processamento, do segmento familiar, respondem, aproximadamente, por parcelas semelhantes entre si: 31,2% em 1995 e 30% em 2005; 32,2%, em 1995 e 34,6% em 2005; e 33,2% em 1995 e 30,7% em 2005, respectivamente. Para o segmento patronal os percentuais são diferentes, com o predomínio do setor de processamento, em todo o período: 20,7% em 1995 e 21,7% em 2005, para o setor de produção agrícola; 32,4% em 1995 e 32,0% em 2005, para o setor de distribuição; 43,9% em 1995 e 42,3% em 2005, para o setor de processamento. Como os dados indicam, a agroindústria tem um peso maior no agronegócio da agricultura patronal (42,3%, em 2005) em relação ao agronegócio familiar (30,7% em 2005), o que indica um menor grau de transformação da produção agrícola familiar e, portanto, menores possibilidades de agregação de valor, nesse segmento.

Com relação à evolução percentual desses quatro componentes para o agronegócio especificamente pecuário, a participação de cada um deles para o segmento patronal é bem próxima à do segmento familiar. No caso do segmento familiar, os setores de produção pecuária, de distribuição e de processamento correspondem a: 37,8% em 1995 e 36,6% em 2005; 39,1%, em 1995 e 38,9% em 2005; 17,1% em 1995 e 14,9% em 2005, respectivamente. Para o segmento patronal, os dados variam de uma participação da produção pecuária de 32,4% em 1995 para 34,1% em 2005; a participação do setor de distribuição varia de 41,7% em 1995 para 39,5% em 2005; e a participação da indústria de processamento varia de 18,8% em 1995 para 14,9% em 2005. Observa-se, portanto, níveis

mais baixos de participação da indústria de processamento no conjunto do agronegócio pecuário, quando comparados com a participação desse setor no conjunto do agronegócio especificamente agrícola, tanto para o segmento patronal quanto para o segmento familiar.

O estudo do MDA (2007) identifica, também, os valores globais e os valores da produção familiar especificamente, (PIB em R$ milhões, para o ano de 2004), tanto na agricultura quanto na pecuária. Com relação às lavouras, os valores globais da produção mostram uma pujança nas agriculturas da região Sudeste e da região Sul do país. Na primeira região, destacam-se os cultivos da cana de açúcar, do café e a fruticultura (o estado de São Paulo é o maior produtor nacional de laranja), enquanto na região Sul todos os cultivos exibem produções relativamente expressivas, com exceção do café e do algodão. Há uma concentração da rizicultura na região Sul, da cana de açúcar no Sudeste e uma grande expressividade da soja nas regiões Centro-Oeste e Sul. Em termos relativos, a agricultura familiar mostra um desempenho acanhado na região Centro-Oeste (o segmento patronal representa aproximadamente 80% do agronegócio nessa região), em comparação com um desempenho mediano na região Sudeste (região com uma economia global muito diversificada) e pujante na região Sul (onde representa 47% do agronegócio), conforme dados do MDA (2007). Nesta última região, as culturas familiares que se destacam são a da soja, do fumo e do trigo. Na região Nordeste o destaque vai para a fruticultura, a mandioca, o arroz e o feijão.

Com relação às atividades da pecuária, os dados mostram, com destaque, o desempenho da bovinocultura nas regiões Norte e Centro-Oeste, com um caráter fortemente patronal. A região Sul, de forma similar à produção agrícola, é a que apresenta uma maior participação do segmento familiar no conjunto do agronegócio, com destaque, em relação às outras regiões, para a avicultura e a suinocultura. Na região Nordeste, a avicultura, a atividade leiteira e a bovinocultura de corte apresentam-se com algum destaque e as duas primeiras são inseridas no segmento familiar.

O estudo do MDA confirma, portanto, a concentração do segmento familiar na região Sul do país e sua importância, também, na região Nordeste e no Sudeste (neste último caso destaca-se mais em termos de magnitude e menos de participação relativa, tendo em vista tratar-se de região com grande pujança econômica e maior diversificação). A região Centro-Oeste, por outro lado, concentra a atividade patronal do agronegócio, que responde por uma parcela em torno de 80% do total.

Os resultados desse estudo destacam, como uma das suas principais conclusões, o peso da participação das cadeias produtivas de base familiar na geração da riqueza do país, que se mantém em torno de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, no período entre 1995 e 2005, correspondendo a aproximadamente um terço do total do valor das cadeias produtivas agropecuárias, nesse período. No ano de 2005, o conjunto do agronegócio respondeu por 27,9% do PIB total, enquanto o segmento familiar agropecuário e as cadeias produtivas a ele interligadas participaram com 9,0%. Isso demonstra, conforme é ressaltado no relatório desse estudo, que a agricultura familiar brasileira, embora de caráter bastante heterogêneo, conecta-se em importantes e estreitas inter-relações com os segmentos agroindustriais e de serviços de algumas cadeias produtivas do agronegócio. Outra conclusão importante desse estudo diz respeito aos dados que mostram o caráter positivo do desempenho recente da agropecuária familiar e do agronegócio a ela articulado, em termos de PIB, inclusive com taxas de crescimento igualando-se às do segmento patronal. A partir de 2004, esse desempenho sofre uma redução, mas isso ocorre para ambos os segmentos, familiar e patronal.

Como o relatório do estudo do MDA (2007) destaca, o contexto da participação do agricultor familiar na produção agropecuária é o da insuficiência de terras, de dificuldades creditícias, de menor aporte tecnológico, de fragilidade da assistência técnica e de subutilização da mão-de-obra. A razão de sua participação na geração de riqueza estaria ligada à existência de algumas parcelas do segmento integradas aos setores agroindustriais e de distribuição, com destaque para a pecuária de pequeno porte. Esse contexto é compatível, pelo menos até certo ponto, com a débil posição da mediana da renda dos

agricultores familiares no conjunto da renda do setor, que não obstante alguma recuperação na última década, não demonstra uma elevação substantiva.

O trabalho de Collins (1993), anteriormente citado, mostra que a integração, em cadeias produtivas, de agricultores familiares, quando se considera o ponto de vista da empresa integradora, obedece, principalmente, ao critério de qualidade do trabalho e ao controle da mobilização política. Por um lado, fica evidente um forte elemento de mercado na estruturação das atividades das unidades produtivas familiares. Isso não é tudo, porém. Agricultores familiares dispõem, usualmente, de condições mais débeis de negociação, realizadas muitas vezes em contextos oligopsônicos. De acordo com Collins, os contextos locais são formados, também, por fatores como as políticas de Estado e as estratégias de sindicalização e de partidos políticos, entre outros. Para a autora, no caso do Vale do São Francisco, os subsídios e ações do governo, de um modo geral, foram elementos constitutivos de uma agricultura sob contrato, que se tornou um importante subsetor de uma “pequena burguesia” (aspas minhas) agrícola (Collins, 1993).

Pode-se concluir, portanto, que forças de mercado e elementos políticos constituem as condições para a atividade da agricultura familiar, do que pode resultar uma situação compatível com a melhoria na participação relativa desse estrato social no conjunto da renda do setor, mas, apenas, para uma parcela do grande contingente de ocupados que compõem esse universo. Tendo em vista o critério que permite a utilização, pelos agricultores familiares, de força de trabalho externa à família, é possível afirmar que alguns dos agricultores familiares capitalizados façam parte, inclusive, do estrato considerado na pesquisa da PNAD como o dos empregadores.