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4 CAMINHOS E ENCONTROS – EDUCAÇÃO, CULTURA E PROCESSOS DE

4.1 CULTURA POPULAR E EDUCAÇÃO – RELIGAÇÃO E ECOLOGIA DE

Colocar em diálogo a cultura popular e a educação não se trata de propor um receituário de métodos frente a um objeto inerte, mas é uma viagem sem porto definido, é alçar voo alto com pouso incerto, é movimentar nichos de poder e certezas estabilizadas. Nesse sentido, o conhecimento do pesquisador é atravessado pelo contexto, com suas problemáticas sócio-históricas e seu caminho de investigação é processual, exigindo uma postura de coragem para “ir além” e dissolver as estabilidades inerentes ao objeto estabelecendo um diálogo intercultural (SANTOS, 2010) e plural de saberes. “O caminho se faz ao andar” possibilita ultrapassar fronteiras, nas buscas por compreender as incertezas do mundo, criando um diálogo constante de saberes. Essa perspectiva se coaduna com a abordagem da religação dos saberes (COELHO, 2011).

[...] serve de ponto de partida para a realização desses metapontos de vista, não se situa no plano das ideias e das utopias não realizáveis. É teoria e prática, ação política, prática ética, reflexão criativa, negação da certeza, reconhecimento do erro. A palavra “religação” define a intenção de superação das dicotomias cartesianas (COELHO, 2011, p. 35).

Para o autor, a religação requer um choque cultural que invista contra as estruturas da repetição e aposte nas estruturas da criatividade, nos desregramentos das artes e nas incertezas das teorias e modelos, a qual agencia a explicitação da dialogia vida-ideias. Para Coelho (2011, p. 36), “é preciso ir além das leis de equilíbrio e da fábrica da ordem da cultura, assim como das regulações que os paradigmas do mercado e da informação tentam impor a todos”.

A religação propõe pensar os processos de aprendizagem, como no caso do Fandango, como algo aberto, plural, que se faz ao caminhar. A manifestação popular do Fandango se constitui desta forma, pois os mestres não apresentam didática estruturada para ensinar a dançar, tocar e cantar Fandango; o aprendizado se dá pela observação, pela experiência e vivência práticas. Apesar de haver uma estrutura no Fandango, ela é móvel, pois não existem modelos, métodos e procedimentos únicos e absolutos de ensinar e aprender Fandango. Os mestres não se utilizam de padrões de desenhos coreográficos dos batidos ou de técnicas específicas de bater o tamanco ou segurar a saia, e não é possível ver os tocadores

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lendo cifras de músicas. Em contrapartida existe uma disponibilidade para que a aprendizagem se efetive a partir dos ensinamentos dos mestres que demonstram os saberes, contam histórias e revelam segredos do fazer Fandango, ou seja, são potenciais processos abertos de produção e invenção.

A cultura é um fenômeno instável, que se dá nas interações individuais, no caso do Fandango, na relação permanente entre mestres e aprendizes, como compartilhamento de saberes, o que envolve empatia. Não é possível reduzir a educação a um só caminho, pois, além de perigoso, isso pode ser perverso, é preciso contornar obstáculos e criar maleabilidade para tecer os processos de aprendizagem. Para Coelho (2011, p. 30), “em tempos líquidos de hoje, precisamos de um novo sujeito do conhecimento que reconheça o papel das tecnologias do infinitesimal, mas admita a força propulsora e antecipatória das múltiplas criações do imaginário”.

Isso requer como ponto de partida a religação e circulação dos saberes, que possibilita um posicionamento crítico do sujeito acerca do conhecimento proposto, o qual contextualiza e constrói saberes, que não nega a diversidade, cria novas formas de entendimento do mundo e enfrenta constantemente desafios do conhecimento, sendo consciente das incertezas que o cercam.

A consciência das incertezas pode ser relacionada e compreendida pela ideia da douta ignorância proposta por Santos (2010, p. 543), na qual “ser um douto ignorante no nosso tempo é saber que a diversidade epistemológica do mundo é potencialmente infinita e que cada saber só muito limitadamente tem conhecimento dela”. Para o autor, o saber que ignora é o saber que ignora os outros saberes que com ele partilham a tarefa infinita de dar conta das experiências do mundo.

Se deslocarmos o conceito de Santos para compreender o que se ignora sobre o Fandango Paranaense, podemos compreender que muitos saberes que o constituem foram invisibilizados, e romper com essa distinção entre “um lado e outro lado da linha” é uma alternativa para tornar visível o que se ignora sobre essa manifestação. Assim, o desconhecimento acerca do Fandango no estado do Paraná justifica a relevância de trazer à luz este conhecimento, pois, apesar de ser uma manifestação reconhecida pelo IPHAN como patrimônio cultural, sua importância se dá apenas de forma localizada.

Isso também acontece com o processo de aprendizagem do Fandango, pois a manifestação envolve um universo de saberes que englobam a dança, a música,

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modos de ser, falar e viver, que foram atualizados a partir de novas dinâmicas culturais, ignorando alguns saberes e atribuindo valores a outros, que configuram o que o Fandango é hoje. Deste modo, todos os saberes são atravessados por outras formas de conhecimento, impossibilitando o saber completo, pois, além de complexo, ele se ressignifica constantemente.

Neste sentido, os saberes são tecidos criando novas teias de informação e conhecimento, que se reinscrevem e reinventam a todo momento. É importante privilegiar as experiências da criatividade e inventividade, as quais são abertas e polifônicas e podem nos defender das barbáries do pensamento conciso e prolixo. Teixeira Coelho (2011) acredita que a missão da educação seja desfazer fronteiras, entrelaçar pensamentos, religar razão e emoção, racionalismo e sensibilidade, sabedoria e loucura, consciente e inconsciente, arte e ciência. São circuitos auto- organizados que se retroalimentam mutuamente e traduzem esperanças, desvarios, reorganizações.

Esses cruzamentos de saberes resultam em diálogos interculturais, instaurando uma ecologia de saberes (SANTOS, 2010) que parte do princípio da incerteza, ignorância e da multiplicidade de epistemologias. Trata-se de explorar a pluralidade interna da ciência, ao mesmo tempo em que promove a interação e a interdependência entre os saberes científicos e os outros saberes, não científicos. “Essa razão aberta pode ser retroalimentada por dialogias, a qual não denega a força da razão, mas introjeta que a via racional não é a única forma de acessar o real por meio de teorias, conceitos, proposições” (COELHO, 2011, p. 35). Para o autor, é preciso aprender a religar parte e todo, texto e contexto, local e planetário, para que os paradoxos gerados pelo globalismo não sejam assumidos como redutos unidimensionais de certeza.

Isso permite entender os processos de aprendizagem do Fandango como incompletos e inconstantes, mas ao demonstrar essa incompletude possibilitam pensar que eles se renovam constantemente, que se refazem, reinscrevem e ressignificam. Estão em constante processo, compostos por fluxos, brechas e desordens, mas ao se apresentar nesse estado indeterminado possibilitam outros processos abertos de produções e invenções. Sendo assim, não há palavras de ordem para a aprendizagem, apenas caminhos, proposições, horizontes.

Esses caminhos que se fazem por saberes complexos e transversais levam a um horizonte inacabado, que está sempre em processo religando saberes,

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acessando informações e articulando distintos conhecimentos. A construção de conhecimento precisa levar em consideração esse caráter transitório dos saberes, que se reinventam a partir de novas linguagens, proposições, políticas, que sustentam e modificam o diálogo intercultural.

Santos (2010) propõe exercícios que visam ampliar a visão histórica do Ocidente, no sentido intercultural, dando voz aos saberes invisibilizados que foram esquecidos e marginalizados por interesses imperialistas e ocidentalistas. Esse exercício não tem como objetivo a recuperação histórica, mas sim o reconhecimento de saberes que poderiam dar outro encaminhamento para a história. As experiências e tradições impostas pelo Ocidente fazem uma tradução que desconsidera saberes que deveriam ser religados e visibilizados.

No Fandango Paranaense as políticas de proibição da prática social no Brasil Império, como forma de regulação, bem como em outros momentos no qual a manifestação era considerada lasciva, de menor valor, foram responsáveis por omitir e invisibilizar saberes que até hoje são pouco conhecidos e considerados como conhecimento. A proposta de criar um diálogo intercultural sugere uma nova compreensão das epistemologias, a partir da consciência do não saber e da busca por tecer novas redes de conhecimento na qual possam ser apresentadas ausências de saberes, para além do pensamento abissal.

Como pensamento pós-abissal, a ecologia de saberes procura dar consistência epistemológica ao pensamento pluralista e propositivo. Na ecologia de saberes cruzam-se conhecimentos e, portanto, também ignorâncias (SANTOS, 2010). Essa proposição se apresenta como uma contra epistemologia, que resulta de dois fatores, de um lado, do novo surgimento político de povos e visões de mundo do “outro lado da linha” como parceiros de resistência ao capitalismo global, onde outros conhecimentos não científicos e não ocidentais prevalecem nas práticas cotidianas das populações, como é o caso do Fandango Paranaense, e, do outro lado, há uma proliferação sem precedentes de alternativas que não podem ser alçadas sob uma única alternativa global (SANTOS, 2010).

Para o autor, todas as formas de ignorâncias são tão heterogêneas e interdependentes quanto as formas de conhecimento, visto que a aprendizagem de certos conhecimentos pode gerar o esquecimento de outros, e, sendo assim, a ignorância deles.

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Num processo de aprendizagem conduzido por uma ecologia de saberes, é crucial a comparação entre o conhecimento que está a ser aprendido e o conhecimento que nesse processo é esquecido e desaprendido. A ignorância é só uma forma desqualificada de ser e fazer quando o que se aprende vale mais do que o que se esquece (SANTOS, 2010, p. 56).

Desta forma, na ecologia de saberes a ignorância não é um ponto de partida ou estado original, mas pode ser o estado de desaprendizagem e esquecimento, ficando assim em espaços do entre. O processo de aprendizagem contempla saberes e esquecimentos, dando maior valia àquilo que se sabe do que ao que se desaprende, e, sendo assim, permite reconhecer outras intervenções no real, possíveis por novas formas de conhecimento.

Há no Fandango Paranaense intencionalidade nas ações, no ato de participar, de aprender e de compartilhar saberes, assim a manifestação popular torna-se um modo de intervenção no real por formas de conhecimento invisibilizadas, seja pela riqueza dos saberes ou modos de vida do povo caiçara, pelo conhecimento do mar – para a pesca – e da lua – para o plantio –, pela fabricação de instrumentos e tamancos, ou pelo modo de fazer música e dança. Essas contribuições não são saberes científicos, mas saberes que conseguiram preservar modos de vida, universo simbólico e informações vitais para a sobrevivência dessa manifestação.

Muitas das experiências subalternas de resistência são locais ou foram localizadas e assim tornadas irrelevantes ou inexistentes pelo conhecimento abissal moderno, o único capaz de gerar experiências globais. Contudo, uma vez que a resistência contra as linhas abissais tem de ter lugar a uma escala global, é imperativo desenvolver algum tipo de articulação entre as experiências subalternas através de ligações locais-globais. Para ser bem sucedida, a ecologia de saberes tem de ser trans-escalar (SANTOS, 2010, p. 59).

Todos os conhecimentos sustentam práticas e constituem sujeitos, pois o que se sabe sobre o real é refletido no que se conhece sobre o sujeito do conhecimento. É assim com os mestres e aprendizes do Fandango, o conhecimento que os cerca reflete em quem eles são e o que conhecem, de formas singulares e subjetivas, e suas experiências alargam o entendimento e expandem o caráter do conhecimento.

Para Santos (2010, p. 60), “a ecologia de saberes não concebe os conhecimentos em abstrato, mas antes como práticas de conhecimento que possibilitam ou impedem certas intervenções no mundo real”. As experiências de

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vida dos caiçaras lhes eram inteligíveis pelo saber da experiência, por exemplo, no tempo do plantio e da colheita do arroz, ou na retirada da caxeta – árvore que tinha a madeira utilizada para a fabricação de instrumentos do Fandango, a qual era retirada em uma época determinada pelos caiçaras. Porém, com as leis ambientais, o conhecimento dos caiçaras foi substituído por outro com base em hierarquia e poder, e a proibição do manejo da caxeta quase resultou em sua extinção46, impossibilitando sua utilização para construção dos instrumentos. Neste sentido, pode-se considerar que vem sendo desperdiçada uma riqueza imensa de experiências e saberes. É imprescindível que sejam reconstruídas e ressignificadas algumas experiências no sentido de traduzir a manifestação popular de um modo que considere as tradições no campo movente da cultura. Assim, a interculturalidade apresenta-se como possibilidade da ecologia de saberes. Conforme Santos:

Para recuperar algumas destas experiências, a ecologia de saberes recorre ao seu atributo pós-abissal mais característico, a tradução intercultural. Embebidas em diferentes culturas ocidentais e não-ocidentais, estas experiências não só usam linguagens diferentes, mas também distintas categorias, diferentes universos simbólicos e aspirações a uma vida melhor (SANTOS, 2010, p. 61).

A complexidade e diversidade de saberes mostra que é impossível mensurar o conhecimento por uma única via, mesmo se utilizando da ecologia dos saberes, pois diferentes conhecimentos podem ser incompatíveis, incomensuráveis e ininteligíveis. Porém através da tradução intercultural se torna possível identificar preocupações comuns, aproximações complementares e, claro, também contradições inultrapassáveis (SANTOS, 2010).

A busca pela tradução intercultural possibilita o reconhecimento da diversidade de conhecimentos, assim a aprendizagem torna-se um processo contínuo que contem oceanos de incertezas e dissipações, com diálogos interculturais, baseada em um pensamento pós-abissal, que possibilita um fluente de rio tornar-se mar.

A religação e a ecologia de saberes, como vias para pensar a educação e processos de aprendizagem no fandango paranaense, dão possibilidades abertas de reconhecer e ressignificar os saberes populares, e, além disso, possibilitam pensar em uma aprendizagem criativa, inventiva e problematizadora que não absorve

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Este assunto foi debatido em uma roda de conversa dos Mestres Zeca, Nemésio, Anoldo e Aorélio durante a pesquisa de campo.

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crenças e ideias como absolutas, mas que reside na dúvida e na exploração das pluralidades do conhecimento, e, sendo assim, busca livrar-se da própria traição de tornar-se mais uma epistemologia fechada e abissal.