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A CULTURA COMO SEGUNDA REALIDADE

Sobre os sistemas modelizantes sugeridos por Lotman (1978), Bystrina (1994) insere os códigos culturais na esfera da “segunda realidade”, criada pelo homem após o nascimento da linguagem. Ao contrário da primeira realidade, dos códigos biológicos e sociais, o espaço da cultura é o campo de sobrevivência psíquica.

De acordo com Bystrina (1994), o homem desenvolveu-se fisicamente – tomou postura vertical, passou a usar as mãos etc –, mas, por outro lado, passou a apresentar um medo existencial, algo que não conhecia quando vivia protegido na floresta. A ida para as savanas revelou a necessidade de vencer o medo por meio das próprias capacidades psíquicas de engendrar soluções. Ele criou a segunda realidade como uma cura para o mal da existência.

Os textos das crises apresentam a mesma dinâmica da “segunda realidade”, recriada para apresentar soluções para um mal existente. É o campo da sobrevivência, ou melhor, da tentativa de sobrevivência das organizações, que, diante de um problema, oferecerão algum tipo de respaldo para compensar danos na primeira realidade.

Bystrina (1994) fala de códigos primários, que diz respeito às informações presentes no organismo, na vida biológica, como os códigos genéticos. São informações que não chegam a produzir signos (ele menciona pré-signos). Já os textos são construídos a partir de códigos secundários, ou códigos da linguagem, mas, ainda assim, a gramática da linguagem natural ainda não é cultura. Somente

os códigos terciários, ou culturais, é que formam os textos da cultura, da chamada segunda realidade.

Os códigos terciários têm uma estrutura que se baseia em experiências e hipóteses. Bystrina (1994) parte de conceitos apresentados pelos russos, em especial Lotman e Roman Jakobson, a começar pela binariedade, um dos pontos dessa estrutura, cuja concepção fundamenta-se nas trocas do mundo físico, a primeira realidade.

Tanto no ambiente da informação pura e simples onde surgem os códigos primários quanto no mundo da linguagem, nos códigos secundários, a construção desses códigos se dá em oposições binárias. Bystrina (1994) lembra que, no início da cultura, a oposição mais contundente era vida-morte e que toda a estrutura dos códigos terciários (culturais) se desenvolveu a partir de um conceito de oposição: homem/mulher, céu/terra, saúde/doença, paz/guerra, sagrado/profano, amigo/inimigo, espírito/matéria, liberdade/prisão, prazer/desprazer, direita/esquerda e justiça/injustiça, entre outros. Essas oposições estão presentes na cultura de modo geral.

O segundo ponto da estrutura dos códigos terciários é a polaridade. O binarismo passa a ser polarizado com um valor e isso ocorre para subsidiar a tomada de decisão, atitude, comportamento. Tem a ver com as questões práticas da vida, cada polo recebe um valor e o seu correspondente negativo.

Essa estrutura binária e polar é também assimétrica. O polo marcado negativamente acaba sendo percebido de forma mais contundente que o positivo. No aspecto da preservação da vida, o polo negativo (a morte) é mais forte, por isso, o homem almeja a vida após a morte em todas as culturas. Uma forma de neutralizar o polo negativo e os textos culturais permitem eliminar as oposições por meio de possibilidades de soluções.

Bystrina (1994) cita Levi-Strauss e afirma que os estruturalistas evidenciam que a solução para as oposições são criadas na esfera mítica e ideológica, a segunda realidade, com os textos culturais. A primeira possibilidade de soluções e dá pela identificação, explícita em um provérbio egípcio: o que está acima também está abaixo. Há então uma ligação presumida entre o céu e a terra, e da terra com a esfera inferior.

A supressão da negação é a segunda possibilidade de neutralizar as oposições. Se temos o céu (mundo dos deuses) como positivo e a terra (mundo dos

mortais) como negativo, reforçamos a equação negativo e positivo. Contudo, se lançarmos um terceiro elemento (alimentando uma tríade), ele terá em si o negativo e positivo em relação ao primeiro e segundo elementos. Exemplo: Céu, terra e inferno. Os polos podem ser ora negativos, ora positivos, dependendo da relação que se estabelece e com isso a negação é suprimida.

Há também a terceira tentativa de eliminar as oposições, com a inversão, ou seja, uma troca de polos opostos. Nas ditaduras, o autoritarismo é visto como negativo, já na ideologia marxista a ditadura do proletariado tem um bojo positivo.

Por fim, outras duas soluções para neutralizar os polos são a união das partes opostas e da mediação delas por um elemento intermediário. Na equação céu-terra- inferno, a terra seria o elemento de ligação entre o céu e o inferno com construção de transações simbólicas.

O texto da cultura traz compensações para prejuízos ocorridos na primeira realidade e tenta neutralizar o polo tão marcadamente negativo. O texto da cultura é, para nós, o texto da crise, ou o discurso narrativo da crise, vista sempre como o polo negativo. A crise é um mal, nem sempre irremediável, como vimos aqui. Há estratégias para a organização neutralizar os seus efeitos e o profissional de comunicação é uma espécie de engenheiro do conjunto de signos voltados para a produção de sentido.

Podemos dizer que a comunicação de crise é um jogo estratégico. Medido, pensado, com inclinação para amenizar o problema. Cada palavra compõe o todo, cada aceno da organização fala algo.

Crise e não-crise são dois polos (binariedade) possíveis para as empresas, seja qual for sua área de atuação ou tempo de mercado. Momentos de calmaria acabam, por vezes, interrompidos por problemas de origem criminosa, de natureza econômica e legal, de informação, de desastres industriais e naturais, falhas em equipamentos e construções, reputação, relações humanas e envolvendo riscos para a vida. (ROSA, 2001).

Se a crise é negativa, o lado oposto, da não-crise, é positivo (polaridade) – significa calmaria, tranquilidade, conforto, sossego. Por esse motivo, cenários de crise são temidos por sua conotação altamente negativa (assimetria) para os negócios, colaboradores, opinião pública, investidores etc. Assim como a cultura humana recusa a morte com o ideário de vida eterna, os executivos buscam a não- crise para superar períodos de conturbação. Ou uma espécie de céu corporativo,

onde os deuses garantam lucro e sintonia com a opinião pública, além de uma marca forte e reconhecida.

O discurso narrativo da crise entra em cena como uma forma de neutralizar sua conotação negativa, buscando eliminar as oposições latentes. Pode-se estabelecer o que Bystrina (1994) chama de fronteira para separar as áreas opostas a fim de demarcá-las. O primeiro passo é a identificação dos polos, com a certeza de que o que existe em um lado existe no outro, nem que seja seus respectivos extremos: conturbação/calmaria, paz/tormenta, tranquilidade/agitação. Há uma ligação entre crise e não-crise, na medida em que só existe paz se houver tormenta e vice-versa.

Na segunda possibilidade de neutralização, insere-se a supressão da negação. Basta inserir um terceiro elemento no contexto para dissolver um pouco as oposições binárias. Por exemplo, o ambiente de não-crise é positivo com relação ao ambiente de crise. Mas o ambiente de uma pequena crise, com espectro menor de repercussão, recebe o sinal positivo se comparada a uma crise de grandes proporções com grande agitação por parte da mídia, por exemplo. Da mesma forma, um acidente com nenhuma vítima fatal é positivo se comparado a outro acidente com centenas de vítimas fatais.

A terceira possibilidade de eliminar oposições é a inversão. A organização pode desconstruir o mito da crise como o fim do negócio e passar a enxergá-la como uma possibilidade de encontrar novos caminhos de atuação, de abandonar práticas que foram à falência e adotar outros modelos mais interessantes. Se o problema ocorreu por falha humana (um funcionário errou), a crise evidencia que é hora de reforçar o treinamento e os mecanismos de segurança.

Voltemos às teses russas, mais especificamente à que mostra que um dos mecanismos básicos da cultura é a tendência à diversidade (tese 9). A crise, se bem administrada, é essa porta para o novo. “As pessoas e as empresas que sabem enfrentar suas crises saem delas muito mais fortes e poderosas”, destaca Rosa (2001, p. 215). E isso ocorre porque a crise pode contribuir para enriquecer a forma como a organização vê e se relaciona com o mundo.

6 ANÁLISE