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2.4 Cultura brasileira e a cultura mineira

2.4.2 Cultura mineira

A primeira pergunta é se existe “uma única” Minas. Guimarães Rosa reconhece que “Minas Gerais é muitas. São pelo menos várias Minas”. “A voz de Minas é pluritonal” (ROSA,1985).

Segundo Arruda (1998), vários dos traços tipicamente descritos da cultura brasileira encontram-se presentes na cultura mineira, mas pode-se perceber uma especificidade. “Não deixa de ser curioso o fato de que o Estado de Minas, provavelmente o mais diferenciado do ponto de vista interno produza uma visão regional tão integrada” (ARRUDA, 1998, p. 102). A

mesma autora afirma ser Minas “plural, mas integrada”, por ter “recolhido e guardado pedaços do Brasil” (ARRUDA, 1998, p. 117).

Esta especificidade permanece visível apesar das transformações mais recentes. Há um aspecto bipolar presente na clivagem entre as Minas Gerais conservadora, introvertida e antiga e outra mais flutuante, extrovertida e moderna – os municípios encontram-se sob a ação de grandes focos – o belo-horizontino e o eixo Rio-São Paulo. Campos conclui que o caráter mineiro, no entanto, subsiste, “na qualidade de haver conservado os traços antigos da nacionalidade, o que significa, por se tratar de alguém com fortes tonalidades conservadoras, a preservação em Minas, da essência da brasilidade” (CAMPOS, 1951, p. 118). A discussão sobre a existência ou não de uma “mineiridade” remete ao conceito de identidade de Lévi- Strauss, segundo o qual “a identidade é um tipo de morada virtual, à qual precisamos nos referir para explicar um certo número de coisas, mas sem que ela tenha existência real” (LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 332).

A construção do mito da mineiridade fez-se ao longo da história do Estado. É possível reconhecer três momentos importantes: o primeiro corresponde ao apogeu da mineração no século XVIII, ao qual correspondeu uma época de grande brilho cultural e uma vida urbana pouco usual para os padrões coloniais. O segundo momento corresponde á decadência da mineração e à ruralização da economia, que vai do século XIX até o início do século XX. Por último a industrialização iniciada em meados do século XX, época que segundo Arruda (1998) corresponderia a uma possível erosão do construto mítico erigido nos dois primeiros momentos.

Dados do Sétimo Encontro de Extensão da UFMG (CORTÊS, 2004) apontam que o primeiro grande surto migratório do país deu-se justamente pelo deslocamento de quase meio milhão de pessoas quando da descoberta do ouro em Minas Gerais. Segundo Lima Júnior (1978) esta migração, na verdade, marca o início da constituição da nação brasileira. Bandeirantes paulistas, fazendeiros do Nordeste, criadores gaúchos de gado, portugueses de vilas agrárias empobrecidas e escravos africanos marcaram esse movimento. Marcou também o período a Igreja Católica da Contra-Reforma (construções suntuosas, pagamento de promessas, levantamento de mastros, músicas e cortejos) – e a miscigenação da cultura africana com essa tradição religiosa, como os Congados para homenagear Nossa Senhora do Rosário. Segundo o Atlas de Festas Populares há em Minas Gerais 326 festas para homenagear Nossa Senhora do Rosário (MINAS GERAIS, 1998). Outra comemoração comum são as Folias de Reis, de origem portuguesa. Existem 336 cidades onde essas Folias acontecem regularmente, segundo o mesmo Atlas (MINAS GERAIS, 1998) – havendo aí

danças de origem africana como o calango, o lundu e outras que se fazem presentes também em eventos profanos ligados à colheita, entre outros.

A obra de Alceu de Amoroso Lima “Voz de Minas” foi totalmente construída sob um tema principal, explicitado no título do capítulo final: “Missão de Minas”. O autor resume algumas das características desse universo mítico que serão pesquisadas por Arruda (1998): “o desdém pelo tempo que se manifesta nas menores coisas em Minas”, a sobriedade, a discrição, a economia, a fleuma e o humor “britânico” que é uma “verdadeira atitude perante a vida” (ARRUDA, 1998, p.122). Alinham-se ainda: bom senso, idealismo, utopia, antiextremismo, anti-romantismo, centrismo, presença do passado e respeito pelo mesmo, continuidade e fidelidade, que bem poderiam ser resumidos na expressão “conservadorismo”. O orgulho de ser mineiro está contido na expressão “Sou mineiro dos que dizem – mineiro graças a Deus!” (ARRUDA,1998, p. 126).

Campos repete e reforça o mito segundo o qual Minas zela pela unidade brasileira, possuindo uma “vocação” de sacrificar os interesses mais imediatos para cultivar o conjunto. “Dos mineiros pode-se esperar [...] o equilíbrio, a ponderação, a palavra de paz, o desejo de síntese [...] que configuram o “espírito de Minas”. (CAMPOS, p.212-213). Arruda (1998) enumera posições semelhantes em discursos e obras de Arthur Bernardes, Gustavo Capanema, Tancredo Neves, Juscelino Kubistchek, Benedito Valadares, etc. – todos considerando a ausência de radicalismo e a ultrapassagem dos regionalismos como condição fundadora do Estado e fazendo muitas vezes, para isso, uso da imagem de Tiradentes como mártir - a autora lembra a utilização da imagem de Cristo como referência, em ilustrações oficiais dos órgãos de Educação.

Parte do “enleio do imaginário” como descreve Arruda (1998) advém da matriz geográfica. O relevo encontra-se sempre presente na descrição do caráter da população “[...] o fato é que a montanha traz ao mineiro a consciência da gravidade da vida. E lhe dá aquele ‘melancolismo’ [...] (ARRUDA, 1998, p. 126). “Se alguém tomasse o trabalho de estudar a melancolia na poesia mineira certamente teria seu trabalho recompensado com o reconhecimento de que todos (ou quase todos) os poetas de maior importância em Minas foram irremediavelmente melancólicos”. Outro fator do relevo é o solo rico em minerais, pedras e metais preciosos, comumente presentes nas descrições do temperamento típico da região, dos inconfidentes a Drummond.

Arruda (1998) faz uma extensa revisão da cultura e do tipo mineiro, desde o período colonial até a contemporaneidade. Segundo esta autora as primeiras descrições dos mineiros foram feitas pelos primeiros viajantes. Recolhendo impressões de viajante ao longo da

história, afirma que o mineiro é facilmente, mesmo entre os brasileiros, e suas peculiaridades estão associadas à sobriedade, simplicidade e desapego ao culto da aparência e uma aparente desatenção ao dinheiro – isto é, não ostentação pessoal de riqueza.

Outros viajantes já haviam chamado a atenção para a simplicidade dos mineiros e a sobriedade dos seus gestos. Mesmo em homens mais humildes a polidez é realçada. “Em geral no tocante à polidez não é demais fazer o elogio dos soldados do regimento de Minas. Todas as vezes que me encontrei com alguns deles deparei modos extremamente delicados” (ARRUDA, 1998, p.83).

Em outra passagem Burton (1976) refere-se ao caráter pacato, porém altivo dos mineiros. O seu modo de tratar é “obsequioso e sensato”; outros enfatizam o “garbo” e a “nobreza”, que se fecham num perfil harmônico comparado ao dos ingleses. Pedro Nava (2000) afirma ser Minas “muito mais espanhola que portuguesa”, afirmando o caráter “quixotesco” dos mineiros. “O Grande Mentecapto”, de Fernando Sabino e “Lucas Procópio”, de Autran Dourado constituem-se em exemplos de obras literárias concebidas na figura quixotesca, assim como de certa forma “O Amanuense Belmiro”, de Ciro dos Anjos. Na opinião de Freyre (2002) Minas pode ser considerada “a Castela do Brasil e Ouro Preto sua Toledo”, revestida do aspecto trágico do personagem de Cervantes. Essa tragicidade expressa- se também na atração pela imagem da morte, que enquanto extensão da desesperança manifesta-se também na religiosidade da sociedade. Arruda (1998) aponta que essa expressão não exclui uma sensualidade implícita presente nas imagens enquanto que duramente reprimida na vida social. Pedro Nava (2000), por exemplo descreve uma Juiz de Fora em que havia uma estrutura social elitista e tradicionalista que, se pudesse amordaçar toda a vida e reprimir todo o sexo “ainda não ficaria satisfeita” embora convivesse com um remorso adquirido nas viagens freqüentes ao Rio de Janeiro – “onde muito se podia”.

Ainda segundo Arruda (1998) outro traço marcante na constituição dos mineiros é o gosto pela cultura. Essa autora recolheu várias opiniões: segundo D’Orbigny “os habitantes do Tejuco são polidos, corretos, bem educados e mais instruídos que os do restante do Brasil”. Saint-Hilaire também achou os homens brancos de Sabará “os mais polidos e instruídos”. Em Vila do Príncipe “mesmo após a decadência os seus habitantes distinguiam-se tanto pela instrução como por sua requintada polidez”. Há também uma ênfase no caráter politizado da vida social que remonta às descrições do século XIX (ARRUDA, 1998, p. 65).

Do conjunto de imagens pinçadas pelos viajantes, segundo a autora sobressai a importância conferida às humanidades. Segundo ela “a ciência moderna não pode ser adquirida na província, a mecânica é desconhecida, mas as letras e humanidades estão abertas

a todos”. As cidades mineradoras conviviam com uma elite ilustrada composta basicamente por intendentes, padres e poetas. Daí a conjunção entre a política e as belas-letras, exemplificado pelos ideais libertários dos inconfidentes, nascidos de discussões intelectuais entre poetas, juristas e clérigos, originando o sentimento de que “à glória de ser concebida como berço dos ideais de liberdade, agregou-se o ornamento de der a matriz da mais nobre das artes – a literatura” (ARRUDA, 1998, p. 75).

O “provincianismo” também é destacado pela mesma autora, manifestado na aversão às longas viagens marítimas; no entanto é dito que os mineiros apreciam as viagens por terra. Esse fato carrega certas características como, por exemplo, o “nomadismo”, porque o mineiro não emigra como o nordestino, com intenção de voltar: como índio ele parte levando a família e as sementes pra fundar uma nova taba – fato que pode ser exemplificado na “taba mineira” existente na região de Boston, EUA. Isso explicaria o apego às tradições, que, no nível das relações familiares e sexuais implica uma posição moralista.

Da obra de Arruda (1998) podem ainda ser extraídas outras características da “mineiridade”: a “preservação da essência da brasilidade”, o “zelo pela unidade do país”, a “sobriedade”, a “fleuma” e o “humor britânico”. Da Inglaterra vêm ainda a temperança e a fidelidade, a pontualidade e o relacionamento com as ferrovias: “mineiro não perde o trem”. Qualquer objeto não identificável rapidamente é um “trem”. Entre os traços psicológicos ainda estariam um “realismo” que leva ao desprezo do supérfluo, e que na literatura levaria a um enorme número de contistas, em detrimento do romance. Esse realismo seria temperado por um esprit de finesse, e ausência de dogmatismo – configurando três planos que se apóiam e se excluem: bom senso, idealismo e utopia. O mineiro, segundo a extensa fonte de autores levantada pela autora é “triste”, porque mais introspectivo, pensativo e algo melancólico – em oposição à extroversão dos Estados litorâneos, e à pressa industrial de São Paulo. Mineração e agropecuária demandam “paciência”. A literatura mineira guarda esses traços de sobriedade, sendo caracterizada pela grande presença de funcionários públicos entre seus principais autores.

Arruda (1998) faz referências às festas populares - religiosas ou não - onde, a par do fausto, senhores, homens livres e escravos celebravam conjuntamente. A festa religiosa, segundo a autora, tinha um caráter profano nas Minas dos séculos XVII e XVIII – a religiosidade foi declarada por viajantes europeus como “muito superficial”. Algumas festividades, como o “casamento na roça”, receberam descrições detalhadas de muitos viajantes, quando convidados para algum desses eventos de famílias mais abastadas, pela profusão de iguarias, e pelos conflitos que às vezes aconteciam mesmo durante a cerimônia.

A sensação de transitoriedade da vida social levava à construção de casas muito frágeis, que a autora remete ao espírito nômade, de quem pode se mudar em função da descoberta de nova mineração em outro lugar. Mas, em contraste com a pobreza da população, a riqueza dos senhores foi suntuosa e marcou a vida social até o século XIX, concorrendo para preservar na mente dos mineiros as glórias do passado. O “memorialismo” assim, tem raízes nessa perda de prestígio que quer, no entanto, ser mantido – daí a profusão de autores desse formato, dos quais Pedro Nava é um dos maiores. Realçou essa tendência o exílio político dos inconfidentes, econômico, dos migrantes – cujo “espectro está sempre no encalço dos mineiros“ (ARRUDA, 1998, p. 206).

Em alguns casos as características dos mineiros foram associadas, no entanto, pela autora, à hesitação, ambigüidade e impotência frente ao mundo. Segundo ela a obra de Guimarães Rosa confirma essas características ao desenhar no sertanejo um homem universal, mas marcado pela dúvida permanente. Drummond também partilharia essa dúvida, na sua oscilação entre ser um animal político - pela natureza ou por uma obrigação moral. O comportamento dos mineiros estaria sempre na encruzilhada entre a rebeldia e o conservadorismo, entre o local e o universal, cosmopolita e enraizado, o memorialismo pessoal que se inscreve como filosofia humanística.

A autora, em seu vasto retrato de Minas Gerais analisa os políticos mineiros – em sua maioria profissionais liberais, afastados das atividades econômicas básicas - políticos profissionais – em seus discursos e inclinações, para mostrar como Tancredo Neves é um retrato exemplar: sua estratégia de conciliação, moderação e comedimento volta-se para o passado em São João del Rei e encontra ali a harmonia entre a memória e a projeção para o futuro. A autora lembra que sua morte, praticamente na mesma data da morte de Tiradentes e do descobrimento do Brasil parece ter aumentado a carga simbólica do evento. Políticos como Milton Campos enfatizaram o equilíbrio como uma capacidade de enxergar mais longe, o que implicaria em sacrifício e renúncia à liberdade para cumprir uma missão que a posição de superioridade exige, na criação da unidade nacional.

A literatura historiográfica é crescente e explora os mais variados temas que

constituíram a cultura mineira. Paula (1999), “abrindo os baús” para discorrer sobre os valores e tradições de Minas Gerais afirma alguns dos conceitos, segundo a autora, centrais nesse contexto:

a) fatalidade e resignação b) obediência

d) intrepidez e) disciplina

f) cerimônia, formalidade e distância g) austeridade e avareza

Tais características viriam do isolamento rural, das características da busca do ouro e pedras preciosas, marcando um espaço social conservador e sempre saudoso “dos bons tempos [...]”.

Ramos (1993) disseca o histórico partido político PSD (de grande expressão nacional) em Minas Gerais, mostrando que moldaram sua índole condicionantes sociológicos originários da cultura do Estado, tais como a discrição e a prudência, assim como a habilidade para compor e negociar, a paciência para ouvir, o raciocínio político sutil que marcaram o engenho de sua atuação bem sucedida, sendo considerada por alguns “exemplo de sabedoria” no trato das questões nacionais – e por outros, exemplo de atuação “matreira”, por “detrás das cortinas”.

O estudo de Silva (2007) analisando os “territórios de mando” do banditismo em Minas Gerais no século XVIII mostra que esse banditismo tem características que são encontráveis no banditismo latino-americano de modo geral – sua existência é calcada em uma complexa rede que envolve a política local e rivalidade entre grupos e famílias. Segundo a autora esse banditismo rural ou urbano é sustentado por uma tradição cultural que envolve respeito e obediência alicerçados em uma dominação carismática regional uma “cultura política mestiça do sertão”. Os princípios éticos dos bandidos estão inseridos em uma rede de solidariedade que envolve o poder. Os dois modelos analisados pela autora – um, no qual os bandidos têm uma “consciência reflexiva” e outro, uma “consciência marginal” trazem linguagens e condutas próprias, e objetos e formas específicas de atuação.

Figueiredo (1997) estudou as “barrocas famílias” das Minas do século XVIII e observou um paradoxo entre a religiosidade aparente e a confusão familiar e afetiva de uma sociedade que reunia artesãos, escravos, lavradores e “negras de tabuleiro”: desordem moral de “casais amasiados”, festas intermináveis após os batizados, homens e mulheres impacientes com a burocracia do matrimônio oficial, crianças em situação de extrema pobreza – e a espreita da Igreja, ameaçando com a possibilidade da excomunhão. A “tradicional família mineira” que teria participação através de representações em vários momentos conservadores da história recente do país teria, segundo o autor, uma história bem menos “digna”, escondida por estudos com forte viés “moralista”.

O trabalho de Furtado (2006), ao propor uma revisão das interpretações das históricas relações entre Portugal e Brasil durante os tempo da colônia, estuda o que chamou de “interiorização da metrópole”. Segundo este autor o comércio em Minas Gerais, durante o século XVIII pautou-se pela identificação dos súditos com o monarca português – criando laços de fidelidade mais fortes que o desejo de alteridade (que existia com uma ênfase menor). Analisando a correspondência de comerciantes a linguagem que sobressai privilegia conceitos tais como amizade, liberalidade, gratidão, magnificência e caridade – ajudando a demonstrar a conformação de uma mentalidade pouco ousada ou empreendedora, no sentido capitalista da expressão. Assim, apesar da existência de uma cultura de caixeiros-viajantes e mascates, e mesmo rebeldes separatistas, a cultura de “fidalgos e lacaios” era preponderante.

Se Antonil (1966), falando da mineração do ouro revela que “mais de trinta mil almas” se ocupam de “catar e negociar”, Dias diz que no “fardo do homem branco” a base da dominação era a aceitação generalizada do poder real, num lento enraizamento dos costumes portugueses através de múltiplas interações formais e informais. A natureza mais livre da atividade comercial era fator de tensão e gerou revoltas, mas, segundo Furtado (2006), o mesmo sujeito histórico oscilava na afirmação simultânea, na mesma pessoa, do súdito fiel e do colono rebelde.

Souza (2004) analisa a pobreza da capitania mineira no século XVIII fazendo uso de matrizes da ciência social, utilizando o conceito de “desclassicação” em lugar de marginalidade – conceito mais adequado para tratar da sua fluida inserção na vida econômica e inclusive sua utilidade e funcionalidade no sistema – quando essa funcionalidade deixava de existir, eram presos e executados. Ela analisa o envolvimento da administração nas práticas de contrabando e outras ilegalidades, mostrando como as redes de que fala Faoro (1958), oriundas da precoce centralização e legislação do Estado português e que estendiam o poder da Metrópole aos sertões, pelo uso de prepostos (bandeirantes e caudilhos), usavam o poder em proveito próprio. A mesma autora analisa ainda a repressão ao comportamento dos negros – que viviam, segundo relatos, em uma “liberdade licenciosa” (SOUZA, 2004, p. 157) mas funcional ao sistema, e aos quilombos, que poderiam significar focos perigosos de sublevação. A autora ainda descreve o mundo de infrações e crimes ligadas às relações amorosas, uma vez que grande parte da população vivia em concubinato, que era normalmente aceito; o mundo da prostituição, numeroso, conquanto a população feminina não era estável; a impunidade, mesmo dos crimes mais bárbaros; os padres infratores, já que os clérigos, a maior parte seculares, eram vistos desde o início da colonização como elementos perturbadores; e os falsários e ladrões de residências - também muito comuns, atraídos pelo

ouro da região.

Segundo Souza (2004) os mineiros foram “massacrados pelos tributos enquanto houve ouro para extrair da terra” (SOUZA, 2004, p. 185), sendo todas as formas de arrecadação, segundo ela, injustas. A incrível pobreza da capitania na época da mineração foi também relatada por Freyre (1981), quando analisou o mobiliário (casas onde havia uma só cama para todos os moradores), a indumentária e alimentação da população, caracterizando uma situação-limite de penúria totalmente oposta à celebração do ouro que se fazia no período.

Freyre (1981) analisa ainda a miscigenação da população em Minas Gerais citando relatos de viajantes que afirmavam que, se no litoral era possível aos colonos casarem suas filhas com europeus ou seus descendentes, essa prática - o “mulatismo” - em Minas Gerais tornou-se “um mal necessário”, por ausência de alternativas.

O “continente rústico” de que fala Meneses (2000) resgata a história da agricultura e do abastecimento alimentar em Minas Gerais,no século XVIII, ofuscada pela literatura que privilegia a mineração. Questionando a visão da sociedade mineira como fluida e desenraizada – visão das Minas Gerais da mineração, das artes e do comércio, Meneses (2000) afirma uma outra, centrada na estabilidade, familiar e calcada na previdência e temor ao risco. A presença de produtos importados (inclusive o chocolate) convivia com formas bem mais simples de produção e sobrevivência de grande parte da população, formando uma cultura “rústica” que ainda sobrevive no interior do Estado e se manifesta não somente nos hábitos alimentares, mas em concepções de mundo. A visão do Brasil como o “país das comodidades” contrasta com a vida de lavradores negros e brasileiros. O requinte ocasional não esconde a rusticidade cotidiana, apesar da diversidade da economia mineira no período.

Anastasia (2005), em um trabalho acerca da imprevisibilidade da ordem social, gerada pela desorganização político-administrativa da capitania de Minas Gerais do século XVIII, resgata na Ciência Política e na Sociologia matrizes teóricas conceituais para o seu estudo, que investiga tipos específicos de banditismo nos locais fora do alcance da Coroa – atos violentos de escravos, negros forros e mestiços, que levavam a pairar sobre a capitania “a