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Entrevista concedida a autora por Paulo Marcello, ator do espetáculo Agreste de Newton Moreno, sob a direção de Marcio Aurélio, da Cia. Razões Inversas, de São Paulo, em julho de 2007.

Paula: Gostaria saber um pouco de seu percurso profissional antes de ingressar no processo de

criação da Agreste.

Marcello: Eu fiz ECA, dois anos em USP. Sou da primeira turma como Joca também. Depois

decidi mudar de universidade e entrei na UNICAMP. Marcio Aurélio dirigiu a montagem Vem...

Senta Aqui ao Meu Lado e Deixa o Mundo Girar, Jamais Seremos Tão Jovens,e a gente fundou

a companhia Razões Inversas, já vai fazer 18 anos. Então eu trabalho com Márcio direto. A companhia tem o objetivo de fazer pesquisa de linguagem, a gente trabalha isso. Foi criado para ser um espaço de pesquisa, então a maioria dos atores que passam pela companhia estudaram com Márcio Aurélio ou que tem alguma formação. Por que Marcio gosta discutir questões filosóficas, estéticas, produção teatral e a arte. Agreste é uma continuidade deste trabalho. A gente trabalhava narrativa, tipo de linguagem, princípios brechtianos. Outras coisas, que a gente vem trabalhando desde o começo da companhia.

Paula: A interpretação então, sempre foi dentro de um conceito de Brecht?

Marcello: Bom, em certo sentido sim. Márcio trabalha bastante Brecht. Mas, o primeiro trabalho

que a gente fez foi uma releitura das ações físicas de Stanislavski, nada de memória emotiva, só ações físicas, a partir disso a gente foi trabalhar outros encenadores do século XX, como Tadeusz Kantor, Grotowski e para ampliar Brecht. Tínhamos a preocupação em fazer um teatro contemporâneo, não do século XIX, com quarta parede, como se fosse aquela realidade. A gente queria um teatro que rompa com isso, que leve ao espectador a participar, ativo, a pensar, e que não seja um espectador passivo. Agreste teve essa preocupação como trazer o espectador junto com a gente, como fazer para que saia de muita preocupação. Como fazer que ele saia de uma cidade como São Paulo, que ele chega aqui, não há lugar para estacionar e obriga-lo ativamente a participar do espetáculo, tira-lo dessa posição confortável, como quem fica na sua sala com o controle de remoto trocando de canal. E que ele fosse transportado, não no sentido de se alienar, mas num sentido dele ser obrigado a entrar num outro tempo poético, outra forma de ver e sair-se daquele patrão cotidiano e fazer que ele fosse ativo e participasse e que as imagens poéticas fossem criadas na mente do espectador.

Paula: Quais foram as ferramentas que vocês procuraram para conseguir essa interpretação? Marcello: Partimos do princípio que nós não somos personagens, nós somos narradores, os

narradores mostram as personagens. Em nenhum momento nas cenas nas quais eu faço a mulher, vocês olham para mim, não tem como ver uma mulher. Eu não posso fazer uma mulher, eu jamais conseguiria fazer uma mulher, isso é uma coisa ridícula. Mas eu sou capaz de fazer a energia feminina e de sugerir isso para o espectador e mostrar alguns aspectos e elementos disso. Quando eu faço isso, eu faço com que o espectador não me veja como homem, vestido de homem, com voz de homem falando, mas que seja transportado para a visão que ele constrói dentro de sua própria mente, eu coloco signos no palco, que levam ao espectador essa visão. E é

engraçado porque isso chega a um ponto que as pessoas acabam me vendo como mulher, mesmo não fazendo uma mulher. Só pela sugestão, pela energia, por que a mulher que esta na mente do espectador é muito mais interessante que qualquer uma que possa fazer no palco. Isso nos deu uma liberdade. Nos primeiros ensaios Márcio nos levou a Republica de Platão, e ele começa a discutir sobre a questão da mimese. E ele fala que quando um orador esta fazendo um discurso, quanto o orador deve imitar ou não o objeto narrado. O Platão era bem moralista, então o narrador ou o orado, ele só deveria imitar os exemplos nobres, mas não deveria nunca imitar os exemplos inferiores como escravos, mulheres, animais. Porque segundo Platão o que você faz, você acaba assumindo, aprende. Então na Republica o ideal dele, os guardas não poderiam fazer imitações, só os nobres. Ele falava da possibilidade de que um narrador poderia imitar em parte aquilo que estava sendo imitado, imitar completamente, ele poderia imitar mostrando que ele não estava de acordo com aquilo que ele estava imitando. A gente também trabalho muito em cima de Walter Benjamin, numa pesquisa que ele tem sobre a narrativa. Sobre a questão da narrativa e como ela vem desaparecendo no começo do século XX, numa sociedade que vive da informação. E nesse sentido uma incapacidade das pessoas de conceberem narrar historias, por que na narrativa você possibilita o julgamento para quem ouve, a informação -você da informação já julgada-. Então o que a gente queria era isso. E as pessoas sentem falta disso, eles precisam disso, e talvez por isso até que os processos narrativos estejam ganhando força novamente, porque é um hábito que as pessoas não têm mais. Eles não se sentam mais como as mulheres quando contavam histórias e bordavam, ou os homens trabalhando e contando historias ou o pastor ficando horas olhando para as estrelas e tocando sua flauta. A sociedade contemporânea não comporta mais, não tem mais, você olha o jornal, a internet, e esta tudo pronto, tudo analisado e já vem a verdade pronta para você, a informação. Então isso foi o principio no qual a gente partiu, então a gente leu o Platão, Benjamim, entre outros, isso nos deu a liberdade que nós não teríamos que representar as personagens e nós poderíamos mostrar em níveis diferentes. Então tem horas que eu faço o narrador, na voz faço a personagem, meu corpo continua sendo narrador. Às vezes, eu faço o contrário, meu corpo é a da personagem, eu mostro como a personagem está fisicamente, mas estou narrando. Eu posso sair, olhar a cena de fora, olhar a cena de dentro, ir narrando o que esta acontecendo, passar personagem para o outro, o outro começa a narrar, eu assumo a personagem, tudo esta construído em cima deste jogo.

Paula: Como foi a criação de partituras de ações?

Marcello: Como fazer esse espectador contemporâneo, sair do tempo urbano contemporâneo e

entrar em outro tempo que a gente fala mito-poético, que é a do mito e a poesia que Agreste propicia. Nos nós debruçamos sobre a primeira parte que é totalmente narrada, e começamos a trabalhar nos 15 minutos da peça. Nós ficamos três meses trabalhando só nessa cena até achar qual era o ponto. E Marcio trouxe o quadro da Queda do Ícaro, que tem a questão do narrador, que tem a civilização e o homem do campo. Ele traz essas referências. Trouxe também, Joyce Beuys que é um artista plástico do século XIX que trabalha instalações sonoras. E então a gente tinha 4 versões diferentes, só lendo, sem ir para o palco, até achar a versão, onde um só falava, dois falavam, ate chegar a esta última versão. Eu começo a desconstruir o texto, e o Joca conta a narrativa na ordem, eu começo a jogar sobre o tempo, ordem inversas, repetições. E isso vai criando espaço poético e a gente foi descobrindo que nesses 15 minutos tem um tempo mítico, que é o tempo onde eles se encontram, que não se sabe quanto é meses, anos, eles se encontra, se reencontram. Depois tem uma quebra que é “em aquela manha ela foi sozinha” e entra o tempo da narrativa que é continuo que é um

Joca começa a narrar no tempo presente como se estivesse vendo a cena e no meio disso eu começo a narrar como se estivesse vendo no passado, depois Joca narra como se estivesse

acompanhando a cena no presente e essas narrativas se misturam criando a sensação de urgência da fuga dos casais no momento preciso. No terceiro momento que é quando eles param debaixo do sol, ecomeçam a desfalecer, e a sentir o desejo, o tesão que eles tem dentro deles.. É essa sensação de calor, e é o tempo curto, mas parece que não tem fim, que ele é um não-tempo. Onde o tempo para, que é do calor, que são eles no meio do sertão, eles começam a desfalecer, e eles começam a sentir aquela paixão entre os dois, então são mudanças temporais muito grandes. Essa terceira parte é toda narrada com pausas, um falando, outro fala uma palavra, outro fala outra. E isso cria sensações no espectador de tempo, a narrativa ela se da não só pelo entendimento das palavras, mas pelas sensações que elas provocam no espectador, e como ela se construí, ela cria a sensação de tempo diferentes. Quando a gente conseguiu passar isso 15 minutos. A gente passou os ensaios e a gente começou a trabalhar a seqüência da peça, trabalhando, construindo as ações, uma a uma, sempre pensando muito objetivamente no que causava no espectador, o que a gente pretendia e como construir isso e ir explorando. Márcio pediu algumas coisas pessoais para colocar e a gente começou a construção.

Paula: Essa construção com os objetos pessoais, tinha uma relação com a memória de vocês? Marcello: Tinha. Joca trouxe o ritual de dobrar quimono que ele tinha do judô, eu trouxe uma

cuia, que tinha ganhado de meu irmão, que era uma lembrança que eu tinha dele, eu trouxe para o espetáculo. E então, a gente foi construindo isso, que eram poucos elementos. Marcio trouxe um candeeiro. A partir desses elementos fomos construindo a cena. E estes objetos também foram referências para a construção das ações físicas.

Paula: Tiveram um treinamento?

Marcello: Naquele tempo estava muito ligado com a nova dança, estava fazendo um trabalho lá.

Márcio sempre trabalhou corpo com a gente, ele trabalhou com Klauss Viana, e eu comecei a trabalhar com Lu Favoreto que tinha um trabalho muito interessante de respiração corporal apoiado no clássico, e ali eu pedi ajuda dela e de Maria Caron. Então a gente além dos ensaios fazia um trabalho de aulas de preparação corporal. É uma coisa que a gente sempre teve na companhia. 15 minutos completamente parado, só falando no microfone, mas para fazer isso o trabalho corporal deve ser muito intenso, ao contrário, não é desconectado é absolutamente físico, mesmo que a gente não se mova, o corpo inteiro tem que estar mobilizado naquela fala. A energia, o pensamento, a respiração. Não é uma fala desconectada, e que só funciona cerebralmente, não. Ela é fisica, mesmo quando parado. O trabalho físico foi fundamental, é todo construído fisicamente, energeticamente. Acho que a questão de achar a energia do feminino e masculino. Joca tem uma energia muito Yang, muito masculina e eu uma energia mais feminina, é muito sutil, um trabalho com uma voz mais suave. Joca tem uma voz mais grave e isso era fundamental, no trabalho das energias.

Paula: Procurou em algum momento neutralidade?

Marcello: A gente estava preocupado em tudo o que fazíamos em termos de expressão -era só

necessários-. Para mostrar aquilo que a gente queria mostrar, era quase como signos, como ícones, quando necessários. Nesse sentido é minimalista, é mostrar só o que é necessário, é evitar uma interpretação que ficasse fazendo, caras, bocas, expressões e emoções. A emoção devia ser mostrada por que era fundamental mostrar essa emoção e por outra parte não tinha uma preocupação de um realismo, naturalismo, as vezes mesmo fazendo a mulher. Tem uma cena do padre com a mulher em que tinha uma discussão, eu começava em agudo e termino em grave, até

terminava a última frase num grave muito masculino. Mas por quê? Para que o público veja o que significa isso, a mulher houvesse fala disso também, eu não tenho a necessidade de “naturalizamento”. Porque produzir uma voz feminina seria falar em falsete, o que levaria o público pelo contrário do que a gente pretendia.

Paula: Tinham preocupação pela limpeza das ações?

Marcello: Sim, uma limpeza, muito rigorosa, era feita. Márcio marcava coisas que eram

movimento, é feito no osso, no rigor, no controle, a questão do posicionamento no espaço, tudo era importante, tudo tinha significado.

Paula: Como era a relação com o colega em cena e com o espaço? Tinha alguma direção do

Marcio Aurélio?Qual era a conexão entre vocês?

Marcello: Era fundamental a relação espacial. Paula: Era rítmica ou era flexivel?

Marcello: Era flexível com relação as necessidades da cena. A gente trabalha com muita

objetividade, no sentido poético, é uma objetividade só absoluta. Marcio usa uma frase “só o máximo da objetividade, para alcançar o máximo da subjetividade poética”, acho, mas o menos assim, acho que é Aristóteles. As relações espaciais são fundamentais, são todas absolutamente desenhadas determinantes da força do palco e as relações da situação. A colocação do dois no meio é uma fileira de pedras paralelepípedos que formam como um muro, um de cada lado e isso se constroem espaço cênico. Esse posicionamento, e a gente não se olha, só numa fala no meio, a gente se olha um para o outro e volta. Essa construção espacial é que cria essas relações de força, de posição, o trabalho é extremamente rigoroso, a construção espacial é importantíssima. Mas, não é o rigor pelo rigor, é um rigor pela necessidade da linguagem da cena, daquilo que a gente quer que aconteça, daquilo que a gente quer que cause no espectador.

Paula: Qual era a maior exigência de Marcio em relação a interpretação?

Marcello: O Agreste é um processo muito natural, muito gostoso, a gente teve um processo com

menos conflito, foi um trabalho muito objetivo, a gente conseguiu botar os egos do lado, e pensar naquilo que a gente queria colocar em cena. Então acho que essa objetividade, que Márcio pedia, é para não fazer aquele trabalho do ator, as vezes o ator se deixa levar pela vaidade, de querer viver as emoções, e a gente não tinha que viver nada, a gente pelo contrário tinha que mostrar. Tinha que ser muito objetivo, para mostrar algo tão poético, tão belo, isso não quer dizer que desprovido de prazer, e beleza. Eu acho que toda vez que a gente se deixava levar pela emoção, Marcio dizia não, não, volta! Nesse sentido o processo era muito diferente.