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Estrutura social da agricultura contemporânea brasileira: uma nova realidade?

3. ESTRUTURA SOCIAL NA AGROPECUÁRIA BRASILEIRA: CONSTITUIÇÃO

3.1. Estrutura social na agropecuária brasileira

3.1.6. Estrutura social da agricultura contemporânea brasileira: uma nova realidade?

Não há dúvida de que o Estado assumiu um papel claro e relevante no financiamento dos agricultores familiares do país, constituindo uma mudança significativa na política agrícola, quando se considera o atendimento das reivindicações oriundas dos diferentes estratos da estrutura social da agropecuária brasileira. Também é fato que houve uma ampliação da proteção social dentro da estrutura social do setor, no que se refere aos direitos trabalhistas e à própria institucionalização das denúncias de irregularidades e da intervenção dos órgãos de fiscalização competentes. Não obstante, como se está discutindo ao longo desta tese, os maiores impactos negativos sobre a estrutura social da agricultura brasileira referem-se aos problemas relacionados às dificuldades de acesso à integração a mercados e à ampliação da renda, especialmente no caso dos agricultores familiares, bem como à situação de baixa proteção social para os trabalhadores temporários.

Não obstante o reconhecimento do inegável avanço que o PRONAF representou para os agricultores familiares no que diz respeito à ampliação de recursos que são, em geral, limitados, algumas críticas têm sido dirigidas ao programa. Em geral, essas críticas concentram-se em aspectos da distribuição social e regional dos recursos. Cerqueira e Rocha (2002) apontam para o que pode ser considerado como um processo de “canibalização” (aspas dos autores) dos recursos do PRONAF, ou seja, uma disputa crescente entre os grupos de beneficiários pelos recursos do programa. Os autores consideram, inclusive, que a inclusão dos assentados da reforma agrária no PRONAF, com

a incorporação do PROCERA, significou uma redução no volume de recursos destinados ao público original do programa.

Segundo os críticos, o maior beneficiário na disputa pelos recursos do PRONAF seria o grupo de agricultores com maior grau de integração econômica (PETRELLI, 2004; GUANZIROLI, 2006). Petrelli aponta para uma alta participação, no total financiado, da liberação de recursos para o fumo e a soja, produtos ligados à agroindústria e à exportação. Em situação oposta encontrar-se-iam o arroz, o feijão e outros produtos voltados para o mercado interno, com baixíssima participação na liberação de recursos. Estudo de Guanziroli (2006) mostra que os grupos de agricultores em melhor situação (C, D e E) responderam por 74% do total do crédito disponibilizado pelo PRONAF na safra agrícola de 2004.

Com relação à distribuição regional do PRONAF, a crítica se concentra na grande disparidade que resulta do maior acesso da região Sul aos recursos do programa (GUANZIROLI, 2006). A distribuição de recursos do PRONAF, em 1999, em termos percentuais, mostra que quase 50% estavam concentrados na região Sul, enquanto a região Nordeste respondia por 26%, a Sudeste por 16%, a região Centro-Oeste por 5% e a região Norte por 3% do total. Em 2004, essa distribuição havia sofrido pouca alteração, com a região Sul concentrando 47% do total dos recursos do programa, a região Nordeste participando com 18%, o Sudeste com 17%, o Centro-Oeste com 6% e a região Norte com 12%.

Os dados referentes ao acesso à tecnologia e à assistência técnica pelos agricultores familiares, à época da constituição do PRONAF, ajudam na compreensão desse fenômeno da distribuição dos recursos do programa. Utilizando um quadro elaborado pelo INCRA/FAO, baseado no Censo Agropecuário 1995/1996 do IBGE, Guanziroli (2006) mostra que apenas 16,7% do conjunto dos agricultores familiares utilizavam assistência técnica, ao mesmo tempo em que 49,8% faziam uso de força de trabalho apenas manual. Os dados mostram, porém, que esses percentuais variavam regionalmente: enquanto a região

Nordeste apresentava um percentual de 2,7% na utilização de assistência técnica, esse percentual subia para 47,2%, quando se tratava dos agricultores da região Sul. Com relação ao uso exclusivo da força de trabalho manual, os percentuais eram de 61,1% para o Nordeste e de 14,3% para a região Sul.

A conclusão de Guanziroli (2006) é que não haveria um erro de focalização, mas, sim, a necessidade de incorporação de outros temas ao debate, como a questão educacional, a da terra e a da saúde, que também se apresentam com índices extremamente baixos entre os agricultores periféricos. Em suas próprias palavras, “Em suma, a maior destinação de recursos do PRONAF aos agricultores mais especializados e de renda mais alta (entre os agricultores familiares) é coerente com a realidade da agricultura familiar e com a demanda de crédito existente entre as diferentes categorias” (GUANZIROLI 2006, p.9). Nessa linha de argumentação, Cerqueira e Rocha (2002), ao discutirem a aplicação do PRONAF- Crédito no estado da Bahia, entendem que as políticas públicas não consideram os aspectos socioeconômicos e ambientais de cada região. De acordo com essas autoras, no espaço rural baiano, por exemplo, haveria necessidade de que fosse considerada a diversidade intra-regional, contemplando aspectos de renda, organizacionais, culturais, educacionais, tecnológicos etc.

No que diz respeito ao impacto do PRONAF sobre a melhoria de renda e de capacitação do agricultor familiar, Guanziroli (2006) destaca a pouca disponibilidade de pesquisas que tenham incluído no grupo controle o elemento contrafactual, que possibilite a comparação de beneficiados com não beneficiados. Também, diz o autor, não foram encontradas pesquisas que tenham adotado a metodologia de painel, que permitisse a comparação, no tempo, de um grupo de beneficiados. Segundo Guanziroli, várias pesquisas de âmbito nacional revelaram resultados negativos em termos de impactos do PRONAF. Algumas, inclusive, sugerem que os beneficiários do PRONAF teriam tido sua situação de renda piorada, em relação aos não beneficiários. Mas, para esse autor, falta uma visão de sistemas em que uma tipologia de produtores seja relacionada com uma tipologia de sistemas produtivos (visão esta defendida originalmente por técnicos e assessores do

PRONAF). A adoção dessa perspectiva possibilitaria a avaliação das necessidades dos agricultores familiares (crédito, terra ou tecnologia), dentro de um plano de desenvolvimento regional, em termos diferenciados por tipo de produtor e por tipo de sistema produtivo. Para Schneider (2006), embora haja um considerável avanço, falta, ainda, um leque mais abrangente de mudanças para os agricultores familiares, como, por exemplo, uma política mais efetiva de capacitação, bem como uma articulação dos diferentes níveis de governo que leve à redução de entraves burocráticos da legislação ambiental, sanitária, tributária, entre outros.

O aprofundamento da discussão que ocorre entre os estudiosos do tema da estrutura social agrícola brasileira tem incorporado novos elementos, como a questão ambiental, as atividades rurais não agrícolas e a questão da pluriatividade, no contexto das propostas para o desenvolvimento rural, tema bastante discutido em tempos atuais.62 A questão da pluriatividade está inserida no contexto da dinâmica ocupacional da população rural brasileira e está referida aos processos mais amplos de transformação do mundo do trabalho, que afetam o mercado de trabalho rural do país. Existe um reconhecimento, no Brasil, de que em algumas regiões a agricultura como atividade produtiva perde importância no que diz respeito à geração de emprego e à ocupação e que, por outro lado, as atividades não-agrícolas e as pluriativas ganham maior espaço na estrutura ocupacional.

A questão da pluriatividade tem sido muito discutida sob o enfoque tanto da diversificação da ocupação e do emprego quanto da possibilidade de incremento de renda para as famílias agrícolas. De acordo com estudo de Ney e Hoffmann (2008), considerando-se apenas as atividades não-agrícolas, sua participação na renda domiciliar atinge um percentual de 33,2% no meio rural oficial brasileiro (assim definido pelas estatísticas oficiais) e de 49,7% no meio rural expandido (critério dos autores, levando em conta parte da população oficialmente considerada como urbana, mas habitando núcleos urbanos de pequena dimensão).

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Com relação à pluriatividade, não se trata de um processo inteiramente novo, já que a combinação de atividades sempre foi uma característica típica do campesinato e outras formas sociais no meio rural, mas, sim, de um processo que apresenta novas características (SCHNEIDER, 2006).

Entretanto, não há qualquer sentido positivo intrínseco à atividade não agrícola e à pluriatividade, enquanto manifestações das transformações do mundo do trabalho no meio agrícola. Schneider (2006) chama atenção para os riscos de precarização das ocupações e empregos que podem resultar especialmente de situações de subcontratação e terceirização (riscos esses ressaltados, em análises mais gerais, pelos estudiosos do mercado de trabalho no mundo pós-fordista). Kageyama (2004), por outro lado, afirma que entre 1992 e 2002 houve uma redução tanto na População Economicamente Ativa (PEA) agrícola quanto na PEA rural (em que estão incluídas atividades não agrícolas), para as cinco regiões brasileiras, o que apontaria para a insuficiência da pluriatividade no que diz respeito à geração de empregos.

De acordo com Ney e Hoffmann (2008), as atividades não agrícolas, especificamente, nem sempre contribuem para a redução das disparidades de renda no meio rural, uma vez que os mesmos fatores responsáveis pela concentração de renda na agricultura tendem, também, a se comportarem como geradores de desigualdade nas atividades não-agrícolas. Assim, os resultados da análise desses autores, para o caso brasileiro, sugerem que as famílias que dispõem de mais área de plantio e maior nível de educação têm uma maior possibilidade de ascender às ocupações mais produtivas e melhor remuneradas nos demais setores. Além disso, as atividades não-agrícolas no meio rural não reduzem as disparidades de renda, ao contrário, elas contribuem para aumentá-las. Os resultados do estudo desses autores mostram que a razão de concentração da renda nas ocupações não-agrícolas é maior do que o valor do índice de Gini em qualquer área rural, enquanto a razão de concentração da renda das ocupações do setor agropecuário é sempre inferior.

No que diz respeito à situação dos trabalhadores sazonais, o conflito em torno dos direitos trabalhistas, que envolve empregadores, empregados, agenciadores e órgãos de normatização e fiscalização está longe de ser resolvido, como foi discutido anteriormente. Porém, o que se constata é a existência de uma estrutura legal de suporte que, se não é

adequada a esse segmento do mercado de trabalho, também não está ausente, impondo, portanto, em alguma medida, limites aos termos das relações de emprego.

Neste sentido, os anos 1990 trouxeram inovações relevantes para as classes sociais da agricultura brasileira, com destaque para a criação do PRONAF e a ampliação dos direitos trabalhistas e da proteção social aos agricultores. Schneider (2006) argumenta que quatro políticas e ações públicas têm conferido uma relativa estabilidade à presença dos agricultores familiares no campo. A primeira delas é o PRONAF que, conforme foi mostrado anteriormente, se caracteriza por um crescimento continuado, em termos de número de contratos e de valor disponibilizado. A segunda ação pública refere-se à Previdência Social, que, segundo o autor, apresenta um crescimento constante do montante de recursos gastos com os benefícios de aposentadorias, pensões, rendas vitalícias e amparos aos segurados do setor rural (em 2004 esse valor teria alcançado a cifra de US$ 8,984 bilhões). Em terceiro lugar encontram-se os programas sociais de transferência de renda, entre os quais está o programa Bolsa Família, responsável, segundo o autor, por uma importante influência na renda de pequenos agricultores, sobretudo na região Nordeste. Por último, Schneider relaciona o programa de assentamentos rurais à manutenção de famílias rurais na condição de conta-própria, especialmente nas regiões Sul e Nordeste, embora seja numericamente pouco expressivo. Em suas próprias palavras “Entre 2000 e 2005 o programa de reforma agrária assentou um total de 369.059 famílias, o que não deixa de ser expressivo em um contexto onde a regra era o abandono do meio rural e não a permanência das famílias” (SCHNEIDER, 2006, p.240).

O Programa de Aquisição de Alimentos - PAA representou um significativo avanço no que diz respeito à concepção de política pública de apoio à agricultura familiar, pelo aspecto da comercialização. Criado no marco do Programa Fome Zero, com abrangência nacional, suas diretrizes previam a compra de alimentos pelos governos, sem licitação.63

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Lei 10.696 de 2 de julho de 2003 -§2º O Programa de que trata o caput será destinado à aquisição de produtos agropecuários produzidos por agricultores familiares que se enquadrem no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar –PRONAF, ficando dispensada a licitação para essa aquisição desde que os preços não sejam superiores aos praticados nos mercados regionais.

Institucionalizado formalmente pela Lei nº 10.696, de 200364, o PAA teve sua concepção articulada em torno de duas políticas públicas: a política agrícola e a política de segurança alimentar (afeita à política de assistência social). Dessa dupla função derivaram ambigüidades e distorções orçamentárias e de gestão/implementação. Para Delgado (2005), questões de caráter político interministerial fragmentam o Programa e obstaculizam uma definição mais clara de funções e prioridades. Além disso, os objetivos da segurança alimentar tornaram-se mais salientes, do que resultou uma maior ênfase no PAA enquanto uma política assistencial, reduzindo o potencial do Programa como estruturador da agricultura familiar.

Não obstante os desafios e continuidades antepostos à redução da desigualdade social no setor da agropecuária brasileira, as mudanças consideradas neste capítulo parecem compatíveis com a afirmação apontada por Rezende e Kreter (2009), segundo a qual a crença na permanência do velho latifúndio no Brasil significa focar o problema de um ponto de vista daquilo que não mudou (a área física da grande propriedade) e ignorar o interior das propriedades agrícolas, que teriam passado por uma verdadeira revolução.

3.2. Conclusão

Neste capítulo buscou-se apresentar, em uma perspectiva analítica, a evolução histórica das características da estrutura ocupacional e do mercado de trabalho na agropecuária brasileira. De uma forma sucinta, tendo em vista a abrangência do tema, foram discutidos alguns elementos condicionantes e outros provocadores de mudança na estrutura social do setor da agropecuária do país, tendo como perspectiva as possibilidades de abertura de um leque de melhores oportunidades de rendimentos no contexto da agricultura moderna brasileira. A investigação sobre a repartição de rendimentos entre os

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A Lei nº 10.696, de 2003, dispõe sobre a repactuação e o alongamento de dívidas oriundas de operações de crédito rural (Brasil 2003).

principais estratos sociais da agropecuária brasileira será feita em um capítulo seguinte. Para tanto, o próximo capítulo será dedicado à discussão da metodologia pertinente.

CAPÍTULO IV