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Criações e experimentações dos disparadores no filme Elefante

Como salientamos, Deleuze e Guattari (2009) falam do traçado do plano como uma “experimentação tateante”, o que faz com que algumas coisas precisem ser ditas sobre o processo de escolha que fizemos dos disparadores de escrita, selecionados por nosso grupo de pesquisa em longas e calorosas reuniões. O ponto de partida era a leitura das nossas escritas. Tínhamos um princípio metodológico: assistir ao filme e, na surpresa dele, em pleno efeito-choque, escrever com o filme. Usar o filme como estímulo e ativador do desejo de escrita, tal como pretendíamos que os alunos fizessem no curso. E que desejo este método nos despertou... Escrevemos... Depois, percebemos que nossos textos eram traçados de planos de modos de pensar conceitualmente o filme. Escolhíamos o que nos parecia mais potente para dar a pensar. Só, então, criávamos o estilo do disparador de escrita.

No caso de Elefante, uma surpresa: o nome enigmático do filme; uma possível referência ao estranho título da parábola hindu Os cegos e o elefante. Referência esparsa. Durante o trans- correr do filme há apenas duas recorrências à figura do elefante, exibidas em uma rápida passagem da câmera pelo quarto de Alex: a primeira é uma imagem colada à parede do quarto em que há cegos apalpando um elefante; a segunda é a estampa de um enorme elefante desenhado na colcha que cobre a cama do garoto. Como uma versão desta parábola hindu instaurava planos

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potentes para fazer pensar com Elefante, optamos por utilizá-la como disparador de escrita.

Apresentamos abaixo o disparador de escrita e alguns

disparadores de aula produzidos pelos alunos no encontro

subsequente à escrita entre o filme e a parábola.

Disparador de escrita

Parábola hindu — Os cegos e o elefante5

Numa cidade da Índia viviam sete sábios cegos. Certa noite, depois de muito conversarem acerca da verdade da vida e não chegarem a um acordo, o sétimo sábio ficou tão aborrecido que resolveu ir morar sozinho numa caverna na montanha. Disse aos companheiros:

— Somos cegos para que possamos ouvir e entender, melhor do que as outras pessoas, a verdade da vida. E vocês ficam aí discutindo como se quisessem ganhar uma competição. Não aguento mais! Vou-me embora.

No dia seguinte, chegou à cidade um comerciante montado num enorme elefante. Os cegos nunca tinham tocado nesse animal e correram para a rua ao encontro dele. O primeiro sábio apalpou a barriga do animal e falou:

— Trata-se de um ser gigantesco e muito forte! Posso tocar nos seus músculos e eles não se movem; parecem paredes…

5 Parábola de domínio público, disponível livremente na Internet e facilmente

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— Que palermice! — disse o segundo sábio, tocando nas presas do elefante. Este animal é pontiagudo como uma lança, uma arma de guerra…

— Ambos se enganam — retorquiu o terceiro sábio, que apertava a tromba do elefante. Este animal é idêntico a uma serpente! Mas não morde, porque não tem dentes na boca. É uma cobra mansa e macia…

— Vocês estão totalmente alucinados! — gritou o quinto sábio, que mexia nas orelhas do elefante. Este animal não se parece com nenhum outro. Os seus movimentos são bamboleantes, como se o seu corpo fosse uma enorme cortina ambulante… — Vejam só! Todos vocês estão completamente errados! — irritou-se o sexto sábio, tocando a pequena cauda do elefante. Este animal é como uma rocha com uma corda presa no corpo. Posso até me pendurar nele.

E assim ficaram horas debatendo, aos gritos, os seis sábios. Até que o sétimo sábio cego, o que agora habitava a montanha, apareceu conduzido por uma criança. Ouvindo a discussão, pediu ao menino que desenhasse no chão a figura do elefante. Quando tateou os contornos do desenho, percebeu que todos os sábios estavam certos e enganados ao mesmo tempo. Agradeceu ao menino e afirmou:

— É assim que os homens se comportam perante a verdade. Pegam apenas numa parte, pensam que é o todo, e continuam tolos!

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Disparadores de aula6

Precisamos enxergar à nossa volta. Como perceber o todo?

O diálogo é possível. Só que não conduz a nada! A verdade está no meio...

Nunca saberemos o que é um elefante. Paradoxal e sem sentido.

“Elephant in the room”.

Realidade: quebra-cabeça. Infinitas peças. Desmontado! Sentir as diferentes situações, incomoda...

O que é uma chacina?

Em relação aos textos produzidos, é interessante relatar que apenas a metade dos alunos escreventes (dezoito dos trinta e seis participantes) usou em suas escrituras o encontro proposto

entre a parábola e o filme. O texto dos que ignoraram o dispa- rador de escrita aparece circunstanciado pelo comentário, pela

crítica ao filme e, sobretudo, pela expressão de sentimentos e questões pessoais ou divagações que não engendram o traçado de um campo de problematização do pensamento pela e na escrita.

Curiosas e ao mesmo tempo preocupantes foram as refe- rências, nos textos produzidos, ao anormal e ao monstruoso genética ou psicologicamente situados, usadas como explica- ções e razões para a chacina. Na tentativa de expurgar e expiar a violência vivida em Elefante, alguns textos se dirigem à consti- tuição e à decifração das irregularidades dos assassinos, discurso

6 Esses são apenas alguns dos disparadores de aula produzidos pelos alunos

com o filme. Ao todo, foram em torno de trinta. Dentre eles, fizemos uma breve seleção de dez para apresentar aqui, deixando de fora frases que, embora dife- rentemente formuladas, pareciam expressar as ideias contidas nesses dez dispa- radores de aula que trouxemos para cá.

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sustentado pelo afastamento dos jovens da família e da religião e pela deterioração da moral no tempo presente. Ressalve-se que o processo vivido com o filme Elefante aconteceu uma semana após o que ficou conhecido no Brasil como Massacre de

Realengo, ocorrido em 7 de abril de 2011, na Escola Municipal

Tasso da Silveira, no bairro de Realengo, Rio de Janeiro. Portanto,

Elefante foi recebido com ânimos aflorados e grande inclinação

para o julgamento moral.

Apesar de metade dos alunos não utilizar o disparador, e de haver manifestações frequentes em prol de uma escrita livre do filme, pode-se dizer que o uso do disparador de escrita ajuda a engajar um campo de problematização do pensamento, que produz uma diferença significativa em relação aos textos que não usam o disparador. Neste sentido, o regramento da escrita pelo disparador foi condição para experimentação do pensar.

Não houve, claro, criação de conceitos, mas nos textos orientados pelo disparador se evidenciam trechos em que se utiliza a escrita na construção de objetos/problemas para o pensa mento, isto é, um estilo ensaístico de escritura, agenciador e experimentador do pensamento, como se pretendeu com a proposta. É interessante ressaltar aqui o mar de dificuldades levantadas pelos alunos e as reiteradas reclamações à exigência da escrita para participação nos encontros: como diziam, “estavam desacostumados!”.

Com os disparadores de aula, produto de um exercício de contração e potencialização das escritas, houve maior dificuldade. As frases-sínteses refletiram os textos menos comprometidos com o distanciamento crítico, pelo não emprego do disparador

de escrita. Fica patente que um texto sem foco problemático não

agencia a produção de frases potentes: são frases que repetem, reconhecem e relançam a moral da parábola hindu. Dentre aqueles

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que usaram o disparador nas escritas houve também prisão à moral da parábola e muita dificuldade na produção da potência das frases. Os alunos, via de regra, não se comprometiam muito na elaboração do disparador de aula, ou não entendiam o que se queria dizer com o máximo de força e de potência de uma ideia. A invenção do disparador de aula parecia apressada demais.

Os disparadores de aula, de modo geral, traçaram planos de representação da “verdade” entre a parábola e Elefante. Alguns poucos traçaram planos de forma mais elaborada entre a parábola e a linguagem utilizada por Gus Van Sant para pensar, através de Elefante, uma chacina escolar. As dez frases que apresentamos são as que mais fortemente desnaturalizam — e, portanto, inventam e experimentam — uma relação diferen- cial entre o disparador de escrita e o filme. Não são respostas ao disparador, mas atravessamentos e planos de corte que descon- fiam, suspendem e deslocam a parábola. São interceptos entre

Elefante e o disparador, que acenam com ideias, corroborando

a possibilidade de produção de problematização do pensar com o cinema, mediado por instrumentos como os disparadores que propiciam a transdução das afecções vividas pelo filme em problemas para o pensamento.

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