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cRIME, cUltURA E JUStIÇA: IDENtIDADE, DIFERENÇA E DESIgUAlDADE EM tORNO

DA MUtIlAÇãO gENItAl FEMININA

mANUELA IVONE CUNhA

UNIVERSIDADE DO mINhO, CRIA-Um (PORtUGAL) IDEmEC/CNRS . FRANçA

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RESUmO

A questão da relação entre crime, cultura e justiça tem sido pensada a títulos diversos e sob diferentes ângulos, mas as diferenças de quadro de abordagem acentuam-se consoante estejam em causa realidades nacionais clássicas ou contextos pluriculturais contemporâneos asso- ciados a situações de pós-colonialidade. Interrogar-se-á esta divergên- cia a propósito da emergência de algumas práticas culturais conotadas com minorias ou comunidades saídas da imigração, práticas essas susceptíveis de serem perseguidas como crime (através da lei geral ou da previsão de tipo legal específico) e que parecem colocar novos de- safios aos aparelhos legislativos e judiciários. Porém, ainda que nalgu- mas delas seja iniludível a tensão entre cultura e universalismo liberal, a resposta a tais desafios é especialmente vulnerável às armadilhas a que induz um debate público habitualmente organizado em dicoto- mias simples e extremadas tais como cultura / indivíduo; relativismo / universalismo; diferença cultural / direitos humanos. A partir de uma problematização da noção de cultura e de uma complexificação destas dicotomias, procurar-se-á focar algumas dessas armadilhas, as desi- gualdades que elas escamoteiam e o exacerbamento identitário a que convidam, gerando o risco de cavar clivagens colectivas em lugar de restaurar a multiplicidade de fios que tornam possível a convivência.

Se numa arrumação esquemática dos modos correntes de pro- blematizar a relação entre crime, cultura e justiça tivermos em conta perspectivas clássicas sobre a criminalidade, dese- nham-se dois quadros de abordagem da questão. Um tem por referência uma realidade nacional relativamente homogénea e entendida como um só colectivo, quanto muito internamen- te segmentado em categorias subculturais “desviantes” (para usar um léxico próprio deste paradigma), mas sem que estas categorias ponham em causa o pressuposto de um guião cul- tural e normativo comum em que não deixariam de estar en- globadas: os próprios termos “subcultura” e “desvio” mais não fazem do que indicar uma simples variante ou o afastamento de uma parte em relação ao conjunto a que pertence, conjun- to este cuja unicidade tais termos acabam assim por reiterar. Uma das questões típicas formuladas nesta perspectiva é a de saber como se vê então diminuída a influência do guião cultu- ral dominante a ponto de definições favoráveis à violação da lei assumirem prioridade. Foram várias as respostas teóricas a estas perguntas, como a clássica teoria da associação diferen- cial, de Donald Sutherland (1947), segundo a qual tornar-se delinquente decorre de um excesso de associações com situa- ções, pessoas e valores desviantes, quando comparadas com as associações aos vectores de conformidade. A ideia é a de

que se delinqui porque se é envolvido em “sub-culturas” que normalizam o desvio e não como reacção a oportunidades blo- queadas, como o propunham as perspectivas de tipo merto- niano (merton 1957). Seria assim que, por exemplo, da mesma maneira que rapazes das chamadas “classes populares” pode- riam delinquir rotineiramente como efeito de um processo de crescimento onde seriam postos em prática certos valores de masculinidade (miller 1958, Cohen 1955), também empresá- rios poderiam desenvolver determinadas rotinas no processo de condução dos negócios que acabariam por trivializar, aos seus olhos, os crimes económico-financeiros, ao mesmo tem- po que não deixariam de encarar os crimes de rua dos pobres como um problema grave e premente (Sutherland 1949).

Num segundo quadro -- e mantendo de momento a arru- mação esquemática antes de a rever adiante à luz da proble- matização da noção de cultura --, o pressuposto que informa a abordagem da equação entre crime e cultura não é já o da existência de um só colectivo assente nos mesmos códigos cul- turais, incluindo-se nele as variantes “desviantes”, mas antes o da co-existência de vários colectivos com códigos culturais diferentes. Do “desvio” enquanto desconformidade passar-se- -ia então à “diferença” enquanto singularidade. Este quadro é o que preside, por exemplo, à definição dos chamados “deli-

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tos culturais” -- aqueles que decorrem de normas culturais em contradição com normas penais (Foblets 1998, boeck 2001) -- e reporta-se às sociedades pluriculturais contemporâneas configuradas por situações de pós-colonialidade e por movi- mentos migratórios potenciados pela globalização.[57] Neste

tipo de casos, incriminadores e incriminados apresentar-se- -iam por conseguinte alinhados em diferentes colectivos sob a alçada do Estado, sendo a prática de um crime imputada a uma lógica cultural e a sua repressão a uma outra.

Este quadro de abordagem não deixa de ser moldado por noções que estabelecem correspondências lineares e sinoni- mias monolíticas entre categorias étnicas e unidades culturais (fazendo equivaler grupos étnicos a “culturas”) e por visões- mosaico do facto multicultural como um conjunto de blocos separados e distintos, em que a cada comunidade correspon- deria uma cultura homogénea. Em segundo lugar, tal quadro é objecto de uma crescente articulação com o discurso dos di- reitos humanos e tende cada vez mais a ser configurado por ele. Dadas estas duas tendências, e sem escamotear a tensão iniludível existente nalguns casos entre cultura e universa- lismo liberal, a resposta aos desafios colocados por algumas práticas culturais conotadas com minorias é bastante vulnerá- vel às armadilhas de um debate público organizado em dico- tomias simples e extremadas tais como cultura vs. indivíduo; relativismo vs. universalismo; diferença cultural vs. direitos humanos.

Interpretando o tema da conferência como um convite a pensar os variados fios que tornam possível a negociação da convivência, ou, inversamente, as clivagens que a dificultam, usarei o paradigmático e muito debatido caso designado por “mutilação genital feminina” (mGF) para procurar problema- tizar essas dicotomias e algumas das suas armadilhas, as de- sigualdades que escamoteiam e o exacerbamento identitário que induzem.

O leque de consequências possíveis de operações genitais sub- sumidas na expressão “mutilação Genital Feminina” (mGF) na saúde sexual e reprodutiva das mulheres faz destas práticas um problema em que há que intervir e modificar. “Como”, quais as modalidades de intervenção mais adequadas, é já uma ques- tão que não é alheia à caracterização do problema em si. Por razões metodológicas, mas também éticas e pragmáticas, essa caracterização não deve abstrair-se dos contornos culturais e políticos que adquire tanto no universo de quem intervém nele como no dos destinatários dessa intervenção (Cardeira da Sil- va 2007). tal inclui, pois, quer os vários contextos onde essa prática tem lugar, quer os da mobilização contra ela -- uma mobilização de resto cada vez mais enquadrada e padroniza- da por um caudal de directivas, medidas, petições e retóricas emanadas de uma série de organismos internacionais como a OmS, UNICEF, UNFPA, UE, ONU, entre outros (ibidem: 17).[58] Uma tal formatação, positiva em eficiência e projecção

global, mas potencialmente contraproducente em adequação e eficácia quando faz tábua rasa de especificidades e experiên- cias locais e individuais, repercute-se também no modo como marca as agendas públicas de diferentes países, seja qual for a expressão real do fenómeno em cada um. No caso de Portugal, por exemplo, a atenção mediática e política de que o problema da mGF foi objecto a partir de 2002, motivando até um pro- jecto-lei visando a sua criminalização específica (e ao qual vol-

57 trata-se portanto de um quadro algo diverso daquele que coloca lado a lado diferentes concepções do direito e da justiça, como sucede em contextos coloniais clássicos ou outros que configuram situações de pluralismo jurídico (e.g. Comaroff 2004, Sousa Santos 2003). 58 Para um vislumbre dos que continuam a

produzir-se recentemente, ver APF (2009).

tarei)[59], não foi espoletada pela envergadura de tal prática no

país, dimensão essa residual quando comparada com outras realidades europeias.[60] Em contraste com outros problemas

sociais com uma amplitude sócio-histórica bem mais expressi- va em Portugal, como a violência doméstica - também ela com uma dimensão de género e que só em anos recentes começou a ser objecto de um sobressalto cívico e mediático da mesma ordem --, a visibilidade pública da mGF irrompeu assim so- bredimensionada por relação à sua dimensão real. Não se tra- ta com isto, sublinho, de menorizar a importância da questão, que não decorre da sua expressão estatística, mas de sim de atender ao modo como a sua formulação é formatada, em pri- meiro lugar, pela produção e difusão globalizada das agendas de intervenção.[61]

Este sobredimensionamento, além disso, não terá sido alheio ao facto de essa prática surgir “islamizada, barbarificada, tri- balizada” (Cardeira da Silva: 2007: 19) na percepção pública, logo como uma realidade exótica e “exógena” e assim dissocia- da de realidades “endógenas” bem mais familiares e “norma- lizadas” de violência contra mulheres e crianças. Nas agendas em causa, a formulação do problema cristaliza-se quase sem- pre em simplificações e selecções que, em lugar de enunciarem com clareza linhas essenciais e verdadeiramente universalis- tas de protecção dos direitos humanos, não só se arriscam a torná-las menos operantes nos fins visados, como traçam, em vez disso, novas clivagens culturais que reinstituem a defini- ção da diferença como barbárie e potenciam mais exclusão -- quando não fornecem um ponto de apoio à legitimação da mais crua xenofobia. Pois que outra coisa se não “bárbaras” se- rão as comunidades que “torturam” meninas e as colocam em risco de vida com o único propósito de lhes suprimir o direito ao prazer e subordinar para sempre o seu corpo e sexualida- de à mais arcaica dominação patriarcal? Enunciada a questão nestes termos, nem o mais impenitente relativista deixaria de reconhecer aqui a evidência de um limite à tolerância a não transpôr.

Antes de complicar um pouco este enunciado, gostaria de fa- zer duas observações preliminares para desminar o registo de leitura dessa mesma complexificação e para balizar o lugar em que me posiciono num terreno de debate muito polarizado e carregado de imputações ideológico-morais -- ainda que a viva polarização que o domina seja por vezes mais retórica do que testada no terreno das situações concretas.

Em primeiro lugar, além de ter por inequívoco o princípio de protecção das crianças, partilho resolutamente do entendi- mento de que os portadores dos direitos humanos são indiví- duos e não categorias colectivas, “comunidades” ou “culturas”. São os primeiros que “têm” direitos, não as segundas -- a não ser para fins de protecção de direitos individuais que sejam negados na base da pertença a essa categoria colectiva. tal não significa, porém, postular uma natureza humana universal per- sonificada em indivíduos isolados e pré-sociais. Não existe tal coisa, a não ser enquanto abstracção. Como o coloca terence turner, a “‘humanidade’ não é uma propriedade do indivíduo considerado independentemente das relações sociais, mas sim uma qualidade construída por essas relações (2007: 57)”.[62]

59 maria Cardeira da Silva (2007) caracteriza em pormenor o contexto em que surgiu um projecto elaborado no desconhecimento completo da base sociológica, demográfica e cultural sobre a qual se procurava legislar, e analisa os seus contornos políticos e culturais. 60 Para uma avaliação possível, a partir de

contextos clínicos, ver Gonçalves (2007).

61 Ver, a este respeito, os vários paralelismos discerníveis com a construção dos dispositivos de combate à droga à Portugal (Agra 1993). 62 tradução minha.

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A inevitável dimensão colectiva dos direitos individuais não pode pois ser escamoteada, sem que ela capacite “comunida- de” ou grupo algum a anular os direitos dos seus membros in- dividuais ou a desenvolver a identidade e os valores próprios a expensas de outros grupos e de indivíduos a quem se impede um desenvolvimento autónomo e distinto (ibidem : 60, 1997). Decorre daqui que uma “tradição” cultural não pode ser prote- gida por si mesma em detrimento dos direitos dos indivíduos, do mesmo modo que, se estes últimos têm direito a resistir às normas e expectativas sociais e devem poder fazer escolhas, tão-pouco devem ver estes direitos diminuídos pela circuns- tância de se identificarem ou serem identificados com uma determinada “tradição”.

Em segundo lugar, tal como a maioria dos antropólogos, não comungo da infausta e justamente criticada variante moral do relativismo cultural a que aludi, segundo a qual seriam válidos quaisquer valores e defensáveis quaisquer práticas na medida em que tivessem sentido nas comunidades que os perfilham e fossem aí vividos como tradição. Esta variante extrema do relativismo deixa assim entrever uma outra noção não menos obsoleta, da qual ela é indissociável: a de “cultura” entendi- do como um todo fechado, uniforme e unanimista, já que tal perspectiva abstrai à partida de diferenças de poder, relações opressivas e eventuais conflitos internos em torno desses va- lores (e.g. entre homens e mulheres, entre velhos e novos…). A antropologia mostrou há muito que as realidades culturais são bem mais dinâmicas e menos coerentes e do que o pres- supõem este e outros entendimentos vulgarizados de cultura. mas se há muito os antropólogos rejeitaram este tipo de pers- pectivas e foram os seus primeiros críticos, em contrapartida não abdicam de um relativismo descritivo e metodológico in- dispensável para analisar e perceber as diferenças culturais -- para torná-las compreensíveis, não no sentido de “justificá- veis” ou “toleráveis”, mas no sentido de “inteligíveis”.

É pois neste registo que focarei de seguida alguns aspectos da excisão feminina, procurando tanto quanto possível evi- tar quer os juízos apriorísticos, quer as distorções induzidas pela exotização, isto é, uma comparação apostada em realçar apenas diferenças, sem levar em conta semelhanças. E mesmo que o exercício a tentar não seja o de tornar familiar o que é estranho e estranho o que é próximo e familiar, há pelo menos que começar por situar no contexto mais geral das interven- ções de modificação genital, quaisquer que elas sejam, uma prática que não se limita ao género feminino, a universos ét- nicos e culturais remotos e a geografias longínquas. Ela afecta também o género masculino e realiza-se há muito nas mais variadas coordenadas, incluindo euro-americanas, e de acor- do com as mais variadas racionalidades: rituais, cosméticas ou médico-profiláticas. A este propósito, aliás, é de não assumir à partida como óbvio e neutro o corrente enquadramento pú- blico do problema e a dualidade de perspectivas que o mar- ca, assente numa separação categórica entre as intervenções sanitárias, realizadas em contexto hospitalar, e aquelas cono- tadas com motivações culturais, como se a racionalidade por que se pautam as cirurgias genitais profiláticas ou correctivas estivesse acima de lógicas culturais e, inversamente, as rituais não pudessem exprimir propósitos profiláticos, estéticos e de correcção de anomalias. tanto numas como noutras trata-se de modelar o corpo à luz de concepções de pessoa, de sexo/gé- nero, fazendo “acertos” na biologia e ajustando as concepções biológicas a esses modelos.

Considerando, em primeiro lugar, as intervenções genitais rituais do ponto de vista das noções que as estruturam, sem olhar para já à sua variável inocuidade e impactos na saúde, um enfoque isolado na excisão feminina é inadequado não só

no plano analítico, como no desenho de medidas e programas de intervenção. Assim é pois, nos universos culturais em que ocorre, coexiste sistematicamente com a circuncisão mascu- lina e forma um binómio com ela, dispondo-se, consoante os casos, em simetria absoluta ou mostrando correspondências e paralelismos vários entre as duas instituições (e.g. Abu-Sa- lieh 1994, brett-Smith 1997, Degregori 2001, Fainzang 1985, Griaule 1965, Kennedy 1970, maertens 1978, Sindzingre, 1979). Apesar das múltiplas variações contextuais, nesses universos o estatuto indefinido das crianças como seres so- ciais decorre de se entender possuírem ainda aspectos anató- micos dos dois sexos. Os orgãos sexuais femininos estariam representados nos homens pelo prepúcio e os masculinos nas mulheres pela parte externa do clítoris. É mediante a remoção de um e de outro nos rituais de iniciação que se dará a mascu- linização dos rapazes e a feminização das raparigas e poderão ambos assumir o estatuto sexual adulto. trata-se em todo o caso de acentuar o dimorfismo sexual, isto é, de sublinhar as diferenças entre homens e mulheres e eliminar qualquer am- biguidade anatómica ou elemento conotado simbolicamente com o sexo oposto. Nestes contextos circuncisão e excisão são por conseguinte processos culturais complementares e até certo ponto homólogos em termos rituais e simbólicos. mas são, além disso, intervenções equiparáveis nas valências hi- giénicas e estéticas que lhes são também atribuídas. tanto a pele que reveste a glande do pénis como a cobre a do clítoris favoreceriam a acumulação de sujidade e de odores que po- tenciariam infecções, doenças sexualmente transmissíveis e inflamações ou adesões dolorosas à glande. Para as mães, a decisão de removê-la nas filhas tende por isso a apresentar-se tão óbvia como para o caso dos filhos, tratando-se de zelar para que tanto uns como outros possam ter genitais saudá- veis e esteticamente apelativos. Surge-lhes assim como um contra-senso impedi-lo nas raparigas, mas não nos rapazes (Ahmadu 2009).

As noções de impureza e sujidade aqui implicadas podem de- certo ser remetidas para um plano puramente simbólico, como “matéria fora do lugar” (Douglas 2002 [1996]). A ser assim, contudo, a mesma leitura seria extensível a racionalizações, formuladas em termos precisamente equivalentes quanto à prevenção sanitária e à promoção da higiene, que envolvem as circuncisões masculinas médicas, não religiosas, realizadas ro- tineiramente no âmbito dos cuidados neo-natais em universos clínicos euro-americanos, especialmente nos EUA, onde têm uma incidência muito elevada.[63] A naturalização progressiva

desta prática como medida profilática genérica nem por isso apaga das suas origens, em finais do século XIX, a marca cul- tural da moral vitoriana na medicina, com a diabolização do prepúcio e dos malefícios da masturbação (Gollaher 1994). Nem anula, no presente, as motivações culturais de ordem es- tética - de um padrão estético do sexo masculino - que em boa parte dão conta da persistência de uma prática hoje em dia considerada não só desnecessária do ponto de vista terapêuti-

63 Ver Degregori (2001). Inclui-se aqui o argumento médico segundo o qual seria uma forma de prevenir a contaminação pelo VIh, argumento também utilizado, por exemplo, em contextos árabes em relação à excisão feminina. Assim se vão, pois, incorporando ad hoc lógicas várias em que se fundem paulatinamente discursos de higiene e concepções culturais ao longo de uma trajectória historicamente constituída (Abu-Salieh 2006). No caso dos EUA, cerca de 80% dos homens são circuncidados. tendo apenas em conta as cirurgias realizadas em contexto hospitalar, são submetidos a esta cirurgia a maioria dos recém- nascidos do sexo masculino, com maior incidência para a população “branca”. Apesar disso registou-se um declínio abrupto e acentuado desde os anos 1990, quando incidia sobre 2/3 dos nascituros, baixando para menos de metade em 2009 (NYt 2010).

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co-sanitário, mas cuja inocuidade e benignidade se encontram seriamente em questão. tal decorre do desenvolvimento dos conhecimentos quer sobre a complexidade anatómica, funcio- nal e sensorial do prepúcio, quer sobre os múltiplos riscos e efeitos adversos a curto, médio e longo prazo associados à sua remoção.[64] Além disso, a vascularização e enervação comple-

xa deste órgão faz com que a chamada circuncisão profilática do recém-nascido seja também ela susceptível de representar uma experiência dolorosa e traumática, pois só muito recen- temente começou a ser realizada com cobertura analgésica, sendo mesmo assim questionada a eficácia do tipo de proce- dimentos utilizados na supressão da dor (CIRP 2001, taylor et al 1996, Cold e taylor 1999, hammond 1999 cit. in Degre- gori 2001: 35-38). tal tem levado a que o debate sobre este tipo de intervenção - a partir do momento em que é nele re- posicionada como uma amputação electiva de um órgão são da anatomia humana, realizada sobre alguém em situação de vulnerabilidade e sem o consentimento do próprio -- se des- loque paulatinamente do domínio médico para o bioético, o jurídico e o dos direitos humanos (ibidem: 46). E levou a que a designação “mutilação Genital masculina” faça agora entrada no debate, ainda que incipientemente, mas permitindo já um vislumbre de como é susceptível de configurá-lo, inclusive em efeitos tão espúrios e contraproducentes como alguns daque- les induzidos pela adopção de terminologia análoga na versão