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DINÂMICA DOS SISTEMAS TEXTUAIS DAS CRISES COM BASE NAS TESES

Como vimos no Capítulo 4, as Teses Russas apresentam um paralelo com as situações críticas e oferecem insumos que contribuem não somente para entendimento desses cenários e suas especificidades como também para se chegar a ações propositivas.

Para começar, vamos à tese 1: nenhum sistema de signos é dotado de mecanismo que lhe permita funcionar de forma isolada. Há uma inter-relação presumida entre os sistemas sígnicos e o conceito de crise está ligado à sua oposição, a não-crise. A esfera delimitada da crise, de desorganização e caos, se opõe ao sistema de fora dela, ou seja, ao ambiente de organização. Para a existência de uma, devemos admitir a existência da outra.

A tese 1 presume que, para cada sistema cultural, há um tipo de caos correspondente. Assim, o momento de calmaria organizacional estaria diretamente relacionado ao momento de tempestade. Ou se institui a organização dentro do objeto descrito, em que o caos fica estabelecido na parte externa, ou se institui a entropia dentro da unidade, deixando de fora a plena estabilidade.

Essa dinâmica de crise e não-crise transforma empresas éticas em não- éticas, idôneas e inidôneas, e práticas transparentes em obscuras. A função do gerenciamento de crise, o que inclui gestão e comunicação, é trabalhar nesse ponto e inverter o aspecto sígnico do texto da crise, da mesma forma em que o mecanismo da cultura transforma a esfera externa em interna, desorganização em organização, desordem em ordem e pecadores em santos, pelo princípio da ressignificação. Eis o foco da estratégica de contenção, que encontra respaldo nas práticas de gestão para reverter a crise (caos) e nas ações de comunicação, em busca do equilíbrio e estabilidade outrora perdidos.

Tudo isso porque a crise, na relação de interdependência entre os sistemas (tese 1), tende a contaminar os outros textos da empresa de modo a corromper a

imagem e, em última instância, a reputação. A estratégia de gerenciamento é, também, lançada para paralisar o avanço do desgaste sobre os demais textos, preservando imagem/reputação.

O fenômeno da crise, sendo um sistema de signos, contém signos que pertencem a outros sistemas de signos (tese 2). Funciona como um arranjo de muitas camadas que nos leva a significar cada um dos elementos que entram em sua composição. O texto da crise inclui camadas de signos com tom negativo, a despeito de registros de mortes, vítimas, reféns, explosões, crimes, acidentes, falhas, atentados, violência, perdas, desvios etc. A composição e correlação dos elementos semióticos definem o tipo de crise e o seu grau de extensão.

Isso nos leva a crer que o discurso a ser instituído para contê-la pode ser feito com base no mapeamento do texto negativo imposto pelo problema e suas camadas. Desastres ambientais, por exemplo, envolvem elementos como poluição, contaminação, morte de espécies da fauna e flora, desequilíbrio. A antítese desse texto é a despoluição, descontaminação, resgate de espécies da fauna e flora, e a busca pelo equilíbrio. Signos que norteiam a comunicação e, da mesma forma, a gestão da crise.

Pontuando especificamente a comunicação, o discurso institucional também é uma composição de textos. Um exercício a ser feito é identificar os textos mais relevantes a serem destacados na crise em sua integralidade e, com base neles, criar versões para rebatê-los. Nos referimos aqui à produção de significado. O que interessa ao público saber?

Tão evidenciada pelos autores de crise como um fator positivo para posicionar a empresa, a transparência é, sob esse ponto de vista, relativa. Rosa (2001) sugere apresentar a verdade sobre os fatos, mas a verdade é quase sempre estratégica e a versão que interessa à organização.

Buscamos um norte nas ideias de Bakhtin (2009), que propõem uma filosofia da linguagem centrada no signo ideológico e nas ideologias expressas nos sistemas semióticos. Para ele, não existe ideologia sem signos e tudo que é ideológico é um signo e tem valor semiótico. O signo apreende a realidade sob um determinado ponto de vista, não representando-a integralmente, e está ligado a estruturas sociais.

O filósofo russo defende que é nos signos criados por determinados grupos sociais que a consciência ganha forma. O signo é uma arena de luta, onde se

desenvolvem os embates de classes. Cada signo apresenta e briga por sua ideologia, da mesma forma a comunicação de crise é construída por camadas de signos que estão dentro de um objetivo específico: posicionar de forma favorável a instituição. Tem forte carga do ponto de vista do criador, de modo convincente. (BAHKTIN, 2009).

Ainda dentro das teses, o texto da crise é um sistema de signos (tese 3) e o conceito de texto é usado no sentido semiótico, que pode ser aplicado não apenas à mensagem de uma língua natural, mas também a qualquer portador de significado integral. Ou seja, o texto da empresa inclui, como está expresso no item anterior, não somente o que ela verbaliza como também as medidas tomadas para combater à crise.

Fazendo menção à mídia e à sua cobertura em eventos negativos, o texto da crise pode incluir imagens, música, cores, infografias e palavras-chave que reforcem o problema. Até mesmo a expressão do rosto do repórter e das vítimas, mesmo sem o áudio (no caso da TV), compõem o repertório. Uma fotografia combinada a um título negativo diz muito sobre determinada matéria, mesmo que o leitor não a acesse por completo. “Uma foto fala mais que mil palavras.” (ROSA, 2001, p. 100).

O mesmo vale para o sistema de signos envolvidos pelo discurso oficial da instituição, criado a partir de elementos que formam uma versão de antítese à crise. Por exemplo, uma fala firme e convincente, com argumentos bem embasados, do porta-voz escolhido para conceder entrevistas pode sugerir diligência e rigor, assim como “calma e confiança”, na condução do problema. (FORNI, 2013).

Os textos de notas oficiais também compõem o grande texto institucional. Mensagens auto-referenciais, centradas no próprio emissor, dão ênfase à organização com o fim em si mesma, desprezando o outro. Retomamos aqui Kunsch (2003), quando ela sugere que organizações são feitas para pessoas dentro da satisfação de necessidades básicas, como alimentação, saúde, vestuário, transporte, lazer, segurança e habitação, assim como necessidades sociais, culturais e de qualidade de vida. Com efeito, se as pessoas constituem a força motriz das organizações, não podem ser desprezadas em suas atividades habituais, muito menos em tempos de crise.

A despeito do texto institucional auto-referencial, além de diminuir a importância do público, o tom enfatiza a culpa diante do fato porque se prende à própria organização, que em instância final é a fonte do problema. Textos que

enfatizam o outro (alteridade) demonstram preocupação com as pessoas e assumem a responsabilidade frente ao desgaste ocorrido.

Ainda no que tange o discurso institucional, a comunicação precisa se ater à questão da cultura. O texto da língua natural não é um texto de uma cultura (tese 4). Lotman (1978) denomina de “sistemas modelizantes de segundo grau” os sistemas de signos formados a partir da linguagem natural – com a qual falamos, ouvimos e lemos –, ou “sistema primário ou modelizante de primeiro grau”.

Isso quer dizer que a língua natural acaba por influenciar a língua da cultura, as maneiras como os sentidos articulam-se na cultura, que não de forma verbal. Assim, os passos para a resolução de uma crise no contexto dos Estados Unidos pode não ter o mesmo êxito no Brasil ou em outros países com culturas diferentes. Ou o discurso institucional escrito em uma determinada língua pode não ser entendido em sua integralidade se transcrito para outra.

A divisão sugerida pela tese 4 envolve a crise e o problema na perspectiva da linguagem natural, que pode nominar o ocorrido como tragédia, explosão, poluição, corrupção etc. O texto da cultura envolve o imaginário e assume outros significados. Uma informação passa a ser um texto no sistema modelizante secundário (tese 5). Percebendo o signo como informação isolada, temos sua proliferação no contato com outros signos ou outras informações. A dinâmica pode corresponder ao texto da crise propriamente dita ou ao discurso institucional, que coloca a crise não como ela é, mas como a empresa quer ou pode significar.

“É a mesma lógica que serve para a música: não é possível compor a canção, mas sim uma canção que atenda à sua demanda, sua necessidade”, afirma Rosa (2001, p. 118), comparando a forma de lidar com a crise ao desempenho de um músico, que, para fazer uma canção, ordena e combina como quiser as notas musicais.

A comunicação de crise é uma construção que encontra respaldo nos mecanismos da cultura. E o texto da cultura gera compensações para prejuízos ocasionados na primeira realidade com o objetivo de neutralizar o polo negativo. Crises são quase sempre um mal e a estratégia de gerenciamento mira a reversão desse mal, como sugere Bystrina (1994).

Um caminho possível, nessa construção, é relacionar o texto de determinada crise com outro texto, de outra crise, até para entender a dimensão da situação. A grosso modo, sem entrar nos pormenores, um acidente aéreo com 100 vítimas fatais

tem menor espectro negativo se comparado a outro com o dobro de mortes. Essa inferência também é válida no momento de analisar a crise, para não superestimar ou subestimá-la.

A conjuntura influencia a análise e também o tom do discurso oficial a ser adotado. É possível usar o elemento externo tanto para reforçar quanto para dispersar, até porque a ocorrência de outras crises semelhantes suaviza o cenário, ao mostrar que não é somente com a empresa que acontecem certos problemas.

Tal perspectiva se assemelha aos princípios da tese 6: os sistemas de signos têm sua estruturalidade, garantindo a organização interna e também a desorganização externa ou entropia, sem a qual nenhum dinamismo é possível. Em outras palavras, o mecanismo da cultura transforma a esfera externa em interna e a desorganização em organização, da mesma forma que a experiência de uma crise passada pode ser convertida em um novo texto para superar uma nova crise.

As teses trazem também a questão da tradução dentro da tradição favorável à interação (tese 7). O foco é no receptor, que é quem faz a leitura. Aqui trazemos de volta a necessidade de uma comunicação pensada para os públicos que se relacionam com a instituição e seus diferentes interesses e pontos de vista.

Dentre as respostas à crise, Rosa (2001, p. 143 e 145) ressalta a importância de “definir os diferentes públicos-alvo”, a exemplo de líderes comunitários, fornecedores, grandes clientes, vizinhos, agências reguladoras, empresas do mesmo ramo, analistas do setor, empregados, líderes sindicais, aposentados, diretores e altos executivos, acionistas e organizações não-governamentais.

Para Forni (2013), o tipo de crise define que são os interlocutores decisivos para vencer a batalha e mensagens-chave podem ser construídas para cada um deles.

A tese 8 traz o funcionamento da cultura a partir das relações entre estruturas diferentes e a passagem de um nível a outro pode ocorrer com a ajuda da redefinição de regras, em que um elemento representado no nível superior por um símbolo é expandido, em um nível inferior, para todo o texto. Ou seja, o problema pode contaminar todo o texto da empresa mudando a forma como ela vai atuar diante do problema, redefinindo as regras.

E, embora a crise abale a organização alterando sua dinâmica e relações, não significa o seu fim. A tese 9 prega que a tendência à diversidade é um dos mecanismos básicos da cultura. Ao mesmo tempo em que cria as fontes máximas

de organização, a cultura tem a necessidade do novo (entropia) para se reinventar. Esse argumento rebate as visões apocalípticas das crises e mostra que é possível fazer uma espécie de reciclagem transformando práticas velhas em outras práticas, como uma forma de oxigenar o sistema.