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Os limites territoriais do Brasil com a Bolívia foram acordados em razão da necessidade de resolver questões de várias naturezas e que foram surgindo ao longo do tempo. Os primeiros acordos registrados entre o Brasil e a Bolívia foram os que estabeleceram regras para tratar de questões de limites territoriais, sobretudo a partir do século XIX. Esses tratados tiveram importância na consolidação dos limites e contribuíram para resolver os conflitos fronteiriços entre os dois países. Ao longo dos séculos seguintes, as relações entre os dois países foram além dos acordos de cunho territorial, tendo-se identificado extensa lista de ações que foram definidas nas relações bilaterais para resolverem questões pendentes entre os dois países. Apesar do vasto número de acordos estabelecidos entre o Brasil e a Bolívia, vários deles não foram plenamente consolidados.

A estruturação das Relações Bilaterais entre os dois países remontam o século XIX e foram defendidas nos acordos, projetos e programas que estruturam as relações transfronteiriça entre o Brasil e a Bolívia. A partir da independência de suas metrópoles, Portugal e Espanha, sendo que na emancipação das ex-colônias, Brasil (1822) e da Bolívia (1825), as questões fronteiriças ganharam conotações diferenciadas que exigiam novas negociações e redefinição de seus limites. Os principais acordos que foram elaborados para resolver questões de limites entre os dois países, foram: Tratado de Ayacucho, Tratado de Petrópolis (que teve apensado o Tratado de Natal para resolver as pendências do tratado de Petrópolis) e as Notas Reversais.

Ao longo das relações entre os dos dois países, foram estabelecidos vários acordos para atender a necessidades conjuntas de temas variados, como os de comércio e migração, são alguns exemplos, conforme a relação dos principais acordos no quadro 2. Os acordos, tratados e programas que teve implicações nas relações fronteiriças entre o Brasil e a Bolívia, foram: Tratado de Extradição; Tratado sobre Vinculação Rodoviária; Acordo sobre Cooperação Sanitária; Convênio para a Preservação; Conservação e Fiscalização dos

Recursos Naturais nas Áreas de Fronteira; Acordo por Troca de Notas, relativo a criação dos Comitês de Fronteira brasileiro-bolivianos e; Acordo por Troca de Notas para a Supressão de Visto em Passaportes Diplomáticos e de Serviço e comum. Da cronologia dos principais acordos de limites e das relações bilaterais entre os dois países relacionados no quadro 2, foram observados os que estabeleciam implicações na área do recorte fronteiriço.

Quadro 2 – Cronologia das Relações Bilaterais entre o Brasil e a Bolívia.

Fonte: Ministério das Relações Exteriores. Bolívia. Cronologia das Relações Bilaterais. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/. Acessado em: 02 jul. 2010.

Ano Acordos e projetos entre o Brasil e a Bolívia 1825 Mato Grosso incorpora a província de Chiquitos. D. Pedro

I declara o ato nulo.

1867 Tratado de La Paz de Ayacucho estabelece linha Madeira- Javari como fronteira Comum.

1872 Chile e Bolívia rompem relações diplomáticas. Brasil representa Bolívia em Santiago.

1879 Início da Guerra do Pacífico. O Brasil permanece neutro. 1887 Tratado de Amizade, Comércio e Navegação, que, todavia

não é aprovado.

1899 Ex-diplomata espanhol Luís Galvez R. Arias proclama a independência do Acre.

1902 Revolução Acreana de Plácido de Castro (60 mil brasileiros opõem-se ao Governo boliviano e arrendamento ao norte-americano Bolivian Syndicate). 1903 Modus vivendi sobre o Acre é assinado com a Bolívia

para cessação das hostilidades.

1903 Tratado de Petrópolis. Acre é incorporado ao Brasil, que paga indenização de 2 milhões de libras à Bolívia e se comprometeu a construir ferrovia Madeira-Mamoré. 1958 Acordos do Roboré (exploração de petróleo, obras

ferroviárias e cooperação econômica).

1969 Tratado da Bacia do Prata (Argentina, Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai).

1973 Acordo para construir gasoduto entre Santa Cruz de 117a Sierra e a refinaria de Paulínia – SP.

1992 Acordo de Compra de Gás Natural Boliviano. Construção de gasoduto de 3 mil km.

1997 Acordo por troca de notas, para a criação dos comitês de fronteira boliviano-brasileiro.

2003 Acordo para Restituição de Veículos Automotores Roubados ou Furtados.

2004 Ingresso e Trânsito de seus Nacionais em seus territórios. 2005 Acordo sobre Regularização Migratória.

2006 Bolívia regulamenta nacionalização do setor de hidrocarbonetos.

2009 Inauguração de dois trechos do futuro Corredor Interoceânico Brasil-Bolívia-Chile. Aprofundam as discussões sobre infra-estrutura regional, narcotráfico e comércio bilateral.

O primeiro acordo estabelecido, que tratou das questões de limites do Brasil e da Bolívia, foi o Tratado de Ayacucho em 1867. Esse acordo definiu as relações de Amizade, Limites, Navegação, Comércio e Extradição. Tal tratado foi promulgado pelo DECRETO N. 4280, de 28 de novembro de 1868. No acordo o Brasil pretendeu empurrar a linha divisória mais para o sul, estabelecendo que o ponto inicial da fronteira fosse agora a confluência dos rios Beni e Mamoré, foz do rio Madeira. Ressalta-se que, os termos do acordo ao descrever a linha demarcatória mostravam imprecisão na localização dos limites. Além de tratar da questão relativa ao limite, o Tratado de Ayacucho em seus 30 artigos apontou para a promoção da paz, da intenção de promover a comunicação e o comércio pela fronteira comum e pelos rios na parte que pertencesse a cada um dos países, de modo que se assegurasse a amizade que os ligava. Esse dispositivo está presente no I artigo do Tratado, que traz a redação: “Haverá perfeita paz, firme e sincera amizade entre sua Magestade o Imperador do Brazil, seus successores e subditos e a República de Bolívia e seus cidadãos”. O segundo artigo trata dos limites territoriais, onde os dois países “concordam em reconhecer, como base para a determinação da fronteira entre os seus respectivos territórios, o uti possidetis, e, de conformidade com este princípio [...]” (DECRETO N. 4280, de 28 de novembro de 1868)53.

A imprecisão no Tratado de Ayacucho, que fixava o limite sem, contudo delimitá-los, foi um dos aspectos que fundamentou o conflito territorial entre o Brasil e a Bolívia pela área de, aproximadamente 191 mil km². Aliado ao aspecto de localização da linha dos limites, outras questões foram relevantes para o levante da “questão do acre”, denominação dada pela historiografia brasileira (GARCIA, 2009, p. 189). Entre elas: a necessidade por insumo (a matéria prima borracha) para atender a produção da segunda Revolução Industrial, a seca no nordeste do Brasil e a consequente ocupação da região por migrantes nordestinos e a política externa boliviana que se desenvolvia na região.

No período industrial, a descoberta do processo de vulcanização por Charles Goodyear em 1839, a borracha natural passou a ser fundamental na produção de vários artefatos engendrados pelo processo de industrialização do final do século XIX, principalmente os de aplicação na então incipiente indústria automobilística. A necessidade da matéria prima da borracha para o desenvolvimento de novos produtos foi se avolumando e elevou a exploração do látex das seringueiras amazônicas. Esse advento levou a região a ser ocupada por migrantes nordestinos que fugiam da seca e se estabeleciam nas áreas de maior concentração de seringais, sem que fossem observados os limites territoriais entre o Brasil e a Bolívia (OSÓRIO, 2007). A ocupação indiscriminada da região deveu-se a imprecisão dos limites

demarcados no Tratado de Ayacucho e levou a assinatura de outro documento que reconhecia como boliviana quase toda área que corresponde ao atual estado do Acre. “A região ficou sob o império da lei boliviana, situação que provocava, entre outras coisas, a perda para Brasil dos impostos de exportação da borracha. [...] não foi bem vista nem pelos seringueiros e comerciantes brasileiros, nem pelo estado do Amazonas” (OSÓRIO, 2007, p. 84).

Os interesses dos estados da região norte do Brasil, na manutenção da área sob domínio boliviano, determinou a rebelião dos brasileiros e na expulsão do governo boliviano da área. Apesar da rebelião de 1899 e, do estabelecimento de brasileiros e da proclamação de um estado independente “o governo brasileiro mantinha-se respeitoso ao Tratado de Ayacucho, reconhecendo o direito da Bolívia sobre a região embora não demarcasse os limites” (OSÓRIO, 2007, p. 85). A posição do governo brasileiro no afastamento do conflito entre seringueiros brasileiros e bolivianos, e do reconhecimento da área como boliviana tem modificação legítima no aparecimento do Bolivian Syndicate em (1901), para a gestão dessa parte do território. Essa empresa constituía-se “uma chartered company semelhante àquelas que operavam na África e na Ásia na fase inicial do processo de colonização daqueles continentes, no século XIX” (Garcia, 2009, p. 193, grifo do autor).

A partir do arrendamento do território do atual Acre ao sindicato, as autoridades brasileiras passam a se opor a soberania boliviana sobre aquelas terras. Para o governo brasileiro o arrendamento da região, rica na exploração de borracha ao Bolivian Syndicate, poderia ter implicações na soberania dos países na América do Sul, como a introdução de mecanismos clássicos de colonialismo ao desempenharem funções de Estado na região e, ser controlada por americanos e ingleses (GARCIA, 2009; OSÓRIO, 2007). A materialização do modelo das chartered companies poderia introduzir no continente sul-americano ações semelhantes do colonialismo africano. Segundo Garcia (2009, grifo do autor), a preocupação do Brasil na implantação do Bolivian Syndicate tinha fundamento:

Toda essa preocupação do Brasil era corroborada pelo fato de que os poderes com que o Bolivian Syndicate estaria investido lhe dava o caráter de um verdadeiro Estado: poder para arrecadar impostos, poder de polícia, poder para armar embarcações para patrulhar os rios da região, pode para fazer concessões de terras nas regiões ainda não ocupadas, poder de concessões sobre minas e poder de concessão de navegação às embarcações que cruzassem os rios do território. (p. 200, grifo do autor).

A indefinição na ocupação da região pelo sindicato seria uma das preocupações centrais da política externa do Brasil que centravam-se nas “razões de segurança nacional, uma vez que o acesso aos rios do Acre se dava pelas águas nacionais e a ameaça estrangeira à

soberania brasileira na região amazônica sempre foi um assunto sensível na área federal (militar e diplomática)” (OSÓRIO, 2007, p. 86). Diante das constatações das medidas a serem tomadas pelo Brasil, diante dos desdobramentos da presença do sindicato na região, duas frentes de ação se desenvolveram em relação a questão do Acre. A primeira ação era da diplomacia brasileira que tentava desarticular a implantação do sindicato e a outra frente tratava de articular uma reação armada. O levante armado dos brasileiros venceu o exército boliviano em diversas ocasiões até a completa rendição. Nesse intervalo de tempo o governo brasileiro assinou uma trégua para revolver pacificamente as questões relativas aos limites territoriais, conforme relatado por Osório:

Procurando evitar uma provável guerra, Brasil e Bolívia assinaram em La Paz, a 21 de março de 1903, um “modus vivendi” que regulou a situação do território até a solução da questão de limites. Permitia ao Brasil ocupar militarmente o território litigioso, bem como administrá-lo, ficando sua porção meridional sob a jurisdição de um governador e sua porção setentrional sob a jurisdição do General Olímpio da Silveira, enquanto a Bolívia ocuparia o território ao sul do paralelo 10º 20' [...]. (2007, p. 86, aspas da autora).

Esse foi um largo passo para a instrumentalização do arbitramento do Tratado de Petrópolis, que fora finalizado após várias reuniões para a definição dos acordos. Em síntese o tratado estabelecia a anexação ao Brasil de uma área, aproximada de 191 mil Km². Em troca o Brasil cederia à Bolívia pequenas áreas em Mato Grosso e Amazonas, se comprometia a construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré e a pagar dois milhões de libras esterlinas. Segundo Osório (2007), “O Tratado representou uma vitória expressiva da diplomacia brasileira e, entre outras coisas, impediu que grupos estrangeiros, a serviço de uma organização internacional criassem uma cabeça-de-ponte na região, para futura exploração de matérias-primas” (p. 87). Essa condição ficou claro na mudança de posição, assumida pela política externa estadunidense para a América Latina, devido às articulações que se desenvolveram em torno da questão o Acre.

Buscando a resolução completa da questão da fronteira entre o Brasil e a Bolívia, na região amazônica, os aspectos das negociações pouco definidos nos tratados anteriores, foram celebrados no Tratado de Natal em 1928. Nele coube a complementação da definição da fronteira comum nos trechos já previstos nos tratados anteriores como o Tratado de Amizade, Navegação, Limites e Comércio (1867) e Tratado de Petrópolis (1903), mas que permaneceram abertos. O Tratado de Natal buscou melhor caracterização dos trechos já demarcados e ainda a determinar o melhor modo de execução das obrigações decorrentes do

Tratado de 1903, referente a ligação ferroviária entre o Brasil e Bolívia. Para tanto, o artigo III54 do tratado,

[...] previa inspecionar toda a linha de fronteira, reparar antigos marcos danificados, levantar novamente os que houverem caído, escolher pontos para maior clareza da linha divisória e, das respectivas posses dos dois países deverão ser colocados novos marcos, em suma, efetuar todas as operações de demarcação que forem necessárias na mesma linha de fronteira. (TRATADO DE NATAL BRASIL/BOLÍVIA, 1928).

Os compromissos que não foram plenamente atendidos nos acordos no Tratado de Natal, foram delineados nos Tratados de Vinculação Ferroviaria entre Corumbá e Santa Cruz de la Sierra e, como complemento a ele, o Tratado de Aproveitamento do Petróleo Boliviano, em 1938. No Tratado de Natal foi acordado que a conexão da fronteira brasileira-boliviana ocorreria pela construção de uma rodovia que, conforme o novo acordo, o de Vinculação Ferroviaria entre Corumbá e Santa Cruz de la Sierra, seria substituída por uma ferrovia. A nova rede de transporte foi considerada mais atraente para o governo boliviano pelo fato de que, o empreendimento seria garantido mediante os recursos de um milhão de libras esterlinas que o governo brasileiro, devia ao governo boliviano pela concessão de parte da área do Acre (VILAS BOAS, 2004 apud WHATELY, 1958). Para o governo boliviano a ligação ferroviaria significava uma estratégia geopolítica, pois possibilitava a saída da Bolívia para o Atlântico. Sobre o Tratado de Aproveitamento de Petróleo, as críticas recaíam sobre a extensa área para exploração de petróleo. Tal acordo interessava mais aos brasileiros por uma série de questões que envolvia desde conflitos territoriais entre a Bolívia e o Paraguai, até problemas políticos internos bolivianos. Esse acordo configurou no marco decisivo para a construção do gasoduto na década de 1990.

Para a demarcação do limite entre o Brasil e a Bolívia em 1941, foram instruídas as Notas Reversais de Instrução para as Comissões de Limites. Por esse instrumento definiu-se, basicamente a instrução para os trabalhos da Comissão Mista Demarcadora de Limites brasileiro – boliviana. Assim, os artigos determinaram os pontos que a partir daí, tal Comissão efetuaria a demarcação a que se refere às cláusulas das Notas Reversais, de 29 de abril de 1941.