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Professor de Tártu e nome relevante nos estudos da literatura russa, Lotman (1978, p. 104 a 106) conceitua “texto” e nos oferece um parâmetro que se mostra atual para uma reflexão sobre discurso da crise. Todo texto se caracteriza por possuir:

1. Expressão – O texto é fixado por meio de determinados signos e, nesse sentido, opõe-se às estruturas extratextuais. A expressão está relacionada aos signos da língua natural, da palavra. Esses elementos sistêmicos estão contrapostos aos extra-sistêmicos, que é o contexto onde o texto se encontra. 2. Delimitação – É própria do texto, que se opõe, por um lado, a todos os signos

materialmente encarnados, que não entram em seu conjunto, segundo o princípio de inclusão/não-inclusão. Dentro do seu conjunto, há princípios de hierarquia, o texto se divide em complexos subsistemas. A delimitação significa realizar uma função cultural determinada e transmitir uma significação acabada. Diz respeito a contornos nítidos e expressos para que a unidade de sentido estabeleça o que está dentro e o que está fora. Assim, o primeiro requisito para organizar um discurso é ter textos bem delimitados. 3. Caráter estrutural – Um texto não representa uma simples sucessão de

signos no intervalo de dois limites externos. É própria do texto uma organização interna que a transforma em um todo estrutural (nesse sentido, registra Lotman (1978), o caráter estrutural e a delimitação estão ligados). A estrutura é a sustentação, se alterá-la, muda todo o sentido.

Esses três elementos – expressão, delimitação e estrutura – caracterizam o texto. E o conjunto de textos organizados de forma coerente para produzir um significado global acaba por formar um outro texto maior que podemos denominar discurso. O discurso é, pois, um conjunto de arranjos sígnicos que, ordenados, produzem sentido.

Na comunicação de crise, entendemos a “expressão” como mensagens dirigidas ao público que se deseja atingir, com palavras-chave para nortear a narrativa. Essas palavras são pontos específicos que amarram os argumentos centrais, seja em entrevistas para a imprensa, notas oficiais, comunicados para o público interno ou abordagens diretas com vítimas e parentes. A mensagem precisa ser pensada de maneira a posicionar a empresa positivamente no cenário.

A “delimitação” envolve os limites do texto da organização, até que ponto o discurso deve ir. Diz respeito aos contornos das promessas verbalizadas, das soluções propostas, e do que é hierarquicamente mais importante na apresentação do texto. Quais medidas serão apresentadas primeiro? Quais entrarão de forma secundária? Por fim, as ideias precisam fazer sentido naquela cultura com a qual vai estabelecer relação, para não soar artificial.

A “estrutura” pode ser entendida como estratégia. Para construir a versão do fato, a empresa apresenta argumentos, amarrações e elementos que a caracterizem, a depender de como deseja se posicionar. “A direção deve decidir de antemão com clareza, o que vai ou não revelar durante uma crise.” (SUSSKIND; FIELD, 1997, p. 78).

Lotman (1978) sugere um texto organizado com expressão, estrutura e delimitação, que possa ser entendido pelo público com o qual a empresa abre um flanco de diálogo. A ideia é produzir conteúdo com efeito significativo. A versão oficial, se bem costurada, conta muito no cenário de boatos típico dos momentos de crise.

Ainda sobre a construção dos textos de crise, podemos nos pautar pelas conclusões de Propp (1985), quando ele apresenta o que entende como os principais elementos do conto de magia e alguns de seus elementos acessórios (morfologia).

Propp (1985, p. 85) afirma que qualquer texto pode ser desmembrado segundo suas partes constituintes. Observe:

Do ponto de vista morfológico podemos chamar de conto de magia a todo desenvolvimento narrativo que, partindo de um dano (A) ou uma carência (a)e passando por funções intermediárias, termina com o casamento (W0) ou outras funções utilizadas como desenlace. A função final pode ser a recompensa (F), a obtenção do objeto procurado ou, de modo geral, a reparação do dano (K), o salvamento da perseguição (Rs), etc.

O desenvolvimento narrativo da crise tem estrutura semelhante. Parte de um problema (A) ou carência (a), passa por funções intermediárias e termina com um desfecho, no caso, uma solução plausível para o problema. A função final pode ser a reparação do dano para possíveis vítimas ou pessoas que passaram por uma frustração com a organização ou, ainda, o salvamento da perseguição por parte da imprensa ou da opinião pública, quando a empresa cria um discurso que valida suas práticas no sentido de reverter a crise ou apresenta argumentos que a posicionem de forma a explicar o problema.

Propp (1985) entende cada desenvolvimento narrativo em um conto como sendo uma sequência. Cada dano ou prejuízo gera uma nova sequência no conto. Para cada crise, há um arranjo narrativo construído pela organização. Na iminência ou concretização de outro problema, abre-se uma nova sequência de narração, com

base nos novos fatos, personagens, danos, mas sempre com um desenlace que sugere soluções.

Entram em cena os profissionais de comunicação com os arranjos a serem inseridos no discurso narrativo. Fatos, argumentos, posições e providências podem incluir o roteiro dessa história, em ideias articuladas para posicionar a empresa perante o seu público e, de preferência, de forma positiva, neutralizando os reflexos negativos da crise.

A mecânica do roteiro, por Comparato (1983, p. 15), também oferece suporte para montar uma sequência plausível do discurso narrativo da crise. Ele classifica “roteiro como a forma escrita de qualquer espetáculo áudio e/ou visual.” Vamos pinçar a forma escrita e as três qualidades essenciais que um roteiro deve ter: “logos,pathos e ethos”.

Logos se refere à palavra, ao discurso, à organização verbal de um roteiro ou o mesmo que estrutura geral. Podemos comparar ao texto da empresa que será constituído sobre determinado evento, de que forma ele será contado. Como me posicionar diante da crise?

Pathos é “o drama, o drama humano. Portanto, é a vida, a ação, o conflito do

dia-a-dia gerando acontecimentos”, informa Comparato (1983). Ou seja, pode ser comparado a um momento crítico que pode acontecer a qualquer empresa, a qualquer momento, leciona Bueno (2003). Fica a pergunta: Qual a minha crise?

A empresa aérea TAM viveu um de seus dramas em 1996, quando um avião que fazia o vôo 402 sofreu uma pane momentos depois de decolar do aeroporto de Congonhas, em São Paulo. A aeronave caiu sobre um bairro paulista matando todos os passageiros e tripulantes, em um total de cem pessoas, além de vítimas em terra. O fato repercutiu na imprensa com direito a cenário típico de crise, recheado de informações desencontradas e boatos. (BUENO, 2003).7

Afora o drama (pathos), Comparato (1983, p. 15) relaciona um terceiro elemento vital ao roteiro: o ethos, que é à ética e a moral. “O significado da estória, suas implicações morais, políticas e etc.” Transpondo para a realidade organizacional, o ethos é a maneira como a direção vai lidar com a crise.

Rosa (2001) aponta a “verdade” como valor estratégico, o ponto de partida, o pilar de sustentação do que chamamos aqui de discurso narrativo da crise. Posições

7 Capítulo 13: Verso e Reverso: Quando a imagem entra em pane. A tragédia do Vôo 402 da TAM na mídia.

nebulosas podem até funcionar, mas o risco de não dar certo é elevado. Pergunta oportuna: Qual a minha estratégia?

Retomemos ao incidente da TAM, avaliado por Bueno (2003, p. 233 e 234). A empresa elegeu uma única fonte para falar com a imprensa, no caso um diretor, que esteve presente no cenário do evento, comprometeu-se com o ocorrido e se dispôs a oferecer informações. “Esta posição transparente [...] repercutiu favoravelmente.”

Ainda na narrativa da TAM, a assessoria, como mostra o autor, resgatou a trajetória da empresa e inevitavelmente os jornais fizeram referência à sua credibilidade, com reconhecimento até mesmo internacional, e acabaram resguardando a figura do ex-presidente, Comandante Rolim, visto como empresário bem-sucedido, que trabalhava muito e tinha um caráter empreendedor. O roteiro elaborado pela assessoria da empresa aérea incluiu o ethos.

As narrativas das organizações durante as crises se assemelham aos roteiros de cinema e TV. Da mesma forma como sugere Comparato (1983), é preciso pensá- las de forma coerente, muitas vezes técnica, com argumentos amarrados de forma a produzir sentido. E produzir sentido não é apenas emitir informações, mas significar e ressignificar. Isso porque crises exigem esforço de comunicação para um diálogo mais estreito entre a organização e as partes envolvidas no problema.