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3. A INTERPRETAÇÃO DO ATOR NUM TEXTO SILENCIOSO

3.7. Criação das personagens

A criação das personagens aconteceu simultaneamente ao trabalho de preparação corporal, com jogos e exercícios afinados na procura de um tipo de interpretação necessária ou apropriada para o texto de Handke. Segundo os atores, o treinamento correspondia a um trabalho físico intenso é que desembocou nas personagens. Eles comentam:

Nazareno: Ficamos quatro meses para fazer o trabalho. Praticamente três meses de trabalho de mesa e de corpo. Sem fazer uma caminhada que fosse uma cena das rubricas que ele dava. E, no entanto quando faltava um mês, nós começamos a fazer as cenas, pegamos a mesa e começamos a trabalhar na mesa como Peter Handke queria e tudo veio. E o Chico puxava e eram todos os elementos que nós tínhamos trabalho desde o início, estava pronto praticamente o espetáculo, era só montar, um quebra-cabeça, pouca coisa não estava pronta.

Leon: quando a gente chegou a essa conclusão de que a gente estava frente à mesa, e que a gente ia montar a cena e que tudo já estava montado antes, era muito rápido. Nazareno: A gente tinha clara a questão do jogo entre os atores, do que era o jogo. Naqueles exercícios que a gente fazia com objetos, que a gente mexia num objeto e a gente mexia num outro, aquele jogo veio com os movimentos da peça, eram jogos que nós fazíamos e depois era só transplantar. As relações estavam estabelecidas .

As relações estabelecidas durante o processo de criação são relações simples e básicas entre dois seres humanos. Segundo Yoshi Oida (2001:112-115), quando realizamos um exercício como caminhar na sala com outros atores nós devemos tentar sentir as pessoas ao redor ao mesmo tempo em que o ator mantém atenção no seu corpo e no espaço. Os atores no ensaio, segundo ele, se concentram em interpretar a situação individualmente esquecendo os outros e a história que deve ser contada minuto a minuto em conjunto. Tanto Nazareno quanto Leon tentaram explicar em que consistia esta relação, para eles tratava-se de uma relação silenciosa, com a maior concentração, presença espacial e corporal, na qual se devia perceber o ritmo do movimento, o ritmo cardíaco, a respiração e o espaço se modificando entre eles, sempre atentos um ao outro durante os ensaios e as apresentações. Segundo Yoshi Oida:

Devemos tentar encontrar uma harmonia entre nossa concentração interna e a disponibilidade para o mundo externo. Fazendo o que tivermos de fazer para nós mesmos, ao mesmo tempo em que nos juntamos às outras pessoas. Esse é um processo simples e inconsciente; não precisamos pensar nisso. Nós nos concentramos totalmente na nossa tarefa, enquanto inconscientemente respondemos às pessoas a nossa volta. Há um equilíbrio entre nós mesmos e os outros (2001:121).

Nesta montagem as pausas, os olhares, os movimentos, os gestos, as ações e a linguagem do corpo construído pelas tensões e sutilezas destas relações dos atores, não tem como ponto de partida a emoção. Sobre isto Leon comenta: “..nós temos que estar em cena os dois, prestando atenção no meu ritmo cardíaco e no de Nazareno, no meu ritmo de respiração e no de Nazareno [...]a gente tem que estar presente um com ou outro”. Nesta montagem o ritmo das ações dos atores não era pré-estabelecido, como acontece, por exemplo, numa coreografia de dança com sincronia entre os bailarinos, e por isto, poderiamos dizer que a relação dos atores é criada com base na ativação da comunicação não verbal, esta relação portanto, seria criada através da relação espacial, do sentir o corpo do outro no espaço e sua presença. Este trabalho interpretativo, com um tipo de texto como do Peter Handke, favorece a presença corporal do ator, isto pode ser corroborado por Sanchez que, referindo-se à interpretação dos textos de Beckett, afirma: “Os atores tem uma presença própria na cena; como já acontece em happening ou em algumas peças de Beckett, os atores não interpretam, executam; como já antecipara Brecht em alguns “Lehrstucke”, os atores não praticam o “como se”, são” (2003:129). Portanto, poderíamos dizer que a interpretação dos atores é mais presente e vivenciada no aqui–agora e que desta maneira a relação ator-espetador é uma relação ligada à presença corporal, como Patrice Pavis afirma: “a presença do corpo estaria ligada a uma comunicação corporal “direta” com o ator que está sendo objeto de percepção” (1999:305). É importante descatacar que a relação dos atores em O Pupilo quer ser Tutor e a sua organização em cena cria-se pelo sentir e não pelo olhar. Isto porque sendo o olhar do ator um dos mecanismo mais comuns para a maioria dos atores como meio para indicar saidas, entradas, o início ou o final de uma cena, nesta montagem opta-se por outros mecanismos mais ligados ao estar presente, apostando-se na percepção e na atenção dos atores e não necessariamente no olhar.

Os atores no processo de criação não procuram uma personagem, poderíamos afirmar que foi decisão do diretor optar pela não elaboração naturalista das personagens, incentivando a construção dada por elementos exteriores, como é o caso das relações, encaixando-se perfeitamente com a estrutura proposta por Peter Handke no texto de O Pupilo quer ser Tutor. Esta decisão do diretor gerou, durante o processo de criação várias interrogantes. Faleiro, por exemplo, comenta: “Nós perguntávamos, eles não tem personagem? Eles são figuras. Ao mesmo tempo não são arquétipos, não são tipos”. Esta idéia também pode ser corroborada na impressão de Alexandre Mate ao dizer:

“O par tutor/pupilo tutor representa uma alegoria do poder, de submissão e servilismo de um ao outro. Entretanto, esses pares, cujas ações parecem não se completar totalmente, não são personagens, são figuras. Delas não se sabe coisa alguma: elas não têm história, tem uma relação social” (2008).

Os atores construíam relações espaciais, rítmicas e humanas e não uma personagem num sentido tradicional. lgums das impressões dos atores sobre suas personagens foram:

Nazareno: Esse personagem brilha, eu sei que quando a gente terminou os exercícios e foi para cena, o Tutor estava ali, eu não precisava fazer nenhum esforço, ele estava, era só eu me colocar na minha posição na cena e ali estava o Tutor. Nós não pensávamos numa personagem. Por que se nós estivéssemos pensando na personagem, nós estaríamos aproximando-nos do realismo. Essa é uma interpretação e nós estamos em outra.

Leon: E esta, não necessariamente é assim, não é uma interpretação realista .

Os atores tinham claro que não eram motivações emocionais que deveriam animá-los a agir e sim a relação de tensão, espaço, ritmo e sensações do corpo no aqui - agora que deviam se manter latentes. Estas personagens tal qual são propostas nesta encenação, são, como afirma Abirached:

Uma alma liberada de tudo o que a individualiza e a submete aos acidentes da realidade: estado civil, caráter, fisiologia, profissão, localização num século ou num lugar; eliminadas todas as marcas do real, resta um ser tecido de palavras que podem viver metaforicamente as paixões primordiais e explorar os percursos imemoriais da humanidade (1998:175). 48

A ruptura no modo de criar a personagem nesta montagem é uma das características que a distancia da interpretação naturalista. Sendo assim, os atores se dispõem à vivencia de uma outra experiência artística distinta daquelas de que já tinham participado. Os atores foram descobrindo, durante o processo de criação, que se tinha necessidade de criar uma interpretação exteriorizada que fosse construída pela elaboração das ações físicas propostas no texto, e não pela utilização do subtexto49. No processo de criação os atores não têm a necessidade de criar um subtexto ou uma justificação psicológica das ações que estão executando. É possível pensar que a falta desta

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Tradução do espanhol. …Un alma liberada de todo lo que la individualiza y la somete a los accidentes de la realidad: estado civil, carácter, fisionología, profesión, localización en un siglo o en un sitio; eliminadas todas las huellas de lo real, queda un ser tejido de palabras que puede vivir metafóricamente las pasiones primordiales y explorar los recorridos inmemoriales de la humanidad (ABIRACHED, 1998:175).

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Instrumento psicológico e psicanalítico que informa sobre o estado interior da personagem, cavando uma distância significante entre o que é dito no texto e o que é mostrado em cena. O subtexto é o traço psicológico ou psicanalítico que o ator imprime a sua personagem durante a atuação (PAVIS, 1999: 368).

necessidade se dá pelo fato de que o texto através das indicações cênicas lhes diz as ações físicas que devem realizar. Faleiro corrobora esta idéia “ O diretor não dava uma indicação interna, em alguns momentos eu achei que ele dava alguma indicação que fosse algo mais de subtexto, mas ele não queria subtexto, ele não queria nada. O corpo era o que estava ali presente” Os atores nesta montagem procuram a consciência da corporeidade e da sensibilidade de seu corpo com o espaço, os movimentos, as formas e os gestos, preparando assim seu corpo para ser um instrumento, um emissor de símbolos na cena. Como afirma Meyerhold, “Em vez do psicologismo, o princípio diretor da atuação se torna plástico. Trata-se de trabalhar ênfases lógicas; de revelar, não de exprimir. Axioma n 1: o ator deve “sentir a forma e não simplesmente as emoções da alma” (PICON-VALLIN, 2006:13). Poderíamos dizer que o trabalho de corpo do ator nesta encenação se assemelha à construção de uma escultura.