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Estrutura social na agropecuária brasileira: a década de 1960

5. ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL E DISTRIBUIÇÃO DE RENDA NA

5.1. Estrutura social na agropecuária brasileira: a década de 1960

Tendo em vista que a grande transformação da agropecuária brasileira ocorreu a partir da década de 1960, é necessário fazer algumas considerações sobre as condições prevalecentes na estrutura social do setor, naquele momento. Singer (1981) constrói uma evolução da estrutura de classes brasileira para o período entre 1960 e 1976, para o setor de atividade agrícola e o não-agrícola, a partir da posição na ocupação e do nível de renda. O autor considera como os principais componentes dessa estrutura social a burguesia (empresarial e gerencial), a pequena-burguesia (autônomos, empregadores e não remunerados) e o proletariado e subproletariado (este último composto por assalariados, autônomos e não remunerados). Na perspectiva teórica de Singer, empresários e administradores profissionais constituem a burguesia no capitalismo monopolista. A posição na ocupação identifica a burguesia empresarial, representada pelos empregadores, e a burguesia gerencial, representada pelos empregados que ocupam posições de mando (tanto nas empresas quanto no serviço público). A burguesia, para Singer, “no sentido amplo do termo, é o conjunto de empregadores e empregados que dispõem de elevado nível de renda, não porque renda alta defina a burguesia mas porque existe uma forte correlação entre renda e posições de poder econômico e social.” (SINGER, 1981, p.102).

A pequena burguesia é formada, de acordo com Singer, pelos que são proprietários dos meios necessários ao exercício de sua atividade, podendo ser autônomos ou pequenos empregadores, mais os membros não remunerados de suas famílias. O autor utiliza o nível de renda para a diferenciação entre empregadores burgueses e empregadores pequeno- burgueses, bem como entre autônomos pequeno-burgueses e autônomos proletários, por considerar que o rendimento é um bom indicador do caráter das relações de produção. “É razoável admitir que a renda dos empregadores seja proporcional ao número de assalariados

que empregam e que a renda dos autônomos seja proporcional à posse de meios de produção ou de circulação que detêm” (SINGER, 1981, p. 103).

O Proletariado, para Singer, compõe, em conjunto com o subproletariado, uma única classe social, dependente da venda de sua força de trabalho. O que distingue os dois grupos é a existência, para o proletariado, de um salário definido em contrato formal de trabalho, o qual é sujeito a condições legais que regem as relações de emprego, que o autor considera normais no capitalismo. Os trabalhadores que compõem o subproletariado, para Singer, não conseguem usufruir dos benefícios da legislação, tendo que sobreviver prestando serviços sem registro em carteira e por salário menor que o mínimo, ou produzindo mercadorias por conta própria. O mesmo critério de diferença de renda é utilizado, pelo autor, na distinção entre proletariado e subproletariado.

Não obstante a diferença de critérios na distinção de classe dentro dessa estrutura social (note-se, especialmente, a utilização do nível de renda para a diferenciação de classe), a tipificação feita pelo autor permite, em linhas gerais, uma aproximação com a classificação dos estratos sociais adotada nesta tese, a qual privilegia as características da posição na ocupação como indicadoras da posição de classe e do lugar no mercado de trabalho. Para efeito de comparação, podemos supor que a classe da burguesia (a empresarial e a gerencial), do estudo de Singer, é correlata, em grande medida, com a dos estratos de empregadores agrícolas e administradores na moderna atividade agropecuária, conforme considerados nesta tese.

As características da pequena burguesia são compatíveis com a dos agricultores familiares. É importante salientar que essa identificação está mais de acordo com os critérios adotados em alguns estudos sobre agricultura familiar em que se admite o emprego de mão-de-obra externa, de forma complementar à da própria família. Estes são, inclusive, critérios adotados pelo PRONAF. Os agricultores familiares obtidos segundo a pesquisa da PNAD, classificados como os “de conta própria” ou os “autônomos”, não empregam

qualquer assalariado, o que significa que uma identificação conceitual desse estrato social com o da categoria da pequena burguesia, como definida por Singer, é parcial.

Quanto ao proletariado e ao sub-proletariado, a tipificação de Singer é consistente com as características dos estratos sociais dos empregados formais e dos informais, tanto no que diz respeito ao caráter de segmentação do mercado de trabalho assalariado agrícola, quanto em relação à diversidade nas formas de articulação de relações de trabalho que assumem os agricultores familiares. O principal elemento de diferenciação entre os dois segmentos, a existência de carteira de trabalho assinada, é o mesmo em ambas as tipologias.

A análise de Singer da estrutura social agropecuária na década de 1960 mostra que, considerando o ano de 1960, a População Economicamente Ativa (PEA) agrícola era constituída por quase nove décimos de subproletários (86,7%) e pouco mais de um décimo de pequeno-burgueses (11,8%). A burguesia e o proletariado agrícolas eram praticamente inexistentes (0,5% e 1%, respectivamente). De acordo com Singer, o que explica o tamanho desse subproletariado é a existência de um grande contingente de camponeses pobres, com pouca ou nenhuma terra. Dados levantados pelo autor revelam que o subproletariado agrícola deveria estar constituído por 57,6% de minifundistas (proprietários e arrendatários), de 32,3% de empregados e 10,1% de parceiros. Os dados apresentados por Singer mostram, ainda, que, considerando-se o conjunto dos responsáveis por explorações agropecuárias e seus familiares, quase quatro quintos estavam em explorações de menos de 50 hectares.

Os dados revelam, portanto, que, em 1960, quase nove décimos da PEA agrícola pertenciam ao conjunto do proletariado e subproletariado, com predomínio quase absoluto do subproletariado, o que significa a existência de amplas camadas de agricultores sem acesso ao que o autor chamou de condições “normais” (aspas do autor) de sua própria reprodução, em termos de obtenção de ganhos monetários pelo menos equivalentes ao maior salário mínimo legal vigente no país. Singer chama atenção para a diversidade de

situações vividas por esse contingente de trabalhadores agrícolas, tendo em vista a complexa rede de relações sociais de produção em que se inseriam. Essa constatação, porém, segundo o autor, não deve obscurecer o fato de que, em seu conjunto, a grande maioria dos trabalhadores agrícolas podia se comportar como um vasto exército de reserva de força de trabalho. Singer (1981) ressalta que a agricultura brasileira como um todo sofreu um processo de empobrecimento relativo, que data, pelo menos, de 1930, a partir do momento em que o desenvolvimento passa a se pautar pelo crescimento do mercado interno e pela industrialização. “O que houve, desde então, foi um gradativo aumento dos custos “normais” de reprodução da força de trabalho, graças à diversificação da cesta de consumo do trabalhador urbano, enquanto o nível de ganhos e o padrão de vida da grande maioria dos trabalhadores rurais parecem ter se mantido inalterados” (SINGER, 1981, p. 110).

Dado esse contexto e, também, o fracasso das tentativas de reforma agrária, diz o autor, uma boa parte dos agricultores permanecia, em 1960, em situação de subproletarização. Deduz-se que, em 1960, a estrutura social da agricultura brasileira continha um percentual muito pequeno de empresas agrícolas e de administradores e outro percentual não expressivo de agricultores em ocupação de conta própria, cuja situação de renda os excluísse do grupo de autônomos precarizados. Essa estrutura contava, também, com um contingente inexpressivo de assalariados em situação regular de proteção social. O contingente fortemente expressivo compunha-se de agricultores em situação de precariedade de proteção social e de renda.

O estudo de Singer mostra que a estrutura social da agropecuária brasileira praticamente não se alterou entre 1960 e 1970, tendo havido, inclusive, uma modificação para pior. A proporção do subproletariado passou de 86,7% para 89,3%, reduzindo-se a proporção das demais classes, ou seja, ampliou-se o contingente de agricultores em situação precária. A própria mecanização das atividades agrícolas, ocorrida nesse período, seria responsável pela queda no número de assalariados no setor e pelo aumento no número de autônomos e não-remunerados, que, entretanto, não ingressariam na “pequena burguesia” (aspas minhas), mas no precário sub-setor dos agricultores empobrecidos. Alguns dados do

estudo de Singer são demonstrativos desse processo. A proporção dos responsáveis e familiares, dispondo de terra própria ou arrendada, em explorações de menos de 10 hectares, aumentou de 40,8%, em 1960, para 47,6%, em 1970, enquanto que, nas explorações de mais de 50 hectares, essa proporção caiu de 20,2%, em 1960, para 16,6%, em 1970. É importante ressalvar que a inexistência de mudanças relevantes na estrutura social brasileira, entre 1960 e 1970, ocorreu, também, para o setor urbano, ou seja, tratou-se de um processo generalizado, decorrente, provavelmente, em grande medida, do fato de que uma aceleração do crescimento econômico somente viria a ocorrer no final da década de 1960.

Entretanto, é importante destacar que a redução do contingente dos assalariados, nesse período, evidencia outro processo então em curso no setor da agropecuária brasileira. Alguns dados levantados por Singer demonstram que, em relação a 1960, a proporção de assalariados cai quase um terço, em 1970, nas explorações de até 10 hectares enquanto que nas de 10 hectares a 50 hectares essa proporção cai a quase metade. Nos estratos de 200 hectares a 10.000 hectares também ocorre uma queda na proporção de assalariados, embora menos acentuada. Apenas os estabelecimentos muito grandes, com mais de 10.000 hectares, não apresentam esse efeito de queda na proporção de assalariados.

Esse processo evidencia, de acordo com Singer, que os agricultores de base familiar (Produção Simples de Mercadorias por responsáveis pela exploração e seus familiares, na categorização do autor) estavam presentes em estabelecimentos relativamente grandes (de 200 a 500 hectares). A mecanização, ao induzir à substituição de assalariados por tratores, implementos, colhedeiras, herbicidas e outros, teve por efeito a explicitação de um caráter de produção familiar, em um processo em que “as explorações familiares se tornaram mais “puramente” familiares, limitando-se a usar apenas a mão-de obra do responsável e seus familiares, ao passo que as empresas agrícolas capitalistas passaram a operar predominantemente com empregados permanentes, ambos os tipos de estabelecimentos dispensando os assalariados temporários” (SINGER, 1981, p.34).