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Ensino, aprendizagem, deficiência e Desenho Universal

O referencial teórico para ensino e aprendizagem, abor dado no Módulo 10, teve fundamentação na Psicologia Histórico-Cultural, inicialmente desenvolvida por Lev Semeno- vich Vygotsky nos anos de 1920 e 1930 na antiga União Soviética, em parceria, principalmente, com Alexander Romanovich Luria e Alexis Leontiev.

Segundo Daniels (2003, p. 24), “Vygotsky abordou a teori- zação das implicações psicológicas dos fatores sociais, culturais e históricos e iniciou o desenvolvimento de metodologias apro- priadas para impulsionar a criação de formas adequadas de

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investigação e intervenção”. Para este autor, o entrelaçamento, para Vygotsky, dos processos de ensino e aprendizagem pode ser explicitada pela palavra russa obuchenie, costumeiramente traduzida como instrução ou ensino, mas, esta envolve tanto as atividades dos alunos quanto as dos professores. Ensinar e aprender são, portanto, processos dialéticos que provocam trans- formações mútuas em todos os envolvidos (DANIELS, 2003).

Tal qual ensino e aprendizagem, “aprendizagem e desen- volvimento estão inter-relacionados desde o primeiro dia de vida da criança” (VYGOTSKY, 1994, p. 110). Porém,

[...] o aprendizado não é desenvolvimento; entretanto, o apren- dizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento vários processos de desenvolvi- mento que, de outra forma, seriam impossíveis de acontecer. Assim, o aprendizado é um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento.

(VYGOTSKY, 1994, p. 118)

A aprendizagem e o desenvolvimento são processos mediados. Vygotsky (1995, p. 95) define mediação como o “meio de que vale o homem para influir psicologicamente, em sua própria conduta, como na dos demais; é um meio para sua ativi- dade interior, dirigida a dominar o próprio ser humano: o signo está orientado para dentro”. Para o autor, os instrumentos psico- lógicos são mediadores de origem social que “estão dirigidos ao domínio dos processos próprios ou alheios” (VYGOTSKY, 1997a, p. 65), envolvendo a “linguagem, as diferentes formas de nume- ração e cálculo, os dispositivos mnemotécnicos, o simbolismo algébrico, as obras de arte, a escritura, os diagramas, os mapas, os desenhos, todo gênero de signos convencionais etc.”.

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Ainda acerca da relação entre aprendizagem e desenvol- vimento, merece destaque a ideia de Zona de Desenvolvimento Proximal, que é a distância ou diferença entre o nível de desen- volvimento real, ou seja, aquilo que a criança consegue fazer por si mesma, com independência, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado pela solução de problemas com ajuda de adultos ou de colegas mais capazes (VYGOTSKY, 1994; 2005). Assim, acreditamos que aquilo que “a criança pode fazer hoje com o auxílio dos adultos, poderá fazê-lo amanhã por si só” (VYGOTSKY, 2005, p. 37) e que o nível de desenvolvimento potencial indica “os futuros passos da criança e a dinâmica do seu desenvolvimento” (Idem, p. 37), o vir a ser.

Trazendo esse conceito para a educação, Wertsch e Tulviste (2002, p. 65) pontuam que a mesma deve “estar mais intimamente conectada ao nível de desenvolvimento potencial do que ao nível de desenvolvimento atual”, adiantando-se ao desenvolvimento (VYGOTSKY, 1994).

Essa concepção redefine o papel do equipamento biológico e da maturação nos processos de aprendizagem e de desenvolvimento, situando-os não mais como elementos básicos ou pré-requisitos.

As propriedades biologicamente herdadas do homem não determinam as suas aptidões psíquicas. As faculdades do homem não estão virtualmente contidas no cérebro. O que o cérebro encerra virtualmente não são tais ou tais aptidões espe- cificamente humanas, mas apenas a aptidão para a formação destas aptidões.

(LEONTIEV, 1978, p. 247)

Do mesmo modo, Luria (2006, p. 194) declara, a partir de seus estudos, que “os processos psicológicos surgem não

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no ‘interior’ da célula viva, mas em suas relações com o meio circundante, na fronteira entre o organismo e o mundo exterior”. Ou seja, nessa perspectiva, o social “não apenas ‘interage’ com o biológico, ele é capaz de criar novos sistemas funcionais que engendram novas formas superiores de atividade consciente” (MEIRA, 2011, p. 112).

Essa concepção é fundamental quando pensamos na Educação Inclusiva, uma vez que rompe com o paradigma de que a criança com deficiência ou com transtornos não tem condi- ções, a priori, para aprender. Vygotsky, ao referir-se a crianças com deficiência intelectual (termo atual), criticou os estudos que atribuíam a elas “pouca capacidade para o pensamento abstrato” (VYGOTSKY, 2005, p. 37), afirmando que uma criança com defi- ciência, abandonada a seu desenvolvimento, não irá aprender e, assim, não atingirá formas mais evoluídas de pensamento abstrato. À escola, espaço fundamental para a aprendizagem dos conceitos científicos, cabe “fazer todos os esforços para encami- nhar a criança nesta direção, para desenvolver o que lhe falta” (VYGOTSKY, 2005, p. 38), “criando técnicas artificiais, culturais, um sistema especial de signos ou símbolos culturais adaptados às peculiaridades da organização psicofisiológica da criança anormal” (VIGOTSKY, 2011, p. 867), como também da criança considerada “normal”.

Nesta perspectiva, podemos citar os recursos didáticos como instrumentos mediadores, que assumem papel relevante nos processos de aprendizagem, uma vez que provocam uma série de novas funções advindas da sua utilização, rompendo com a naturalização do processo ao colocar o recurso como instru- mento psicológico mediador. Isso significa que o recurso didático “recria e reconstrói por completo toda a estrutura do compor- tamento” (VYGOTSKY, 1997a, p. 67), na medida em que “os

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processos psíquicos globalmente considerados [...] estão orien- tados à resolução de uma tarefa” (Idem, p. 67).

Para que o recurso didático possa cumprir sua função mediadora nos processos de aprendizagem e desenvolvimento, o papel do professor é fundamental. Ele é o adulto que planeja e conduz, intencional e sistematicamente, as práticas pedagógicas na sala de aula. Rocha (2005, p. 42) atribui ao professor o papel de mediador pedagógico, tendo em vista sua “orientação deliberada e explícita no sentido da aquisição de conhecimentos sistematizados pela criança e de transformação nos seus processos psicológicos”. Os seja, as ações do professor são valorizadas no sentido da possi bilidade de desencadear tais processos fundantes no desen- volvimento dos alunos a partir da aprendizagem de conceitos.

Para Victor (2009, p. 98) essa compreensão de mediação pedagógica possibilita a nossa intervenção “junto às crianças, em especial às crianças com deficiência, no sentido de promover sua aprendizagem e seu desenvolvimento”.

Para nós, entretanto, há outro requisito fundamental para que o professor e o recurso didático possam mediar processos de aprendizagem e de desenvolvimento inclusivos. Faz-se neces- sário que o recurso e as práticas pedagógicas sejam alicerçados no conceito e nos princípios do Desenho Universal (DU), o qual busca romper com ambientes excludentes, a partir da concepção de contextos inclusivos.

Para que possamos entender a relevância do DU no processo de ensino e aprendizagem, cabe reflexão acerca das concepções de deficiência e de transtornos.

Historicamente a deficiência e os transtornos vêm sendo concebidos pela falta, pela limitação, pela carência. Ao mesmo tempo,

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Todo o aparato da cultura, tanto exterior como relacionado com as formas de comportamento, está pensado para seres humanos normais, psíquica e fisiologicamente. Toda nossa cultura está destinada a pessoas dotadas de certos órgãos, mãos, olhos, ouvidos e determinadas funções cerebrais. Todas nossas ferramentas, toda a técnica, todos os signos e símbolos estão idealizados para um tipo humano normal.

(VYGOTSKY, 1995, p. 310)

Yaroshevsky (1989 apud DANIELS, 2002, p. 19) relaciona esse aparato cultural à constituição da deficiência, ao afirmar que

Um defeito físico é, antes de tudo, uma anormalidade social, e não orgânica, de comportamento. Um defeito físico numa pessoa provoca determinada atitude para com ela no meio das pessoas que a rodeiam. É essa atitude, e não o defeito em si, que afeta o caráter das relações psicológicas com uma criança que tem órgãos sensoriais deficientes.

Em seus estudos acerca da defectologia, Vygotsky referiu-se ao defeito (termo utilizado à época) primário como correspon- dente às limitações individuais, orgânicas do sujeito, e ao defeito secundário, produzido cultural e historicamente, nas relações sociais (VYGOTSKY, 1997b). Nessa perspectiva, a deficiência não resulta única e exclusivamente das características biológicas das pessoas; é constituída histórica e culturalmente.

Para Daniels (2003, p. 74), “Vygotsky preocupava-se que as respostas sociais às pessoas discapacitadas poderiam criar seus próprios problemas”. Ele afirmava que, tendo em vista que “os instrumentos e as práticas culturais têm um efeito formativo no desenvolvimento, os obstáculos à participação são motivos de

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preocupação” (Idem, p. 74). Como solução, apontava para a busca de formas alternativas de participação, “transformando as práticas sociais de modo que não marginalizem” (Ibidem, p. 74).

O Desenho Universal, definido segundo The Center of Universal Design (CUD) como o “design de produtos e ambientes para ser usado na maior medida por pessoas de todas as possíveis idades e habilidades” (CUD, 1988, p. 2), vem pensar nas formas de ampliar a participação das pessoas. Ao questionar a concepção de homem padrão e ampliar a de acessibilidade customizada, afeta a própria constituição da deficiência. Por isso, é um conceito que revoluciona os processos inclusivos, uma vez que concebe o mundo como projetado a priori para as diferenças, que são parte constitutiva da humanidade.

O DU foi desenvolvido, em 1985, na Universidade do Estado da Carolina do Norte, por um grupo de arquitetos lide- rados por Ron Mace, fruto de reflexões acerca da acessibilidade customizada, do trabalho de arquitetos e do movimento das pessoas com deficiência.

Essa concepção propõe que todos os elementos e espaços sejam acessíveis para o maior número de pessoas possível, tenham elas as limitações e possibilidades que tiverem. Significa pensar em um mundo com seus produtos, serviços e ambientes para todos – eis a essência do Desenho Universal.

(KRANZ, 2011, p. 23)

A fim de estruturar o conceito, foram estabelecidos sete princípios para a concepção de produtos e ambientes na pers- pectiva do DU, que são: desenho equitativo, flexibilidade de uso, informação perceptível, uso simples e intuitivo, tolerância a erros,

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exigência de pouco esforço físico, tamanho e espaço para aproxi- mação, alcance, manipulação e uso (PRADO, 2011).

E como seria um recurso didático concebido de acordo com o DU?

Mauch e Kranz (2008) recomendam o uso de: contraste de cores e de conteúdos ampliados para auxiliar a discriminação visual; alto ou baixo relevo; Braille e/ou de descrições; corte diagonal na lateral superior direita para indicar o posicionamento correto do material; materiais e marcadores de fácil preensão; uso de velcro ou imãs para fixação; materiais resistentes, duráveis e de fácil limpeza; LIBRAS.

Entendemos a relevância da discussão desse conceito no contexto da Educação Inclusiva, uma vez que pode garantir a equiparação de oportunidades no espaço da escola, interferindo na própria constituição da deficiência ou da incapacidade do aluno. Porém não basta que os recursos pedagógicos e ambientes da escola sejam pensados na perspectiva do DU. Faz-se neces- sário que as práticas pedagógicas também o sejam, incorporando o conceito e seus princípios e ampliando-os para o nível das mediações, ou seja, fundamentando-se no que tenho chamado de Desenho Universal Pedagógico. Nele, o professor é aquele que cria contextos, instrumentos pedagógicos (e, portanto, psicológicos) e mediações com a intenção de que todos possam participar das atividades propostas em igualdade de condições, de modo que as aprendizagens de cada um e de todos possam avançar ser ressignificadas e ampliadas, garantindo processos de desenvolvimento inclusivos.

A partir desses conceitos, o Módulo 10 foi concebido buscando desafiar os professores com alguns questionamentos: de que maneira conceber e confeccionar recursos pedagó- gicos na perspectiva do Desenho Universal? Quais mediações

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pedagógicas, a partir desses instrumentos, são necessárias e possíveis com vistas à aprendizagem e ao desenvolvimento de todos os alunos? Quais as possibilidades que os recursos pedagó- gicos na perspectiva do Desenho Universal trazem para práticas pedagógicas inclusivas?