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3. ESTRUTURA SOCIAL NA AGROPECUÁRIA BRASILEIRA: CONSTITUIÇÃO

3.1. Estrutura social na agropecuária brasileira

3.1.1. Gênese histórica

Até meados do século dezenove, o Brasil não possuía uma vida econômica própria, uma vez que, no período colonial, o sistema de grandes explorações podia ser considerado como uma extensão do mercado português (ZYLBERSZTAJN, 1994). As características desse sistema intermitente e praticamente “extrativista” (aspas do autor) só seriam modificadas com a chegada da família real, em 1808. A primeira atividade agrícola da colônia, no período que se inicia em 1500, constituiu-se no primeiro ciclo da economia brasileira, o ciclo do “pau Brasil” (aspas do autor), que rapidamente se esgotou, pois deixou

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A observação da similaridade entre o padrão da moderna agropecuária brasileira e o de países de capitalismo avançado tem por objetivo, unicamente, destacar as peculiaridades do caso brasileiro, uma vez que não se pretende um estudo comparativo.

de ser lucrativo em menos de cinqüenta anos, em decorrência do seu caráter “extrativista” (aspas do autor).

O segundo ciclo econômico do Brasil também teve início no século dezesseis, mais precisamente em 1532, com a construção do primeiro engenho de cana de açúcar, por Martim Afonso de Souza. Zylbersztajn (1994) chama atenção para a observação de Caio Prado Jr., segundo a qual pode ser dito que a exploração da cana de açúcar formatou as características sociais, políticas e econômicas do país. O ciclo da cana nasce sob o signo da grande propriedade de terra. O governo português necessitava garantir a posse das terras do Brasil, contra as ameaças de outros governos, especialmente o da França. A ocupação dessas terras foi pensada na forma de sesmarias, constituídas de grandes áreas concedidas a portugueses que desejassem se estabelecer na colônia. Tratava-se de uma orientação que atendia aos interesses da Coroa, que tanto estava interessada em extrair taxas das grandes propriedades, quanto em estimular a ocupação das terras. Desta forma, como destaca Elisa Reis (1979), não houve qualquer iniciativa da Coroa Portuguesa no sentido de estimular a ocupação das terras brasileiras por grupos dispersos de pequenos agricultores. Por outro lado, os engenhos de cana exigiam não apenas uma soma elevada de investimentos, como, também, uma grande quantidade de força de trabalho.

A escassez de força de trabalho livre, naquelas circunstâncias, resultou na opção escravocrata, para que as atividades econômicas da cana de açúcar pudessem ser implementadas. Tratava-se de unidades de produção com elevado grau de auto-suficiência, operando em larga escala, produzindo um único produto para exportação (o açúcar) e empregando mão de obra escrava. A disponibilidade de força de trabalho escrava garantiu o sucesso do ciclo da produção de açúcar, até o momento em que o mercado internacional desse produto se fechou para o país, em virtude da organização da produção pelas colônias holandesas.

A força de trabalho escrava continuou sendo a principal forma de acesso à força de trabalho nas grandes propriedades, inclusive no ciclo do café46, cuja economia esteve ligada ao início do processo de industrialização no país. Para Zilbersztajn (1994), a vinda da família real para o Brasil representou um ponto de ruptura com as fases anteriores da colônia, em razão da abertura para o comércio internacional. Uma transformação substancial, porém, somente ocorreria na segunda metade do século dezenove, após um período de transição. Mais especificamente, apenas no contexto da crise econômica internacional de 1870-1895 é que ocorreu a primeira onda de desenvolvimento na economia brasileira, com o uso de novos métodos de transporte, no momento em que a mecanização do processamento do café já constituíra uma base de transformação do setor agrícola e da dinamização de atividades comerciais e urbanas (REIS, 1979; ZILBERSZTAJN, 1994).

Por outro lado, o modelo de produção do café, baseado em grandes plantações, revitalizara o sistema de trabalho escravo. De acordo com Reis (1979), de 1831 (quando as importações de escravos foram proibidas) até 1850 (quando, efetivamente, foram adotadas medidas contra o tráfico), entraram mais escravos no país do que durante qualquer outro período da história brasileira. Conforme essa autora, a combinação de latifúndio, monocultura para exportação e escravidão não apenas dominou a sociedade agrária brasileira, como constituiu um legado cultural para o período nacional estabelecido em 1822, com a independência.

A continuidade do sistema escravocrata, de acordo com Zilbersztajn (1994), adiou a implementação do processo de imigração de trabalhadores qualificados (que viria a ser constituído posteriormente) e criou obstáculos à diversificação e desenvolvimento do mercado interno. Mais importante do que isso, a longa permanência do sistema escravocrata forneceu aos grandes proprietários de terra a força de trabalho adequada à produção agrícola no país, o que criou obstáculos à constituição de um segmento de pequenos agricultores. Como destaca Reis (1979), restavam à população não escrava pobre apenas duas opções: integrar-se no domínio das grandes propriedades, por meio de laços

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paternalistas, ou permanecer em atividades de subsistência. Somente após os cafeicultores paulistas terem acumulado poder político suficiente para garantir o uso de recursos públicos necessários ao suprimento de trabalho alternativo ao do sistema escravocrata, diz a autora, é que os grandes proprietários aderiram ao trabalho livre.

A discussão em torno do sistema escravocrata e da influência do poder das elites agrárias sobre o caráter conservador da modernização econômica do Brasil, por Elisa Reis (1979), inclui uma cuidadosa análise das relações de trabalho agrícola no país, que será utilizada em seguida para a abordagem da constituição histórica da estratificação social na agricultura brasileira. Na época da independência, o Brasil contava com uma população escrava estimada entre um quarto a dois terços da população total (REIS, 1979), predominantemente localizada nas áreas de açúcar do Nordeste47. Mas a expansão da produção do café ao longo do Vale do Paraíba, no Sudeste do país, passou a ser responsável pelo crescimento da mão de obra escrava nessa região, de tal forma que, por volta de 1873, os 57% da população escrava do país encontravam-se na região Centro Sul, enquanto as áreas do Norte-Nordeste contavam com 35% do total (REIS, 1979).

Até a década de 1860, o sistema baseado em força de trabalho escrava ainda não tinha passado por um debate capaz de reorientar a política de mão de obra no país. Transferências domésticas supriam uma escassez provocada pela lei de eliminação do tráfico (a Lei Euzébio de Queiroz, de 1850, eliminara o tráfico internacional). Nos anos de 1860, porém, cresceram as vozes no sentido da abolição do sistema escravocrata. Em 1865, o imperador manifestara sua simpatia por essa causa, solicitando estudos para a adoção de políticas de abolição. A Lei do Nascimento Livre (liberação dos filhos de mães escravas), de 1871, foi aprovada com o suporte das províncias do Nordeste e a oposição das províncias do café (Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo).

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Havia, também, uma população numericamente significativa de escravos no estado de Minas Gerais, devido ao auge alcançado pelo ciclo do ouro, no século dezoito (REIS, 1979).

Na seqüência dos eventos ligados à extinção do sistema escravocrata, o próximo passo seria o da libertação dos trabalhadores escravos mais velhos. Um projeto de lei de 1884 previa “a imediata liberação dos escravos acima de sessenta anos de idade, sem compensação para os proprietários. Também foi proposta a expansão do Fundo de Emancipação, o fim do comércio interprovincial de escravos, a liberação dos escravos não propriamente registrados e um quadro oficial para a depreciação progressiva do valor dos escravos” (REIS, 1979, p.70-71). O poder conservador dos proprietários de terra e do Congresso se fez sentir nas alterações dessa proposta de legislação: por um lado, foi introduzida uma ação compensatória e, por outro lado, parte do Fundo de Emancipação foi destinada a uma reserva, cuja finalidade seria o financiamento da importação de trabalhadores estrangeiros.

Por volta de 1870, segundo Reis (1979), o sistema escravocrata mostrava sinais de exaustão e tornava-se claro que deveriam ser encontradas formas alternativas de suprimento de trabalho para a produção do café. A escassez de mão de obra no Centro-Sul do país frustrara as tentativas dos plantadores do oeste de São Paulo de combinar força de trabalho escrava e trabalhadores livres, para fazer frente à expansão do cultivo do café para além da fronteira agrícola então existente. A necessidade de buscar alternativas para o suprimento de força de trabalho levou a um dissenso entre os proprietários da região do café, ganhando força, então, a proposta de imigração massiva de trabalhadores livres. Em 1886 foi criada a Sociedade Promotora da Imigração e, em 1887, houve uma recusa do governo paulista em relação a atos de repressão de atividades abolicionistas. Sociedades abolicionistas surgiram em vários pontos do país. Em 1888, finalmente, o processo de eliminação do trabalho escravo foi concluído, com grande apoio à Lei Áurea no Congresso (dos nove votos contra, oito eram de representantes das áreas velhas do café, que ainda defendiam o trabalho escravo).

Como destacado por Reis (1979), a extinção do sistema escravocrata não teve um caráter de ruptura com o poder dos grandes proprietários de terra. Ao contrário, diz a autora, o processo gradual de extinção do trabalho escravo preservou as bases de poder

dessa classe social, neutralizando um possível efeito revolucionário que a passagem para o trabalho livre poderia ter exercido. Reis (1979) faz uma comparação do processo brasileiro com o dos Estados Unidos, no que diz respeito ao fim do trabalho escravo. No caso americano, diz a autora, três sistemas econômicos regionais interconectados impuseram seus interesses no nível nacional48, enquanto, no Brasil, uma coalizão conservadora, emergindo de uma fraca integração inter-regional, resultou em uma solução moderada. Desta forma, enquanto nos Estados Unidos a extinção do trabalho escravo inseriu-se em um processo de revolução democrático-burguesa, nos termos de Barrington Moore, conforme REIS (1979), no Brasil implicou em uma coalizão dos proprietários da área do café com as elites do Nordeste, o que preservou a força de trabalho das plantações de cana, obstaculizando a formação de um mercado de trabalho nacional. No caso americano, o Sul pós-escravista era politicamente subordinado a um contexto nacional que incluía um setor industrial independente e um estrato de agricultores também independentes, enquanto o Brasil pós-abolição manteve a coalizão conservadora dos proprietários de terra.