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2.3 As várias dimensões da Cultura

2.3.2 Cultura regional e cultura local

Segundo Kuper (2002) a concepção de cultura como sistema simbólico foi desenvolvida por Geertz e Schneider. Segundo estes autores todos os homens estão geneticamente aptos a receber um “programa”, que denominam “cultura”, podendo qualquer criança ser socializada em qualquer cultura. A cultura é um código que fornece um referencial que permite aos homens dar sentido ao mundo e às suas próprias ações. Para Geertz (1997) o mundo cotidiano é habitado por pessoas concretas e personalizadas, caracterizadas positivamente e adequadamente rotuladas em classes, cujos símbolos definidores são construídos historicamente, mantidos socialmente e aplicados individualmente.

Mais claramente que o entendimento de cultura como sistema cognitivo ou estrutural (de Lévi-Strauss) a cultura como sistema simbólico expõe que a cultura pode ser entendida em uma dimensão mais geral, regional ou nacional, mas que necessariamente tem uma dimensão local.

Os pressupostos, crenças e valores que caracterizam a cultura de uma organização (cultura organizacional) traz sempre alguma correspondência do nível local onde ela se instala. A cultura local pode ser assim definida como um sistema simbólico tradicional que é uma criação cumulativa da mente humana, a partir do relacionamento entre pessoas em um território específico – manifestando-se na linguagem, em histórias compartilhadas, crenças, ritos e ideologia (GODINHO, 2000). Por sua vez o estudo da cultura local deve compreender o conceito de cultura popular.

Bosi (1986) faz um esforço para teorizar sobre a cultura popular – começando pela constatação de que ela está ligada à existência e à própria sobrevivência das pessoas que a sustentam. A própria definição de “cultura popular” é problemática. Segundo Gramsci (1968) ela pode ser formulada em termos de estruturas ideológicas. A cultura popular seria criada pelo povo em oposição às esquemas oficiais.

A cultura popular tem características funcionais. A primeira é a coesão interna: cada elemento tem significado na economia como um todo. A segunda é a vivência emotiva, não racionalizada. Além disso, ela é continuamente reinventada e caracterizada como meio de “ajuste” entre pessoas. O fato folclórico tem, além disso, um caráter psicológico, que faz com que ele seja sempre revivido em dada comunidade.

Gramsci (1968) afirma a capacidade do nível popular de absorver novos elementos e transfigurá-los. O artista, por exemplo, nessa dimensão, vive um vínculo profundo com a

comunidade. Essa seria uma diferença fundamental entre a cultura popular, que é uma expressão local, da cultura de massa que, segundo Bosi (1992), não tem raízes na vivência cotidiana.

Ginzburg (1987) ao escrever sobre um “homem do povo” do século XVI italiano,

esclarece que a existência de desníveis culturais no interior das sociedades ditas civilizadas é o pressuposto da disciplina que foi se definindo como etnologia ou antropologia social. Mas o emprego do termo “cultura” para definir o código de conduta das classes “subalternas” foi, segundo ele, retirado da antropologia cultural.

Bakhtin (1988) acrescenta luzes sobre o tema ao advogar que Gargântua e Pantagruel, de Rabelais, que talvez nunca tenham sido lidos por nenhum camponês, parece nos fazer compreender mais sobre a cultura camponesa que o Almanach des Bergers, que teve ampla circulação nos campos da França.

Foucault (1982) analisa a questão do “poder microfísico” mostrando como ele se constitui enquanto uma relação, inclusive entre os estratos populares ou marginalizados e a cultura dominante. Na sua “História da Loucura” e em “Eu, Pierre Riviére [...] ” transita por esse paradoxo, ao recusar falar sobre a loucura utilizando a linguagem da razão ocidental. A relação obscura de Pierre Riviére com a cultura dominante demonstra mais uma vez a ambigüidade do que se chama de “cultura popular”. Os estudos sobre bruxaria na Europa padecem do mesmo problema – a dificuldade de entender o que era a bruxaria para seus praticantes, e não para seus perseguidores.

Para Burke (2005) a “descoberta do povo” iniciou-se juntamente com o nascimento da “história cultural” na Alemanha do século XVII, porém dói deixada de lado “para os amantes de antiguidades” sendo retomada apenas a partir de 1960. Este autor cita a História Social do Jazz – que Eric Hobsbawn escreveu sob pseudônimo em 1959, jamais causando no meio acadêmico o impacto que merecia. O livro só foi assumido pelo autor décadas mais tarde, quando explicou que as observações perspicazes que fazia sobre a cultura popular dos negros Norte-americanos não seria “bem vista” no meio elitizado da universidade inglesa dos anos 50.

A tradição marxista é apontada por Burke como uma rica fonte de estudos sobre o tema – colocando inclusive problemas que foram abordados fora dela ao longo dos anos. Uma dessas questões é a própria definição do significado de “popular”. “Quem é o “povo”? Todos ou apenas quem não é da elite?” (BURKE, 2005, p. 40). A expansão do conceito de cultura, que partiu de uma definição restrita às artes e ciências, para abranger práticas como “comer” e “jogar” é outra dessas questões. Ele cita T. S. Eliot, que ao falar da cultura inglesa em 1948

(em Notas para uma definição de Cultura) incluiu: “[...] o dia do Derby [...] o alvo de dardos [...] repolho cozido e picado [...] beterraba ao vinagrete [...] igrejas góticas do século XIX e a música de Elgar [...]” (ELIOT apud BURKE, 2005, p. 43).

As explicações culturais assumiram uma dimensão mais importante com a obra de Geertz (1978). Seu estudo sobre as brigas de galo em Bali, entendida como verdadeiro “drama social” teve enorme impacto, e as interpretações calcadas no simbolismo da vida cotidiana ganharam mais fôlego. A “micro-história” de Ginzburg (1987), já citada anteriormente, é um exemplo eloqüente. Outros estudos históricos examinaram unidades locais mais amplas, regiões e não aldeias. Mas a idéia básica permanece – analisar a relação entre a comunidade e o mundo externo a ela.

Mesmo estudos que tem outras vertentes teóricas, como etnicidade e multiculturalismo – um bom exemplo seria o estudo sobre a identidade catalã de Oliveira (2006) – refletem esse confronto. Esse autor reflete que o etnólogo treinado no estudo de povos ágrafos e de pequena escala encontra um panorama totalmente diferente ao enfrentar uma história ricamente documentada, porém periférica, não-nacional. “Ser catalão” é uma categoria de transição entre o “local” e o “nacional” – e se a Catalunha é de fato um pequeno território, trata-se de “uma nação de 1000 anos” (OLIVEIRA, 2006, p. 126) de língua e tradições particulares, em relação confusa com o Estado Nacional do qual aparentemente não quer se separar, embora exija seu status diferenciado e a manutenção de sua cultura. O país basco e a província de Quebec mostram realidades semelhantes, e enfrentamentos diferenciados.

Percebe-se, portanto, que o “local” pode ser abordado por diversas perspectivas. O marxismo, por exemplo, tem abordagens que “dissolvem” o “local” na estrutura geral da sociedade de classes outras e que o vêem como uma realidade mais complexa e contraditória (SILVA, 2001).

A percepção de que o “local” é um espaço onde interagem diversos atores, com

interesses diversos abre uma nova frente de estudos sobre “poder local” e “governos locais”, entendidos muitas vezes como correspondentes às administrações municipais, quando têm autonomia para o exercício do poder, limitada pela legislação pertinente. Esse exercício pode ser dominante - quando o governo local tem autonomia - ou pluralista, quando outros atores locais e outros níveis de governo têm influência relevante.

No entanto, a cultura local vai refletir-se na forma de gestão e influenciá-la – não somente pela representação, mas também pela expressão dos valores e comportamentos que o “local” valoriza, compartilha e professa. As organizações, tanto públicas como privadas irão refletir em maior ou menor grau os níveis circundantes da cultura.