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Teoria Pura do Direito para Hans Kelsen

No documento Luis Antonio Rossi.pdf (páginas 65-68)

CONSTITUCIONALIDADE DA LEI DA FICHA LIMPA

3 O GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO

3.2 Teoria Pura do Direito para Hans Kelsen

Publicada pela primeira vez em 1934, a Teoria Pura do Direito é, por uma boa margem, a obra mais conhecida de Hans Kelsen. É o seu “cartão de visitas jurídico”, a que representa o ápice de sua carreira como jurista e jusfilósofo, a síntese e condensação de todo o seu pensamento sobre o Direito como ciência autônoma e do positivismo jurídico que permeia todas as suas obras.

O texto integra os debates científicos do final do século XIX e início do século XX, marcados pelo auge do estado liberal-burguês, no qual o Direito estava inserido como um instrumento de formalização do poder estatal. Nesse ambiente liberal, existia um intenso debate sobre a natureza da ciência jurídica, pelo qual certas correntes propunham que o direito fizesse parte das outras ciências humanas, como a sociologia, a filosofia e a história.

Em reação a tais proposições, Hans Kelsen idealizou o direito como uma ciência pura: “o direito, para o jurista, deveria ser encarado como norma (e não como fato social ou como valor transcendente)”. (COELHO, 2012, p.15).

Ou seja, o mérito e o objetivo principal de Hans Kelsen com sua obra foram alçar o direito a uma categoria própria, livre da interferência de outras ciências que influenciavam sobremaneira o pensamento jurídico da época, contaminando-o.

Para isso, o direito precisava de método e objetos próprios. Hans Kelsen encontrou a solução reduzindo o objeto jurídico ao estudo da norma, tornando o direito uma ciência pura, de caráter neutro ou, em outras palavras, sem juízos de valor sobre o conteúdo da norma nem análise de sua dimensão social e valorativa.

Com efeito, segundo o modelo kelseniano, não há análise da norma, nem da norma fundamental (a Constituição), para saber se é justa ou não. Não há uma análise deontológica da norma, apenas avaliação sobre sua validade e eficácia.

Se a norma é válida e eficaz já basta, na visão de Hans Kelsen, para produzir efeitos e impor sanções caso seja descumprida. Assim, seu conteúdo é irrelevante para definir sua validade. Basta que a norma tenha sido expedida pela autoridade competente e que seja compatível com outras de hierarquia superior. (COELHO, 2012, p.51).

Assim argumenta Hans Kelsen (2006):

A nenhuma ordem jurídica pode recusar-se a validade por causa do conteúdo das suas normas. É este um elemento essencial do positivismo jurídico. Precisamente na sua teoria da norma fundamental se revela a Teoria Pura do Direito como teoria jurídica positivista. (KELSEN, 2006, p.242).

O mesmo raciocínio se aplica à Constituição. Todavia, quanto a ela, sua própria existência valida e legitima o ordenamento jurídico dela decorrente, por estar posicionada no topo da pirâmide normativa. Pode-se afirmar, portanto, que a Constituição é o fundamento de validade de todas as normas.

O principal problema desse raciocínio puramente técnico e positivista é que mesmo uma Constituição injusta, que não garanta direitos básicos aos cidadãos e que permita o arbítrio estatal, valida e legitima o direito dela decorrente. Exemplos vivenciados em nosso país seriam os das Constituições de 1937 (Estado Novo) e de 1967/69 (ditadura militar), as quais possuíam visíveis elementos autoritários e limitadores dos direitos e garantias fundamentais, mas consideradas válidas de um ponto de vista estritamente positivista- normativista.

Diante desse posicionamento acerca da “pureza” do direito, e considerando o seu enfoque puramente normativo, Hans Kelsen foi (e ainda é) acusado de ser reducionista, no sentido de relegar os aspectos sociais e valorativos das normas jurídicas.

A pureza defendida por Hans Kelsen também afastou o direito de outras ciências humanas próximas, que sempre influenciaram a evolução do pensamento jurídico, como, por exemplo, a filosofia, a sociologia e a história. A importância dessas disciplinas na própria formação das normas e o caráter interdisciplinar do direito que, como ciência, mantém conexão próxima com outras áreas do conhecimento, foram ignorados por Hans Kelsen.

Um aspecto pouco debatido sobre a principal obra de Hans Kelsen, e no qual o jurista austríaco diverge do posicionamento clássico e principalmente da visão rousseauniana, consiste no fato de Hans Kelsen afirmar que o homem é naturalmente inclinado ao egoísmo, procurando satisfazer desejos individuais em detrimento da ordem social. “Nenhuma ordem social pode determinar as inclinações dos homens, os seus interesses egoísticos, como motivos das suas ações e omissões” [...] “A sua conduta efetiva depende de qual seja a inclinação mais intensa, de qual seja o interesse mais forte”. (KELSEN, 2006, p.96).

Para combater essa natureza egoísta, Hans Kelsen acredita que as consequências de uma conduta ilícita sejam graves o bastante para dissuadir os indivíduos de práticas que considerem menos vantajosas, por medo da sanção advinda do descumprimento da norma.

Em outras palavras, ao cumprir a norma e não sofrer nenhuma punição, o indivíduo continuaria a demonstrar a sua natureza egoísta, pois seria uma maneira de continuar a colher vantagem. O cumprimento da lei e das normas socialmente estabelecidas seria vantajoso, ou menos desvantajoso, para o homem; ao passo que o seu descumprimento resultaria em uma sanção evidentemente desvantajosa.

Em razão disso é que o Direito, segundo Hans Kelsen, deve ser entendido como uma ordem social coativa, baseada em sanções àqueles que descumprirem a norma.

Nesse ponto é que o direito se distancia da moral. A sanção advinda do descumprimento de uma norma jurídica acarreta consequências mais graves, podendo inclusive ser imputadas ao indivíduo por meio da força física e do poder coercitivo do Estado, ao passo que a moral apenas recomenda o que é certo ou errado, aprovando ou desaprovando condutas, sem o caráter coativo encontrado na seara jurídica.

Sobre esse ponto, Maria Helena Diniz (1979, p.93) argumenta: “Para Kelsen, não há ordem social desprovida de sanção e, para ele, a única distinção que há entre as ordens sociais está nas diferentes espécies de sanções que elas impõem”.

É necessário haver um liame entre a sanção e a conduta do sujeito que descumpriu a norma, denominado por Hans Kelsen como imputação. Segundo Fábio Ulhoa Coelho, “a sanção não é causada pela conduta proibida; apenas deve ser aplicada diante da prova de tal conduta”. (COELHO, 2012, p.72).

Com efeito, Hans Kelsen traça a moderna noção de imputação e tipicidade – presentes em nosso Código Penal e em muitos outros diplomas – com base nesse pensamento sobre a necessidade da norma trazer consigo uma sanção em caso de descumprimento.

Não há uma diferenciação entre o certo e o errado, o bem e o mal. O maniqueísmo presente nas religiões e na moral não encontra espaço na Teoria Pura do Direito. O que existe é uma sanção ao indivíduo que cometer o fato típico e ilícito previsto na norma. Portanto, o Direito se afastou de realizar juízos de valor e passou a se preocupar apenas em cumprir a determinação legal de punir aquele indivíduo que desrespeitá-la com sua conduta.

Com base no exposto, observa-se que a obra mais célebre de Hans Kelsen tem insuperável valor histórico, traçando as bases para o moderno entendimento do Direito. Porém, em muitos aspectos, encontra-se superada pelo surgimento do pós-positivismo e do neoconstitucionalismo, que relativizaram o papel da lei como centro nervoso do direito e passaram a valorizar o conjunto de princípios fundamentais a serem seguidos pelo Estado moderno do pós-guerra.

Mesmo assim, conceitos kelsenianos presentes na Teoria Pura do Direito como o da pirâmide jurídica contendo a hierarquia das normas, a noção de Constituição como norma fundamental e fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, as técnicas para solução de antinomias, os conceitos de imputação e tipicidade penal, dentre outros, continuam válidos e aceitos pela maior parte dos juristas contemporâneos.

No documento Luis Antonio Rossi.pdf (páginas 65-68)