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3. A INTERPRETAÇÃO DO ATOR NUM TEXTO SILENCIOSO

3.12. Presença

Durante o processo de criação do espetáculo, a presença foi um dos elementos mencionados com frequência. A presença encontra-se relacionada com o domínio do ator de sua própria energia, sendo o treinamento físico uma das ferramentas que servem ao ator para aprender a manipulá-la e explorá-la. Faleiro afirma que o objetivo principal do trabalho, durante a montagem, está contido no estar presente:

O trabalho de Francisco é de um rigor incrível, de um conhecimento do corpo, agora, esse conhecimento do corpo não é para uma única forma, ele está a serviço de algo que eu ainda não sei o que é, algo assim como energia, palavra muito utilizada. Mas é algo que modifica, produz um estado de consciência. Com este trabalho do corpo, algo modifica no ator.[...]. Essa presença é física, mas ao mesmo tempo esse físico está a serviço de algo interno. Embora o diretor não utilize a palavra interno. Ele não falou em irradiação, mas acho que seria onde o corpo estaria, algo além dele, algo de luz.

Para que o ator conquiste essa irradiação ou luz em cena, da qual fala Faleiro, é imprecindível o trabalho com o centro energético do corpo. No teatro nô ou em algumas artes marciais antes mencionadas, como o Tai chi chuan ou o Chi chum, o executante, quando conhece e domina a energia do seu corpo (que provêm do seu centro energético) favorece sua presença e consequentemente como ela se projeta no espaço. O controle da energia encontra-se no centro de gravidade cuja base é o quadril, também conhecido como Koshi e é a partir dele que se dá origem a todos os movimentos, determinando inclusive a maneira de caminhar.

Nas anotações realizadas por Faleiro, no ensaio do dia 12 de maio de 2007, efetuado no Teatro União Beneficente Recreativa Operária (UBRO) em Florianópolis, encontram-se algumas sugestões que o diretor Francismo Medeiros dava aos atores relacionadas à area do centro de energia, que foram selecionadas de maneira aleatória para ilustrar e clarificar a relação energia e centro de gravidade. É importante destacar que estas sugestões são ditas nos ensaios, e que devem de ser pensandas dentro do contexto do próprio ensaio: Atenção para o umbigo, Umbigo na coluna, Umbigo ao sentar, levantar, ao vestir meia. Empurrar o umbigo de leve para a coluna não pode impedi-los de respirar. Caminho para a frente e meu umbigo vai para trás.

Quando analisamos estas sugestões somos levados a pensar mais uma vez no ensaio Sobre o Teatro de marionetes escrito por Kleist, onde ele estabelece uma relação entre centro de energia/afetação. Segundo ele: “... A afetação aparece, como o senhor sabe, quando a alma (o vis

motrix) encontra-se em qualquer outro ponto que não seja o centro de gravidade do movimento” (1997:21). Esta afetação pode ser entendida como a decisão do ator em optar no seu trabalho interpretativo por um excesso de caretas, maneirismo, exibicionismo, excesso de efeitos dramáticos como gritos, choros, risadas e gestos estereotipados. Sobre a afetação, já diria Diderot “Nunca se deixe amaneirar, não há cura possível para o maneirismo nem para a afetação.”(2000: 60), da mesma forma que Cervantes:

Aqui ergueu a voz outra vez mestre Pedro e disse:

 Simplicidade rapaz! Não te entusiasmes demais, que toda afetação é má. Nada respondeu o intérprete, mas apenas prosseguiu, dizendo..." (1983:199)

Portanto, poderíamos dizer que a afetação neste texto deve ser comprendida como o não envolvimento emocional do ator, com a sua personagem no nível emocional. Ou seja, o ator não deve sofrer com a situação que vive sua personagem, não tem que chegar ao ponto no qual o ator chora ou grita, mas o ator deve criar um outro, com base numa construção formal/artifical. A não afetação tem uma relação direta com o ator em cena, no aqui – agora e desenvolvendo uma ação no seu corpo, porque o ator recorre aos recursos externos como o trabalho do ritmo, do espaço, do movimento e não necessariamente apoiando-se na sua psicologia. Podemos dizer, a partir do texto de Kleist, que quando o ator encontra-se no ponto do centro de gravidade certo, o ator percebe seu corpo, seus gestos e suas ações, ou seja, percebe o movimento e não só seus sentimentos.

Os atores em O Pupilo quer ser Tutor procuram uma relação com seu centro de energia, o qual se evidencia nas sugestões do diretor e no cumprimento da execução das ações desapegadas de emoção, um rosto relaxado como se fosse uma máscara, mas os atores devem levar em consideração a tensão da relação entre eles proposta, a clareza e limpeza das ações, as mudanças de ritmo, acompanhado de uma atenção ao espaço e uma tensão na relação com o outro ator.

Ao direcionar sua atenção ao centro de gravidade ou de energia, como acontece nesta proposta, o ator cria um diálogo no aqui-agora com as sensações que são produzidas pela conexão mente-centro energético, como acontece nas práticas do Tai chi chuam ou Chi chum, favorecendo o estado de vazio.

Quando o ator opta por uma abordagem interpretativa corporal, na qual sua atenção encontra-se nos movimentos, gestos, ações e sensações produzidas no presente ou, em outra palavras, opta pelo universo exterior, ele se afasta da possibilidade de uma interpretação afetada,

devido ao fato de que sua atenção se enfoca e se concentra no seu corpo e não numa interpretação psicológica. Portanto, ao prestar atenção a seu centro energético e, consequentemente, ao seu corpo todo, o ator se afasta da possibilidade de criar uma ficção psicológica que pode levá-lo à afetação, já que sua atenção está no corporal e não só no psicológico.

A importância da relação do ator com o centro de energia está presente também nas anotações de Faleiro:

Francisco — Quando tenciona o ânus, umbigo, tem repercussão no corpo todo? Nazareno — Todo o corpo encaixa.

Leon — Maior presença do eixo.

Francisco — Como é a repercussão no corpo todo? Nazareno — Percebo mais no tronco.

Leon — Para mim é como se pudesse perceber mais uma parte. Como ela fica mais ativada, consigo sentir isso aqui (cintura em torno do baixo ventre, cintura pélvica). Francisco — Mais encaixado, percebo mais. Na hora em que faço a cena, lembrar “Estou encaixado”. 52

O ator, portanto, ao fixar a atenção em seu centro de energia é dificilmente distraído pelos diversos pensamentos que possam vir a sua mente. Isto porque a relação com o centro de energia no teatro, como em algumas artes marciais, pretende criar no ator um estado de vazio, de atenção, de silêncio e ao mesmo tempo de prontidão, evitando a presença de pensamentos que o distraiam do aqui-agora, do presente. Em relação a isto, uma das sugestões do diretor que encontra-se nas anotações dos ensaios dizia: “Na hora em que vem historinha, não expulsar, deixar passar, não ficar com isso. Não tem nada a ver com o não fazer. Fica com a atenção, sem analisar” (Não publicado)53.

Para que os atores possam manter este estado de prontidão e de presença do “aqui-agora”, eles não podem dedicar seu tempo a desenvolver idéias ou pensamentos que surjam no momento da ação. Os atores, portanto, não podem se prender durante a peça a pensamentos referentes a sua vida pessoal, algum barulho que o público fez ou a questionamentos do ator sobre sua própria interpretação, porque isto os distrai e não lhes permite vivenciar suas sensações no presente. Os questionamentos silenciosos são freqüentes quando o ator encontra-se em cena, fazendo com que ele se desconcentre. Alguns dos questionamentos silenciosos a que nos estamos referindo são: meu movimento devia ser desta forma e não desta, estou fazendo a coisa errada, agora o que faço?. Quando o ator opta por explorar seu corpo (peso, ritmo, oposição, equilíbrio) ele favorece

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Informação obtida nas anotações de José Ronaldo Faleiro, assistente de direção durante os ensaios, 2007.

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o “aqui-agora” em cena, sendo atraído pelas sensações que seu corpo produz e não necessariamente pelo que sua mente que dizer, apesar de ser evidente a constante conexão corpo/mente. Em relação à luta do ator para se manter presente na cena, Nazareno comenta:

É claro que vêm idéias. Em alguns momentos vêm idéias como, por exemplo: “Leon abriu o olho mais do que deveria”, mas, eu preciso deixar passar esse pensamento e não “brigar” com essa idéia. Se eu “brigar” com esse pensamento vou me ocupar muito mais dele. Então o objetivo é simplesmente de não “brigar” com esse pensamento. Meu pensamento deve estar nessa relação em que eu estou, nesse espaço que há entre mim e Leon.

Dentro das anotações de ensaio feitas por Faleiro estão presentes as preocupações do diretor sobre a postura do ator: “Cuidado, seu corpo tende a pensar., Não pensar na forma. Não se criticar. Pensem nas oposições, nas tensões”. O diretor Francisco Medeiros acrescenta nessa anotações:

Porque o outro mundo para onde se vai me desvia da cena. É um entendimento errado de Stanislavski. Ele não diz: “quando você está atuando, lembre-se da memória emotiva”. Não: a cena é o lugar de estar inteiro. – Agora, não estamos falando sobre estar conectado com a platéia. O que é diferente de pensar. [...]A conexão do intérprete com a platéia. Você vê um homem dormindo e diz: “Homem dormindo, tenho que melhorar”. Você ouve — como o rangido de uma cadeira — sem fazer história: “Ih, está rangendo. Nem ligo”. Só constato: “estão saindo”. Mas você está no jogo. Tem que ver. Mas não com os olhos do corpo. O duro é o ator que diz: “quando estou no palco, não vejo nada. Não é com este olho que você vê. Continua sintonizado com a platéia (Não publicado)54.

Manter-se no jogo, em estado de prontidão, presente, é um princípio de trabalho importante na interpretação desta montagem. A atenção do ator deve estar na execução das ações, mas o cumprimento deste objetivo depende do domínio do seu corpo na cena.

Os atores em O Pupilo quer ser Tutor dão atenção ao seu centro energético projetando assim sua presença. A tensão da relação dos dois atores em cena fomenta os momentos de imobilidade. Segundo Barba, “nas artes marciais em particular, a imobilidade é o sinal de uma prontidão à ação” (1995:88). Ou seja, um estado similar ao “wu wei” chinês. Sendo o “wu wei” um estado de contenção que desprende energia no espaço e que consequentemente cria tensão e atenção com o espectador, fomentando o vazio nos atores.

Neste processo de criação foi incentivada a atenção, a percepção e a sensação dos atores no espaço, os atores deviam dar atenção às ações que estavam executanto, além de prestar

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atenção a outros elementos como o ritmo, a relação com os objetos em cena, a proxemia entre eles e o espaço em geral. Segundo Faleiro:

Os atores tinham que ter uma percepção do que tinham atrás ou do que tinham do lado e do outro lado e isso dava a eles um estado de atenção constante, de não poder brincar, relaxar. [...] Eles estavam naquela postura no círculo neutro, o tempo todo, e a atenção fazia parte do jogo.

Esta disposição de atenção na cena foi estimulada tanto no treinamento fisico quanto nos exercícios interpretativos, tendo como objetivo fomentar a relação de tensão dos atores em cena, proposta pelo texto. Outro exercício frequentemente realizado nos ensaios consistia em fixar o espaço existente entre um ator e o outro ator, ou seja, sem se deslocar do espaço o ator devia com seu olhar, olhar o percusso do espaço existente entre os dois.

Algumas da indicações que segundo Faleiro o diretor dava a seus atores em relação ao corpo/olhar foram: “Cuidado para os olhos não irem à frente do resto do corpo”. Faleiro explica que os atores deviam “Tentar que o olhar não fosse a frente, portanto o olhar tinha que ir junto ao corpo”. Estes exercícios do olhar criam afinidade com o teatro de animação e seu princípio de que o boneco olha com a cabeça, não com o globo ocular. Esta relação corpo/olhar também nos remete à máscara, já que o ator ao utilizar a máscara deve ter precisão com seu olhar, a máscara deve responder a cada estímulo com o corpo e consequentemente seu olhar o acompanha.