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3. A INTERPRETAÇÃO DO ATOR NUM TEXTO SILENCIOSO

3.8. Preparação corporal e exercícios interpretativos

A preparação corporal tinha como objetivo despertar nos atores a noção de economia dos gestos, das ações e dos movimentos, além de trabalhar a flexibilidade e sensibilidade dos corpos. Segundo José Ronaldo Faleiro, “o trabalho dos atores surgia da coluna, surgia da maneira de sentar, da maneira de olhar... um trabalho... de extrema sensibilização. Sensibilização do corpo todo” (Informação verbal), e, para Leon o treinamento tinha o objetivo de “deixá-los em condições de entender os elementos do espaço, tempo e ritmo” (Informação verbal). De maneira complementar, na preparação corporal se dedicou tempo dos ensaios a alguns exercícios interpretativos propostos por Francisco Medeiros e Faleiro, reafirmando os elementos procurados com o trabalho corporal, como, por exemplo, a neutralidade,a economia de meios, a limpeza dos movimentos e a presença.

Um dos exercícios mais complexos e praticados durante um longo período foi o exercício conhecido como “círculo neutro”, também definido como “treinamento de emergência para vícios interpretativos”, cujo objetivo principal é a concentração do ator na realização das ações. O exercício do círculo neutro consiste no seguinte: o ator A coloca-se no espaço segurando um barbante e o ator B segura a outra ponta, onde há um giz, e, andando em volta do Ator A, traça um círculo no chão. O ator A olha para trás e visualiza um ponto, que será a saída, e o ator B apaga o traço no ponto indicado pelo outro, um palmo à direita e outro palmo à esquerda. O ator A, então, indicará, da mesma forma a entrada e o ator B apagará o traço do giz da mesma maneira. O ator A, traça uma estrela de seis pontas no meio do círculo e sai pelo espaço indicado como saída. Ambos os atores ficam num espaço de concentração, onde podem se alongar, relaxar, etc. Quando o ator (A ou B) se coloca a um metro da entrada do círculo é o sinal de que o intérprete está pronto para começar a realizar uma seqüência de ações que consistem, por exemplo, em olhar o público, fazer um percurso com o olhar no espaço, ir da entrada ao centro do círculo, etc. O exercício do círculo neutro, segundo Faleiro, trabalha no ator a relação corpo/espaço, espaço interno/externo e o estado de alerta. É importante dizer que um dos requisitos deste exercício é que deve ser feito na presença da platéia. Os atores devem ir afinando as seqüências de ações, assim como a platéia irá afinando sua observação, razão pela qual é importante que a platéia permaneça a mesma. O papel da platéia ao presenciar repetidamente o exercício do circulo neutro feito pelos mesmos atores, é o de agir como um detector ou alerta que indica ao ator a existência de excesso de expressão ou tensão tanto no rosto como no corpo e da

mesma forma que indica ao ator quando ele tem reduzido ou eliminado tensões ou expressões desnecessárias para o cumprimento do exercício.

O exercício do círculo neutro foi um exercicio frequente nos ensaios e que exigia dos atores a realização exclusiva das sequências de ações solicitadas com um mínimo de expressão gestual e fisica, ou seja, os atores neste exercício não deveriam se preocupar em criar algum tipo de intepretação além do solicitado, pelo contrário, os atores deviam executar a pura e simples ação, e assim o exercicio atingia com maior êxito seus objetivos, além de preparar os atores para a relação dual no espetáculo, baseada na tensão dada pelos corpos.

3.9. A neutralidade

Destaca-se, no processo de interpretação de O Pupilo quer ser Tutor, a procura pela neutralidade. Segundo Lecoq (1997:11) um ator ao interpretar uma personagem traz com ele conflitos, histórias, um passado, com contexto e paixões, enquanto o ator no estado de neutralidade, no trabalho com a máscara neutra, encontra-se em estado de equilíbrio e economia de movimentos e desta forma o ator se mexe só o necessário. Ele acrescenta: “Trabalhar o movimento a partir do neutro permite pontos de apoio essenciais para o jogo que virá. Porque conhecendo o equilíbrio, o ator exprime melhor o desequilíbrio dos personagens ou dos conflitos” (LECOQ, 1997, p. 11). Sendo assim, o ator tem o domínio e controle de seu corpo oferecendo uma gama de possibilidades expressivas que vem do jogo do equilíbrio/desequilíbrio, do dentro e fora do eixo corporal e do jogo, do estar em cena presente sendo consciente de quando é ou não o foco de atenção. Para a consciência do ator, o estado de neutralidade seria aquele em que o ator, como afirma Eldredge, “está envolvido em ser e não em fazer. O corpo neutro parado não está envolvido em nenhuma atividade que não seja seu próprio estado de ser, ‘parado’ dentro da ação ‘parar’. Está apenas envolvido em ‘se fazer presente’ o que significa ‘estar presente’ (ELDREDGE, p. 23, 1978)”.

Leon e Nazareno já haviam tido experiências em teatro de animação50 e entendiam o significado da neutralidade nessa linguagem específica, onde se trata de “trabalhar com a noção de consciência de estar em cena, o que exige movimentos comedidos, discretos, elegantes, suficientes para que se remeta o foco das atenções ao boneco presente na cena e não ao seu

animador” (BELTRAME, 2008:36). No caso de O Pupilo quer ser Tutor o conceito de

neutralidade abarcava o ator todo, o ator consciente de estar em cena, com presença da platéia e realizando movimentos, ações e gestos com a noção de neutralidade. Segundo Nazareno,

Em O Pupilo quer ser Tutor foi um trabalho distinto, buscando “sentar é sentar”, “caminhar é caminhar”, não vou caminhar por que eu vou até você, por que eu vou te ameaçar, não, eu vou caminhar por que eu vou caminhar, não vou caminhar por que eu vou até tua frente e vou ficar te olhando. Não, eu vou sentar, por que é hora de sentar e não tenho mais nenhum outro objetivo.

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A neutralidade como recurso técnico-expressivo permite direcionar a atenção do espectador na linguagem do teatro de animação e desta forma poderíamos pensar que objetivo da neutralidade no espetáculo O Pupilo quer ser Tutor é o mesmo ao direcionar a atenção do espectador na relação de tensão que existe entre Tutor e Pupilo.

Segundo Faleiro “... O diretor queria que o ator não se preocupasse com o efeito que a ação iria produzir. Sem pensar, por exemplo: “Ela (a mão) fica melhor aqui, que lá”. Isso era solicitado pela direção e, portanto sem se preocupar com a beleza da ação ou com o efeito. Mas que ela (a ação) fosse feita” Neste texto é possivel perceber que o ator deveria sentir a sensação produzida pelo movimento, gesto ou ação desconsiderando a aparência daquele gesto ou ação. A proposta, poderíamos dizer, é que o ator procure através da comunicação interna com seu corpo, o estar presente em cena, sentindo as mudanças do seu corpo através de ações simples.

Fig.11 O Pupilo quer ser Tutor Foto: Cleide de Oliveira

A busca da neutralidade, para o ator, é complexa por várias razões: 1) a maioria dos atores, ainda hoje, tem como base uma formação de interpretação naturalista, a qual se encontra ligada à justificativa psicofísica das ações da personagem. 2) O ator precisa de um treinamento físico para

ter consciência do corpo, do movimento e dos gestos. Como diria Meyerhold “O ator deve possuir a faculdade de se ver, sem cessar mentalmente em um espelho” (1986:63). 3) A neutralidade, como no teatro de animação, necessita da anulação do ator, ou seja, o ato de não se mostrar para que entre em contato consigo mesmo no palco, compondo a totalidade da obra.

3.10. A máscara

Peter Handke propõe nesse texto o uso da máscara, mas a decisão do diretor Francisco Medeiros foi de não utilizá-la materialmente, optando por solicitar aos atores criar com seu rosto e gestual uma “máscara” ausente. Segundo Faleiro, o diretor dizia: “eu gostaria que a gente usasse uma máscara sem o objeto máscara” e acresenta “a idéia era retirar os excessos, chegar- se a uma máscara neutra, na medida do possível...”. Nesta montagem a máscara não é utilizada materialmente, mas a procura da neutralidade e seus exercícios trazem benefícios para os atores, como: a presença do ator no espaço, o estado de equilíbrio, a economia de meios expressivos, a precisão de gestos e ações. Lecoq diz:

Quando um ator retira sua máscara, se ele a utilizou bem, seu rosto está relaxado. [...] A máscara retirou dele alguma coisa que o despojou de um artifício. Ele tem então um belo rosto, disponível. [...] e ao final, a máscara neutra termina sem máscara (1997:41-47).

O objetivo do diretor Francisco Medeiros, ao propor ao ator pensar a cena como se estivesse utilizando uma máscara, é conseguir no ator um rosto sóbrio, mas com vida, um rosto relaxado mas em estado de alerta, assim como afirma Lecoq (1997: 41-47), um rosto disponível, que se encontra pronto para percorrer os distintos estados anímicos, passar de um extremo ao outro, ou simplesmente estar num estado de prontidão. A máscara neutra não tem passado nem futuro, nem sexo definido, idade ou personalidade. Ela movimenta-se de maneira não convencional e vive apenas o momento presente. Jacques Copeau (1879-1949) foi quem deu origem à máscara neutra, inicialmente chamada de máscara nobre. Segundo conta seu sobrinho Michel Saint-Denis, ele a utilizou no Teatro de Vieux Colombier acidentalmente, num ensaio em que uma atriz não conseguia superar sua autocrítica, nem expressar os sentimentos da sua personagem. Jacques Copeau jogou então, um lenço sobre o rosto da atriz e pediu que repetisse a cena. A atriz, com o lenço no rosto, relaxou seu corpo imediatamente, repetindo a cena com êxito. A partir deste momento, Jacques Copeau explora a máscara como um meio técnico que dá ao ator o controle dos movimentos do corpo e soltura, permitindo-lhe a exploração das suas possibilidades corporais.

Copeau pensa numa máscara apropriada para o treinamento do futuro ator produzindo um estado de neutralidade, de silêncio e tranqüilidade. Este desejo trouxe como resultado, a máscara neutra que conhecemos hoje. Jacques Lecoq (1921-1999) ator, professor e mímico aprofundou o

estudo da máscara nobre, assim chamada por Copeau e que posteriormente Lecoq passou a denominar de máscara neutra. No texto A Máscara neutra, Lecoq comenta:

A máscara neutra é um objeto peculiar. É um rosto, dito neutro, em equilíbrio, que propõe a sensação física da calma. Esse objeto que se coloca sobre o rosto deve servir para experimentar o estado de neutralidade anterior à ação, um estado de receptividade ao que nos cerca, sem conflito interior (1997:41-47).

O ator com a máscara, portanto, movimenta-se com precisão e sem desperdiçar gestos e ações, usando só a energia necessária para executar a ação, sendo este o objetivo dos atores ao tentar interpretar como se estivessem utilizando a máscara. Alem disso, a máscara neutra não é a construção de uma personagem, mas de um estado interior, de calma, de disponibilidade, de sensibilidade, propondo ao ator outro estado na cena, distinto do estado numa interpretação naturalista.