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A Cruzada Nacional Nuno Álvares Pereira

1.3 Fascismo e Direita Radical nos Anos

1.3.2 A Cruzada Nacional Nuno Álvares Pereira

Ao contrário do N/L, a Cruzada Nacional Nuno Álvares Pereira, organi- zação que desempenhou um papel importante nas vésperas do golpe de Estado de 1926, dispunha de uma centralidade cultural e política muito maior, particularmente nos últimos anos da República parlamentar.109

Pequena liga nacionalista fundada em pleno Sidonismo, a Cruzada era apartidária e de base heterogénea.

Fundada em julho de 1918, a Cruzada não desenvolveu uma acti- vidade contínua até 1926, quer em termos de acção política, quer em termos estritos de continuidade organizativa. A própria configuração da sua direcção alterou-se cada vez que ensaiou novo relançamento. Foi seu fundador o tenente João Afonso de Miranda, que convidou para a direcção elementos de todos os partidos conservadores (republicanos, católicos e monárquicos) e ainda vários militares, unidos na “defesa da pátria” e “na criação de uma mentalidade patriótica”.110 Apesar de, em

sentido estrito, quer pela base social, quer pelo tipo de organização, não poder ser considerada um partido fascista, ela desenvolveu nos últimos anos do regime liberal uma campanha de propaganda pró-autoritária para a qual o fascismo constituiu um importante referencial.

Após um começo auspicioso sob o regime de Sidónio, a Cruzada quase desapareceu nos anos seguintes, para renascer, em 1921, com um “manifesto ao país”, no qual o difuso nacionalismo de ontem tomou a

109 Cf. Ernesto Castro Leal, Nação e Nacionalismos. A Cruzada Nacional D. Nuno Alvares

Pereira e as Origens do Estado Novo (1918-1938) (Lisboa: 1999).

110 Cf. João Afonso de Miranda, “Para a história da Cruzada Nacional”, Cruzada Nacional

forma de um programa mais claro de crítica ao liberalismo e de apelo à reforma de Estado. “Ordem nas ruas. Ordem nos espíritos. Ordem em casa, enfim. Sem ordem, o Estado não pode viver”, proclamava a Cruzada ao retomar a actividade.111 O seu programa tomou então uma feição mais

autoritária. Continuava a considerar-se uma respeitável organização destinada a “levantar intensamente as energias do povo português, des- pertando-lhe e radicando-lhe o amor pela sua terra e o culto dos seus heróis”, mas acrescentava-lhe um programa político concreto, destinado a “reconstruir a família tradicional”; a “nacionalizar o espírito científico”; a “promover a unidade moral da nação e, consequentemente, concorrer para a solução do problema da ordem pública”; a “solucionar equitativa- mente todos os conflitos entre o capital e o trabalho”.112

Este programa de restauração da ordem era, desde o início, acompa- nhado por um discurso de legitimação histórico-patriótico. Como referia o manifesto de 1921, a Cruzada apenas pretendia “reintegrar a Pátria no culto da sua tradição violada, isto é, no culto das suas virtudes cívicas e domésticas; no culto da honra pública e privada; no culto dos seus heróis e os seus grandes homens, no culto da ordem, da lei, da bondade, da tolerância”.113 Este manifesto, considerado pela recém-fundada Seara

Nova como revelador “do que é e do que vale a mentalidade conservadora

no nosso país”, marcou a revitalização da Cruzada, que no ano seguinte contava já com direcções distritais na maior parte do país.114

A actividade política da Cruzada resumiu-se, nos seus primeiros anos de existência irregular, a algumas conferências e proclamações, tendo como ponto de referência um vago discurso nacionalista, indispensável para albergar sectores muito diferenciados, que iam da oposição conser-

111 Cf. Cruzada Nacional D. Nun’Alvares Pereira, À Nação, 20/9/1921. 112 Idem.

113 Idem.

vadora ao Partido Democrático. Entre os seus aderentes, contaram-se chefes de partidos republicanos conservadores como António José de Almeida, monárquicos como João de Azevedo Coutinho, ministros re- publicanos como João de Barros, senadores e deputados vários, e mesmo um Presidente da República, como Teixeira Gomes. Entre os católicos, eram, em 1922, aderentes à Cruzada, Oliveira Salazar, Cerejeira e José Maria Braga da Cruz.115 Tal pluralismo de devoção ao Mestre de Avis

tinha sido desde logo atacado pelo IL, pela mão de António Sardinha, quando da sua fundação.116

Ponto de convergência frágil, qualquer tentativa de transformar a Cruzada em uma liga virada para a acção política disciplinada estaria condenada ao fracasso, mas o simples facto de esta ter unido nomes tão diversos do espectro político e intelectual tradicionalista e con- servador simbolizava a progressiva unificação pela negativa de uma parte do establishment conservador contra a República parlamentar. Os próprios nomes anteriormente apontados eram membros destacados de partidos políticos ou grupos de pressão aos quais se encontravam ligados por laços ideológicos e políticos bastante mais fortes do que os que mantinham com a Cruzada. Para muitos deles, aliás, dar o nome constituiu a sua única acção no interior desta liga.

Até 1926, altura em que a sua viragem ideológica fascizante foi clara e a sua campanha de propaganda se desenvolveu a par e passo com a conspiração do 28 de Maio, a Cruzada iria ainda aparecer e desaparecer da cena política várias vezes.117 No entanto, cada vez que reaparecia, os

115 Cf. Cruzada Nacional Nun’Alvares, nº 1, novembro 1922, p. 5. 116 Cf. A Monarquia, 30/7/1918, p. 1.

117 José Machado Pais dividiu a vida política d Cruzada em quatro fases: 1918-21; 1922-24;

1924-26; primeiros meses de 1926. Em cada uma destas fases, a Cruzada conheceu alterações na sua direcção e novos órgãos de imprensa. Mas em alguns períodos a sua organização não deu praticamente sinais de vida. Cf. José Machado Pais, As “Forças Vivas” e a Queda do

Regime Liberal Republicano, Madrid, mimio., 1983, p. 219. A Cruzada não desapareceu com o

28 de maio de 1926, mas a sua actividade desarticulou-se e parte dos seus quadros seguiram caminhos diferenciados.

seus órgãos dirigentes foram constituindo um revelador significativo do progressivo isolamento do parlamentarismo e do crescimento do que Juan Linz chamou de uma “oposição desleal”.118 Raul Proença, ob-

servador atento da Cruzada, espantou-se com os respeitáveis nomes que assinavam as “monstruosidades” escritas nas proclamações da Cruzada, assinalando “que há republicanos […] mais inimigos do futuro que os mais reaccionários integralistas”.119

Em 1922, encontravam-se associados à Cruzada industriais como António Centeno, integralistas como Pequito Rebelo, o general Gomes da Costa, republicanos conservadores como Egas Moniz. Dois anos mais tarde até João de Castro, fundador do Nacionalismo Lusitano, aderiu. Entre 1921 e 1924, a Cruzada foi alargando a sua estrutura in- terna, criando secções distritais e locais, chegando mesmo a criar uma “comissão central de damas”.120

Em janeiro de 1926, a Cruzada Nuno Álvares remodelou mais uma vez a sua direcção, acentuando a sua componente fascizante e golpista. Filomeno da Câmara, militar conspirador do 18 de Abril e futuro golpista de extrema direita durante a Ditadura Militar, assumiu a presidência da organização. Chegaram então à sua direcção Martinho Nobre de Melo, ex-ministro de Sidónio e principal ideólogo da última fase da Cruzada, e outros conhecidos nomes da extrema direita do espectro político.121

Em termos organizativos, a Cruzada ensaiou então um modelo mais militante. O seu novo porta-voz, A Reconquista (dirigido por Mar- tinho Nobre de Melo), intitulou-se também “órgão das Ligas Operária e Académica do Condestável” e, se junto dos primeiros o eco era nulo, a comissão académica de propaganda iniciou efectivamente a agitação nas

118 Cf. Juan Linz, “Crisis, Breakdown & Reequilibration” in Juan J, Linz and Alfred Stepan

(Edited by), The Breakdown of Democratic Regimes (Baltimore: 1978), p. 37-38.

119 Cf. Seara Nova, nº 1, 15/10/1921, p. 21. 120 Cf. Cruzada Nacional, 8/2/1924, p. 61. 121 Cf. A Reconquista, nº 1, 15/1/1926.

Universidades. A 9 de janeiro de 1926, a Cruzada organizou um comício na Sociedade de Geografia que reuniu, segundo a imprensa, “milhares de pessoas”. O seu discurso era aí já mais radical e o seu conteúdo progra- mático mais claro. “Queremos” – afirmavam em abril de 1926, ao mesmo tempo em que apelavam a Gomes da Costa – “que o Chefe de Estado seja realmente um chefe e não uma simples chancela dos partidos”: “queremos uma […] representação dos interesses reais e permanentes da Nação e não dos interesses transitórios e egoístas das clientelas partidárias”. “Quere- mos a eliminação do intervencionismo directo ou imediato do Estado” na economia; “queremos o sindicalismo orgânico não obrigatório mas com privilégios políticos e sociais”. “Queremos, em tese, a liberdade e privilégios da religião católica, em regime concordatário.”122

A Cruzada considerava-se, nos primeiros meses de 1926, como o elemento propulsionador de “um grande movimento nacional com o fim de pôr termo à luta estéril entre os partidos para se organizar tec- nicamente a governação pública […]”.123 Seria precipitado considerar a

Cruzada como principal inspiradora no golpe vitorioso de 28 de Maio de 1926, mas a sua última direcção unificou um pequeno mas poderoso grupo de pressão que tentou dominar a Ditadura Militar, como as pe- ripécias golpistas associadas ao General Gomes da Costa iriam provar. Revelador da pujança política adquirida pela Cruzada nos começos de 1926 era o movimento de adesões, vindas de organizações inte- gralistas e sidonistas ainda que as primeiras não se dissolvessem na Cruzada. Outro elemento que convém não esquecer, e que a Cruzada cultivava desde a primeira hora, eram os militares. Alguns tenentes do 28 de Maio, como Mário Pessoa, eram seus fundadores.124 Os estudantes

122 Cf. A Reconquista, nº 5, 1/4/1926, p. 67-69.

123 Cf. manifesto “Às Academias do país” da Comissão Académica de Propaganda in A Re-

conquista nº 6, 15/5/1926, p. 96.

124 Mário Pessoa seria mais tarde um activo elemento do Secretariado Militar do Nacional-

destacaram-se também na secção académica, nomeadamente Castro Fernandes, fundador do Nacional-Sindicalismo nos anos 30. Os nomes mais associados ao conservadorismo republicano davam assim lugar a uma extrema direita mais jovem e mais virulenta.

A denúncia do programa fascizante da Cruzada caberia mais uma vez aos intelectuais da Seara Nova e, particularmente, a Raul Proença. “Em Portugal, a Cruzada Nun’Alvares resolveu iniciar um movimento análogo ao fascismo italiano”, mas – referia Proença com ironia – “É uma coisa aparatosa, chic, que mete chá-das-cinco, elegantes, estudan- tes pálidos, oficiais com calos e burgueses apopléticos”.125 De facto, a

referência ao fascismo e à ditadura de Primo de Rivera por parte da Cruzada permaneceu basicamente nos salões da Sociedade de Geografia e não na rua, mas, em 1926, os únicos actores a quem todos os sectores conservadores apelavam a utilizar a rua eram os militares. A Cruzada, como outros antes e depois dela, apenas se preparava para ocupar o seu lugar na carruagem do comboio conspirativo, em andamento desde 1925.