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Política de modernização econômica e mudanças na estrutura social da

3. ESTRUTURA SOCIAL NA AGROPECUÁRIA BRASILEIRA: CONSTITUIÇÃO

3.1. Estrutura social na agropecuária brasileira

3.1.3. Política de modernização econômica e mudanças na estrutura social da

O caráter conservador da política de modernização da agricultura brasileira foi exaustivamente discutido. Entretanto, vistas por outro ângulo, as mudanças que ocorreram a partir de meados da década de 1960 e que provocaram uma reestruturação rápida e profunda nos padrões de produção resultaram em desdobramentos sociais também significativos. Isto quer dizer que, não obstante a presença, na agricultura brasileira modernizada, de um padrão de propriedade da terra altamente concentrado, todo o processo resultou em uma estrutura social que em muito se distanciou do velho modelo, em especial no que se refere ao caráter dicotômico latifúndio/minifúndio da agricultura brasileira, seja do ponto de vista econômico, social ou político.

Como sustenta Sorj (1980), a expansão da agricultura brasileira, no período de 1930 a 1960, pode ser caracterizada como horizontal, com aumentos de produtividade concentrados em alguns produtos, em algumas regiões (principalmente o estado de São Paulo) e o aumento da produção ocorrendo através da ampliação da fronteira interna, da

redivisão de pequenas propriedades e da intensificação da produção nas grandes propriedades (SORJ, 1980). Isto significa que a expansão agrícola, nesse período, se apóia em uma força de trabalho extensamente disponível para a atividade. Ao se referir à produção para o mercado interno, Sorj (1980) enfatiza que “no caso brasileiro, uma oferta de mão-de-obra rural em expansão associada a uma ampla fronteira interna, permitia aumentar a produção sem que seus custos crescessem” (SORJ, 1980, p.26).

Foi estruturado um projeto de modernização, a partir do SNCR - Sistema Nacional de Crédito Rural, na década de 1960, o qual foi bem sucedido na mudança desse padrão, substituindo, em grande medida, o aumento da produção baseado generalizadamente no uso extensivo da terra e da força de trabalho por ganhos de produtividade decorrentes do uso de novas tecnologias. Não é que não existisse no país qualquer processo de modernização tecnológica da atividade agropecuária antes desse período, mas foi a partir da metade dos anos 1960 que a inovação aplicada ao setor se desenvolveu com intensidade. 50 Até então, a agricultura brasileira ostentava padrões tecnológicos rudimentares, com exceção dos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul: esses estados utilizavam 44 e 25 por cento do total dos equipamentos mecanizados, respectivamente (ZYLBERSZTAJN, 1994). A transformação tecnológica da produção agrícola, por um lado, estruturou-se em torno de uma agenda conservadora, que propunha o aumento da produção e da produtividade sem reformas profundas na estrutura social do setor. Por outro lado, tratou-se de uma proposta baseada na busca da eficiência e em novos padrões tecnológicos, o que mudou a natureza da política agrícola do país e, ao longo do tempo, foi vetor de transformação da natureza da própria organização social dessa atividade.

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Desde os anos 1940 o Estado atuara no incentivo a fronteiras agrícolas e a culturas pioneiras, como foi o caso da marcha para o oeste, naquela década, “da juta na região amazônica; dos arrozais no Maranhão; das plantações de castanha de caju no Piauí, Ceará e no Rio Grande do Norte; da fruticultura na Paraíba; dos laranjais no Sergipe; da conquista dos tabuleiros das Alagoas pela cana-de-açúcar; da recuperação da lavoura cacaueira na Bahia; da soja e do trigo no sul do País; da cultura da maçã em Santa Catarina; do café em regiões tradicionais de São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia; e, mais recentemente, de novas fronteiras no Mato Grosso e Rondônia e do pólo sojicultor que se desenvolveu em Barreiras, na Bahia” (GONZALEZ & MIRANDA, 1989 apud CONCEIÇÃO, R.A., 1998, p.154).

Mecanismos institucionais atuaram no sentido da modernização, como foi o caso da reorganização dos órgãos ligados às atividades de planejamento agrícola. De acordo com Sorj (1980), “o impulso modernizador do Estado permitiu pela primeira vez formar equipes de técnicos em condições de desenvolver levantamentos e planos abrangentes para o conjunto das atividades agrícolas” (SORJ, 1980, p.79). Sorj chama atenção para o fato de que “a importância crescente da pequena produção capitalizada determina a gradativa eliminação do comerciante tradicional e da feira como mecanismo de comercialização” (SORJ, 1980, p.84). De uma forma semelhante ao que ocorreu na modernização da agricultura dos países desenvolvidos, em geral, a crescente intervenção estatal operou no sentido de atuar na comercialização (foram criados centros de abastecimento, os Ceasa), no armazenamento e na estocagem dos produtos agrícolas, de forma a interferir no nível de preços para o consumidor e para os agricultores, do que resultou a redução da importância do papel do intermediário tradicional.

O eixo da política de modernização da agricultura brasileira foi o crédito rural oficial e este foi seguramente o instrumento mais importante entre as várias políticas agrícolas desenvolvidas no país. De acordo com Sorj (1980), a política de crédito rural, que adotou taxas de juros favorecidas para o setor, distribuiu o crédito de forma bastante equitativa entre as finalidades de custeio, comercialização e investimento, o que mostra uma ação clara do governo no sentido de alavancar o salto tecnológico e os ganhos de produtividade na agricultura brasileira. Entretanto, como foi visto no primeiro capítulo, é consenso na literatura pertinente que esse caráter equitativo não se aplica à distribuição do crédito entre os estratos sociais do setor. A literatura sobre o tema demonstra que a utilização do crédito oficial por médios e grandes proprietários foi preponderante em relação aos agricultores de menor porte, especialmente a camada mais pobre. Estudos mostram que as exigências de garantia, a burocratização nos processos de liberação e a desconsideração das necessidades específicas dos estratos de menor porte dos agricultores atuaram como fatores de desestímulo à utilização do crédito oficial.

Não obstante, há uma convergência de avaliação dos autores, no sentido de que o crédito oficial ampliou crescentemente o seu alcance no território nacional, levando a uma substituição dos mecanismos de crédito baseados em relações tradicionais por mecanismos de caráter oficial. Nos termos de Abramovay (1992), essa substituição é um elemento de estímulo à transformação de agricultores familiares tradicionais em agricultores de base familiar modernos. Portanto, na medida em que o crédito oficial privilegiou os proprietários de maior porte, isto significou um menor atendimento às necessidades tecnológicas dos agricultores familiares do país. A intervenção governamental estruturada em termos do conjunto da agricultura favoreceu os estratos sociais com mais recursos, inclusive organizacionais, em detrimento de uma abordagem de cunho distributivo. Pode-se dizer, então, que a política de modernização agrícola brasileira expressou-se em termos de uma continuidade de um modelo social conservador. Por outro lado, os elementos de modernização, contidos nos vários programas que se estruturavam em torno do crédito oficial, atuaram no sentido de favorecer uma profunda transformação da agricultura brasileira, com impactos modernizantes na própria estrutura social do setor, como já foi dito. A mudança iria expressar-se na capitalização de parte dos agricultores familiares, na constituição de um pequeno, mas importante, estrato de profissionais com alto grau de qualificação e no surgimento de um segmento de trabalhadores assalariados vinculados ao manejo das tecnologias modernas.

A diversificação e expansão agrícolas estiveram associadas à implantação das indústrias de máquinas e de insumos, de modo que o final dos anos 1960 pode ser considerado como o marco da constituição do Complexo Agroindustrial Brasileiro (CAI). Ao mesmo tempo, desenvolveu-se um sistema agroindustrial baseado na utilização de produtos de origem agropecuária, seja voltado para o mercado interno ou para o mercado externo. O Complexo agroindustrial reúne a indústria a montante (como a de insumos e de equipamentos), a atividade agrícola e pecuária propriamente e a indústria a jusante (processadora de produtos de origem agropecuária), ou seja, cria-se um sistema de cadeias produtivas com as quais os agricultores passam a se relacionar, enfrentando muitas vezes, em suas negociações, indústrias com elevado poder de oligopolização.

Por meio da política agrícola brasileira de modernização, o Estado atuou não apenas no âmbito do financiamento da produção, da comercialização e do investimento agrícolas e nas áreas de estocagem e armazenamento, como, também na pesquisa e assistência técnica. Duas importantes instituições de apoio ao setor foram criadas nesse período. No âmbito da assistência técnica foi criada a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Expansão Rural (EMBRATER) e as Empresas de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATERs), que ficaram responsáveis, nos estados, pela difusão dos insumos modernos e do crédito oficial. Com relação à área de pesquisa, foi criada a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), responsável pela criação de tecnologia compatível com as condições climáticas do país (a EMBRAPA criou as condições tecnológicas para o desenvolvimento da primeira agricultura tropical do mundo, conforme um ex-presidente da instituição). Nesse contexto, a difusão de novos conhecimentos passa a ter centralidade na abordagem da agricultura, do que resultou uma autonomia do setor frente aos pacotes tecnológicos que anteriormente eram importados de outros países. Várias outras organizações ampliaram o leque de atividades do Estado e os resultados dessa transformação, em termos de produtividade e aumento da disponibilidade de produtos, contrariaram a alegação de economistas da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), nos anos 1960, segundo a qual o caráter tradicional do setor não seria rompido sem uma ampla política de redistribuição de terras.

Os proprietários de maior porte se beneficiaram, nesse processo, de forma diferenciada em relação aos demais estratos, em função tanto da correlação de forças predominante no interior da estrutura social, como, também, em razão da própria lógica da expansão agrícola, pela ênfase em um ou em outro produto ou em regiões distintas (SORJ, 1980). Com relação às políticas regionais, por exemplo, na avaliação de Sorj (1980) os programas específicos para a região Nordeste favoreceram claramente os médios e grandes produtores.

É importante, porém, salientar o que já foi dito anteriormente, ou seja, que toda a estrutura criada no contexto da política agrícola brasileira viabilizou não só a modernização

da grande propriedade como, também, nos termos de Sorj (1980), permitiu a capitalização de alguns grupos de pequenos e médios produtores. O autor chama atenção para o fato instigante de que a indução à concentração de terras, que resultara dessa política de incentivos, não significa, necessariamente, a modernização da grande propriedade, uma vez que o processo pode estar ligado (como, de fato, esteve, em muitos casos) a práticas especulativas, especialmente em áreas de fronteira. Na perspectiva de Sorj (1980), camadas de “pequenos e médios produtores” 51

puderam se beneficiar dos programas de modernização naqueles lugares em que já detinham certos recursos, em especial em regiões com maior nível de dinamismo. Em lugares mais atrasados, geralmente circundados pelo que o autor considera “latifúndios” (aspas minhas), tendiam a não participar dessa política. Uma parte, pelo menos, do processo de modernização da agropecuária brasileira, apoiou-se em agricultores familiares que migraram da região Sul do país para as áreas de fronteira da região Centro-Oeste.

A adoção da mecanização é um bom exemplo de que o fator de modernização não está atrelado, necessariamente, ao tamanho da propriedade. Singer (1981) demonstra que, no período que vai de 1960 a 1970, a mecanização nas explorações menores foi intensa, como mostram os seguintes números. “O número de tratores aumentou 314,5% nos estabelecimentos de até 10 ha, 277,1% nos de 10 a 20 ha, 231,2% nos de 20 a 50 ha, 195,9% nos de 50 a 100 ha e 150,8% nos de 100 a 200 ha.” (SINGER, 1981, p.160). Levando-se em conta a potência dos tratores, os números mostram que “em 1970, nas explorações de menos de 10 ha, 85,1% dos tratores tinham menos de 50 C.V., proporção esta que cai a 62,8% nas explorações de 50 a 100 ha, a 43,9% nas de 1.000 a 2.000 ha e a apenas 29,35 nas de 10.000 ha e mais.” (SINGER, 1981, p.160). Mesmo assim, diz o autor, é notável a mecanização em explorações menores, ainda que realizada com tratores de menor potência. Desta forma, circunstâncias favoráveis permitiram que alguns grupos de pequenos proprietários pudessem se integrar no projeto modernizador, enquanto muitos outros ficaram marginalizados.

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Como vimos anteriormente e nos chama atenção Schneider, no setor agrícola há uma maior correspondência entre riqueza e propriedade, em relação a outros setores econômicos, o que nos leva a concluir que se trata, possivelmente, de pequenos e médios proprietários.

Singer (1981) argumenta que há indicações de ocorrência de três opções disponíveis para os contingentes de trabalhadores agrícolas que ficavam à margem desse processo: 1) migrar para as cidades, integrando-se ao mercado de trabalho urbano ou combinando as condições de diarista agrícola e diarista urbano; 2) retornar ao minifúndio de origem na condição de agricultor familiar; ou 3) constituir uma posse em áreas de terras devolutas, na fronteira agrícola. A migração rural-urbana resultou na saída de 30 milhões de pessoas na direção das grandes cidades, no espaço de tempo de 20 anos – entre 1960 e 1980. Ao mesmo tempo, parte dos pequenos proprietários tornou-se assalariada, em tempo integral ou parcial (ZYLBERSZTAJN, 1994). O retorno ao minifúndio, nessas condições, significa a permanência do agricultor em uma situação de precariedade. De forma semelhante, a posse na fronteira agrícola, muitas vezes, constitui-se em uma solução com altíssimo custo a que se submetem aqueles para os quais inexiste outra opção.

Os recursos do projeto modernizador, portanto, por um lado, foram apropriados preferencialmente pelos grupos sociais dominantes na agricultura brasileira, os grandes proprietários, enquanto, por outro lado, possibilitaram a uma parcela da chamada “pequena produção” (aspas minhas) uma transformação qualitativa em suas características (pode-se dizer que o processo flui no sentido, discutido em capítulo anterior, de constituição da moderna agricultura de base familiar). Entretanto, na medida em que um contingente dos chamados “pequenos produtores tradicionais” (aspas minhas) sofre um processo de pauperização e semi-proletarização, Sorj (1980) conclui pela existência de uma similaridade apenas parcial entre a estrutura agrária brasileira modernizada e a dos países desenvolvidos. O que é parcial é a sobrevivência, na estrutura social agrícola brasileira, de um contingente denominado pelo autor de “camponeses” (aspas minhas) pauperizados (estrato de agricultores sem acesso a tecnologias modernas e em condições precárias de vinculação com os mercados).

Estudos mostram que, quanto a esse aspecto, as conclusões de Sorj (1980) permanecem atuais na situação contemporânea da estrutura social agrícola brasileira. A modernização agrícola criou as bases para a integração bem sucedida aos mercados tanto de

um estrato de empregadores de força de trabalho assalariada, quanto de outro estrato de agricultores baseado em mão de obra familiar (estes últimos podem ser divididos entre os que conseguem se viabilizar e os que acabam por serem eliminados do sistema de produção ou por ficarem no sistema em situação de precariedade). Tanto empregadores como agricultores familiares modernos, encontram-se, em geral, integrados em cadeias produtivas do Complexo Agroindustrial (composto de sistemas e subsistemas agroindustriais, conforme conceituação de Farina, 1996), como será visto mais detalhadamente em capítulo próximo.

Os empregadores se integram em cadeias produtivas como, por exemplo, a da soja, do trigo, do gado bovino e da cana-de-açúcar, atividades que envolvem uma tendência de mecanização e dispensa de mão-de-obra (NEVES; FERNANDES, 2009). Os autores mostram, para o caso dos agricultores familiares, tanto proprietários quanto arrendatários, um movimento de integração e, mesmo, de revitalização da forma de parceria, em alguns subsetores agrícolas (esses aspectos serão discutidos mais extensamente em capítulo seguinte). Este é o caso dos subsetores da avicultura, suinocultura, fruticultura e horticultura, cujas cadeias produtivas incluem um importante segmento de produtores diretos, na forma de agricultores familiares, que atendem às necessidades de qualidade e produtividade requeridas pelas unidades industriais de processamento. Para os autores, esses complexos agroindustriais operam na base de uma demanda diversificada e com exigência de qualidade, em um ambiente de mercado interno e externo altamente competitivo, o que favorece, na ótica da administração de custos, uma integração com agricultores familiares. É o caso, por exemplo, da produção de frutas e verduras no Vale do São Francisco (COLLINS, 1993), que será discutido mais extensamente adiante. Este é o caso, também, dos produtos para mercados especiais, como, por exemplo, o dos produtos orgânicos ou agroecológicos, cuja produção está a cargo, em um montante significativo, de agricultores familiares (essa produção, em geral, é feita de forma integrada em cadeias produtivas, utilizando técnicas definidas por entidades certificadoras e alcançando preços superiores aos da produção convencional, conforme estudo elaborado pelo Banco do Brasil, 1999).

Esse cenário em que se conjugam a relação de parceria, a sub-contratação de pequenos agricultores e a exigência de uma oferta estável de mão-de-obra qualificada52, nas palavras de Neves e Fernandes (2009), é compatível com “o modelo pós-fordista de especialização flexível, caracterizado por princípios organizacionais baseados em um sistema econômico mundial integrado e interdependente, conectando pequenas firmas com alto grau de flexibilidade que possam atender à crescente demanda, por parte dos consumidores, por maior qualidade e diversidade de produtos” (NEVES; FERNANDES, 2009, p.177).

Entretanto, é importante ressalvar que a parceria e os arrendamentos, em muitos casos, são feitos por meio de formas contratuais em que os riscos da atividade são assumidos pelos agricultores (STADUTO et.al., 2004). Por outro lado, o problema dos agricultores com escasso ou nenhum acesso à modernização de sua atividade está longe de ser solucionado. Enquanto o país ostenta uma participação bastante estável do agricultor familiar na força de trabalho do setor agropecuário, sempre um pouco superior a 30% (NEVES, 1997), permanece na atividade um contingente de unidades de produção operando em bases tradicionais (como proprietários, parceiros ou posseiros), muitas vezes em condições de marginalização, especialmente na região Nordeste.

3.1.4. Transformação na estrutura de classes e o mercado de trabalho assalariado na