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Controle de constitucionalidade para Hans Kelsen

No documento Luis Antonio Rossi.pdf (páginas 68-72)

CONSTITUCIONALIDADE DA LEI DA FICHA LIMPA

3 O GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO

3.3 Controle de constitucionalidade para Hans Kelsen

Para se entender o modelo de controle de constitucionalidade defendido por Hans Kelsen é preciso, em primeiro lugar, compreender sua noção de Constituição. Consoante explana o jurista austríaco, a Constituição seria a base ou fundamento de validade das normas jurídicas, regulando a conduta dos membros da sociedade, dos órgãos encarregados de aplicar e impor as normas, do procedimento para elaboração das leis e a separação dos poderes.

Dessa superioridade hierárquica surgiriam conflitos com a legislação infraconstitucional, que por vezes seria incompatível ou violaria normas contidas na Constituição, seja em razão de uma irregularidade no procedimento de elaboração da lei

(inconstitucionalidade formal), ou em decorrência de seu conteúdo ser incompatível com o texto constitucional (inconstitucionalidade material).

Em monarquias absolutistas ou em outros regimes autocráticos, por exemplo, não haveria a necessidade de um controle de constitucionalidade tendo em vista não existir diferenciação entre uma Constituição (se existente) e uma lei, decorrendo ambas da vontade do monarca.

Foi a partir da transição do regime absolutista para a monarquia constitucional que surgiu a necessidade de se criarem mecanismos de controle dos atos inconstitucionais, pois, ainda que de forma incipiente em muitos países, a Constituição (e não mais o soberano) passou a ser o centro e a fonte do poder do Estado.

Hans Kelsen chega a afirmar que a Constituição somente pode ser considerada uma garantia eficaz de limitação e organização da atividade estatal quando é possível anular atos inconstitucionais (2013, p.149), denotando daí a importância de haver mecanismos de controle dos atos jurídicos inconstitucionais e, por conseguinte, mecanismos de controle que freiem ações arbitrárias de determinados órgãos estatais.

Para a solução desses conflitos seria necessário haver um controle de constitucionalidade, a cargo de um órgão colegiado, independente de qualquer autoridade estatal, que teria a função precípua de anular os atos (leis, decretos) considerados inconstitucionais, e que fosse teoricamente afastado de influências políticas.

Na visão de Hans Kelsen, seria igualmente nocivo que o Poder Legislativo ou algum de seus órgãos julgasse a constitucionalidade das leis. Em primeiro lugar, porque seria muita ingenuidade política supor que o parlamento julgasse inconstitucional uma lei por ele próprio votada; em segundo lugar, porque o Legislativo não é um órgão aplicador do direito e, por fim, por ser danoso a uma república democrática a concentração de poderes em um só órgão. (KELSEN, 2013, p.150).

Com efeito, é necessário, para uma garantia eficaz da Constituição, que o órgão criador do ato inconstitucional seja diferente daquele que julga sua eventual inconstitucionalidade. Somente com a criação de um terceiro órgão, um tribunal constitucional, seria possível existir a tão almejada garantia.

Assim nasceu a ideia de se criar uma Corte Constitucional, único órgão com competência para exercer o controle de constitucionalidade dos atos do Executivo (decretos, decretos com força de lei) e do Legislativo (leis), concentrando os julgamentos dos incidentes de inconstitucionalidade, daí advindo o nome de “controle concentrado de constitucionalidade” para esse modelo desenvolvido por Hans Kelsen.

Hans Kelsen foi um dos primeiros autores, senão o primeiro, a formular o conceito de “legislador negativo” que conhecemos hoje. Essa função consistiria, em breve síntese, em “eliminar” a legislação considerada inconstitucional do ordenamento jurídico. Não se estaria criando nenhuma lei nova, portanto, não se trataria de legislador positivo ou legislador em sentido estrito, função essa reservada ao Poder Legislativo.

Praticamente todas as Cortes constitucionais ao redor do mundo, incluindo a Suprema Corte dos EUA e o Supremo Tribunal Federal no Brasil, atuam dessa maneira.

Nas palavras do próprio autor, “a atividade do legislador negativo, da jurisdição constitucional, é absolutamente determinada pela Constituição. E é precisamente nisso que sua função se parece com a de qualquer outro tribunal em geral: ela é principalmente aplicação e somente em pequena medida criação de direito”. (KELSEN, 2013, p.153).

Com esses argumentos, Hans Kelsen refutou os críticos que afirmavam ser uma violação ao princípio da separação dos poderes a criação de uma Corte com poderes para anular uma lei aprovada pelo parlamento, posto que o mencionado princípio busca a harmonia entre os poderes e o controle mútuo dos atos por eles praticados com a finalidade de evitar arbitrariedades que eventualmente possam ser exercidas.

Uma das principais críticas de Hans Kelsen ao modelo de Carl Schmitt se refere ao fato de que, quando o Chefe de Estado atua como “defensor” da Constituição, na verdade o que se pretende é uma garantia ineficaz, deixando aos caprichos do Chefe de Estado (monarca, presidente, Führer) a avaliação sobre o que é ou não constitucional, inclusive quanto aos decretos por ele mesmo expedidos.

Seriam verdadeiros juízes em causa própria, julgando os próprios atos, com poderes excepcionais, com a imparcialidade necessária para a execução de ato de tamanha importância evidentemente prejudicada. Trata-se, na verdade, de hipótese parecida com a de um parlamento que julgasse a inconstitucionalidade de suas próprias leis, prática considerada condenável, conforme exposto anteriormente.

Hans Kelsen define como objetos do controle de constitucionalidade a lei em sentido estrito, os decretos, os decretos com força de lei (que equivalem à moderna medida provisória). Esses seriam os principais objetos a serem alvos potenciais de inconstitucionalidade.

Porém, sabiamente, Hans Kelsen também listou outros atos que deveriam ser submetidos ao controle de constitucionalidade, apesar de a doutrina da época não os considerar como aptos a essa finalidade.

Nesse sentido, entrariam também “todos os atos que revestem a forma de leis”, como orçamentos; atos que se pretendam valer como lei, porém que não o sejam devido à falta de uma condição essencial, e também os atos que “não pretendam ser leis, mas que segundo a Constituição deveriam ser”. (KELSEN, 2013, p.156).

Essa última previsão contempla a hipótese de um subterfúgio que poderia ser empregado pelo legislador para fugir do controle de constitucionalidade. O artifício consistiria em revestir de outra forma um ato que deveria ser lei – tudo isso em manifesto desrespeito à Constituição. Hans Kelsen utiliza como exemplo dessa prática nefasta o fato de o Parlamento regulamentar determinada matéria por meio de resolução não publicada.

Outro ponto importante discutido refere-se aos efeitos de uma decisão que declarasse a inconstitucionalidade de uma lei. Na visão de Hans Kelsen, não se deveria atribuir efeitos ex

tunc para uma decisão que anulasse uma norma geral, devendo ser considerados válidos todos os atos completados antes da anulação da norma.

Uma decisão retroativa abalaria sobremaneira a segurança jurídica, “pois a norma geral só é anulada pro futuro, isto é, para os fatos posteriores à anulação”. (Kelsen, 2013, p.171). A regra, portanto, deveria ser a de uma decisão anulatória com efeitos ex nunc.

Todavia, o próprio autor admite uma mitigação desse princípio, defendendo, em certos casos, uma “retroatividade limitada” dos efeitos da decisão. Exemplo seria a hipótese de não haver decisão de uma autoridade pública sobre fato anterior à anulação. Nesse caso, sobrevindo declaração de inconstitucionalidade, esta alcançaria o fato pretérito sub judice, que ainda não contava com decisão.

No tocante ao procedimento adequado para a efetivação do controle, Hans Kelsen explica que um modelo baseado em actio popularis, em que a Corte Constitucional seria obrigada a julgar todas as ações de sua jurisdição propostas por qualquer pessoa, se tornaria inviável, em razão do risco de uma enxurrada de ações congestionarem o funcionamento do tribunal e da banalização de ações de inconstitucionalidade, que teriam natureza puramente temerária.

Assim, só teria legitimidade ativa para propor os incidentes de inconstitucionalidade um determinado rol de pessoas, órgãos ou instituições. No caso de Estados federais, os Estados federados e a União também deveriam necessariamente contar com tal legitimidade.

Para equilibrar a balança e tornar o procedimento mais acessível a todos, sem, contudo, os inconvenientes de uma actio popularis, Hans Kelsen sugere que seja possível às partes de um processo judicial ou administrativo opor incidente de inconstitucionalidade em face de atos das autoridades públicas, que seriam julgados pela Corte Constitucional.

Por derradeiro, Hans Kelsen salienta que instituições de controle, em especial do controle de constitucionalidade, são condição de existência de uma República democrática. Somente a elaboração constitucional das leis pode ser a garantia dos direitos das minorias contra a ditadura da maioria e, para isso, é necessário um controle efetivo de constitucionalidade.

Em brilhante comentário sobre a importância de se proteger os direitos das minorias em uma democracia, Hans Kelsen (2013) afirma:

Se virmos a essência da democracia não na onipotência da maioria, mas no compromisso constante entre os grupos representados no Parlamento pela maioria e pela minoria, e por conseguinte na paz social, a justiça constitucional aparecerá como um meio particularmente adequado à realização dessa ideia. (KELSEN, 2013, p.182).

Portanto, verifica-se que muitos dos pontos propostos e abordados por Hans Kelsen formam hoje a base do que o mundo ocidental conhece por controle de constitucionalidade. Apesar de seu modelo sofrer críticas e de estar superado em alguns aspectos, Hans Kelsen sem dúvida teve importância ímpar para o fortalecimento do moderno sistema de controle de constitucionalidade e da criação de tribunais constitucionais e “guardiões da Constituição” por todo o mundo.

No documento Luis Antonio Rossi.pdf (páginas 68-72)