• Nenhum resultado encontrado

5 Ô DE CASA! ENTRE TAMANCOS, RABECAS, CAIÇARAS E BARREADOS –

5.2 FANDANGO ENTRE A CRENÇA RELIGIOSA E A CULTURA POPULAR

O Grupo de Fandango Ilha dos Valadares é representado pelo Mestre Brasílio60, tocador de viola e batedor de tamanco, sua maestria é na dança e era o único mestre com esta função no fandango. Na imagem abaixo o grupo Ilha dos Valadares apresentando o fandango batido na 5ª Festa do Fandango Caiçara, em agosto de 2014, no centro da roda o puxador das marcas - Mestre Brasílio.

Figura 16 – Grupo Ilha dos Valadares - Mercado do Café - Ago 2014. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora.

Atualmente o mestre está afastado do Fandango por questões de saúde e religiosas, mas participou ativa e prontamente da pesquisa. O grupo continua se apresentando nos bailes do mercado do café, mas sem o seu acompanhamento.

Durante a entrevista61 com o mestre Brasílio surgiram algumas problematizações que valem ser ressaltadas. Ao indagar sobre como eram os fandangos antigamente o mestre conta: “Antes eu morava no Maciel, aprendi

60 Brasílio Santos Ferres é violeiro e batedor de tamanco, nascido em 1937, no Maciel, em Paranaguá. Já participou de outros grupos de Fandango da Ilha como tocador, fez parte da primeira formação do grupo do Mestre Romão, em 1951, mas hoje tem o seu próprio grupo, e sua maestria é na dança (dados da pesquisa de campo).

61

121

fandango lá – desde pequeno, primeiro eu olhava o fandango, em quem dançava, depois fui pegando – mas agora ninguém dança fandango lá... é tudo crente [...]” (FERRES, 2015). Essa declaração do mestre suscitou outra questão ao fim da entrevista que questionava seu afastamento do fandango, então ele relatou: “Eu fui no médico e o médico proibiu, não posso fazer força porque o fandango precisa de força também... ia me dando um treco no coração [...]”, e complementou: “Eu sou crente agora, faz uns quatro mês que sô crente, então falei pro pastor pra mim ensina, ensina eu posso, toca e dança em baile e saí assim pra fora não [...]”, mas ao fim da entrevista ele justifica: “O pastor não falo nada pra não toca... dança... foi uma decisão minha” (FERRES, 2015).

No início da entrevista o mestre Brasílio comenta que não fazem mais Fandangos no Maciel, lugar onde nasceu, porque “lá... é tudo crente”. E, ao ser questionado sobre seu afastamento do Fandango, ele explica que o pastor disse que “ensinar pode, mas tocar e dançar em baile não”, isso reflete a possível influência das organizações religiosas nas culturas populares, que não se limitam aos fandangueiros, mas se revelam em distintas manifestações62.

Não cabe aqui apenas debater o afastamento do mestre da manifestação discutindo a questão da influência das religiões evangélicas nas culturas populares, mas apresentar mais uma obliteração do processo de aprendizagem no fandango paranaense.

Brasílio conta que o grupo não tem mestre, mas que “continua a mesma coisa”. Para ele, “eles têm dançado benzinho, eles falam pra mim que tem dado bom [...]” (FERRES, 2015). O mestre complementa: “Eu danço bastante marca63

... o anu, o feliz, o xará grande, xarazinho, queromana, tonta, vilão de lenço, marinheiro, caranguejo... e meu grupo já não dança, farta de mim eles já não dançam”. Ele reconhece sua importância de mestre como puxador do grupo no fandango batido: “Com a minha presença eles dançavam tudo, eu puxava a roda e eles dançavam junto comigo, agora não sei se eles dançam porque não tenho ido vê... mas acho que não dançam” (FERRES, 2015). Essa declaração do mestre expressa um

62

José Carlos Netto (2012) comenta que sambistas do Rio de Janeiro têm se afastado do samba por motivos religiosos. Ele comenta “a bancada evangélica do samba aumenta a cada dia”, e nomes importantes no mundo do samba têm deixado de fazer história. Fonte: http://www.sidneyrezende.com/noticia/187767.

63

Cada uma das marcas citadas pelo mestre são diferentes sequências coreográficas, referindo-se a distintas danças do fandango (anu, feliz, xará grande, xarazinho, queromana, tonta, vilão de lenço, marinheiro).

122

entrave na continuidade do fandango, pois a figura do mestre se torna indispensável na organização dos grupos. Neste sentido, o pesquisador de cultura popular Pedro Abib afirma:

Na cultura popular, em geral, há sempre uma figura fundamental, responsável pelos processos envolvendo a memória coletiva: a figura do mestre. Os mestres exercem um papel central na preservação e transmissão dos saberes que organizam a vida social no âmbito da cultura popular [...] (ABIB, 2006, p. 91).

Para Abib (2006), o mestre corporifica a ancestralidade e a história de seu povo e assume, por essa razão, a restituição do passado como força instauradora e conduz a ação construtiva do futuro. Neste sentido, é possível compreender a importância do papel do mestre na cultura popular, tendo ele um compromisso com a história do seu povo e com a construção do futuro da manifestação. Mas quando a manifestação é atravessada por imposições religiosas com cunho de proibição, toda a complexidade de ser mestre e a relevância da representação que ele assume perante a comunidade passa a ser negligenciada, como neste caso.

O responsável pelo grupo, hoje, é o Sr. Waldemar, cunhado do mestre e tocador de viola. “Ele que tá organizando... e as duas também que dançam, né, minhas prima”, mas “quando meu grupo se apresentá por aí eu vô dá uma olhada, né, que minha presença já é uma grande coisa” (FERRES, 2015).

É perceptível na fala do mestre o sentimento de preocupação e responsabilidade com o grupo, mesmo não podendo acompanhá-lo. É válido ressaltar que o afastamento do mestre Brasílio não foi capaz de ofuscar o brilho nos seus olhos quando fala sobre sua paixão pelo Fandango. Não dançar fandango é apenas a negação de uma ação isolada porque o fandango está imbricado na história de vida do Mestre Brasílio. Isso porque “o mestre tem profunda ligação com a própria palavra tradição [...]. E, através da tradição, algo é dito e o dito é entregue de geração a geração” (ABIB, 2006, p. 93). Neste sentido, mesmo o não dito é entregue às novas gerações, mesmo os silêncios e ausências do mestre após seu afastamento carregam seus saberes que são indissociáveis da memória coletiva do Fandango.

Ao fim da entrevista, o Mestre Brasílio comentou ter interesse em ensinar Fandango, disse que se a FUMCUL disponibilizasse um espaço e ele tivesse remuneração poderia ensinar fandango aos mais jovens. Este desejo do mestre está

123

presente desde 200664, quando ele apresenta uma preocupação com a continuidade do Fandango: “De agora pra frente, não sei não. Porque nós se acabando não tem violeiro que vai se interessando pra transmitir pra gurizada. A gurizada não quer aprender. [...]. O quê que tem que fazer? Tem que fazer uma escola pra continuar” (PIMENTEL; GRAMANI; CORRÊA, 2006, p. 57).

Atualmente o mestre trabalha no mercado do Caranguejo, ao lado da ponte que dá acesso à Ilha dos Valadares, e foi ali no pé da ponte e na beira do Itiberê65 que a entrevista foi realizada.

5.3 FANDANGO É DIVERTIMENTO TRABALHADO? CARA-CACHÊ!

Esse conceito de que fandango é divertimento trabalhado é apresentado pela antropóloga Patrícia Martins (2006), porém a intenção aqui é apresentar um diálogo a partir das vozes dos mestres e aprendizes acerca da relação estabelecida por eles com o Fandango, que partiu da simples questão: Fandango é trabalho?

Esse questionamento se deu a partir de observações no campo e da pista corpo-texto quando os discursos apresentaram simultaneamente satisfação e incômodo relacionado aos pagamentos dos cachês.

Inicialmente apresento a declaração do Mestre Brasílio sobre a relação de fandango e trabalho. “Fandango é trabalho, porque se não tivé uma pessoa que se interesse por aquilo ali, sem trabalho não vai. É como eu, né, eu tava no grupo... eu interessava pelo grupo, corria pra lá e corria pra cá [...]”, e complementa: “Se o cara ficá parado, não funciona” (FERRES, 2015). Para Brasílio, fandango exige tempo e dedicação, se não houver um esforço do mestre o grupo não se mantém. Para o Mestre Nemésio, “Fandango é um trabalho... justamente. Mas você não vai vive só dele” (COSTA, 2015). Esta afirmação está explícita nas vozes de todos os mestres, que têm consciência que o Fandango não pode ser a única fonte de renda. Nesse sentido, Mestre Aorélio acredita que Fandango é trabalho porque,

Existe a instituição convencional, uma universidade, por exemplo, dentro da universidade tem os mestres... os mestres ganham por aquilo que eles fazem, eles estudaram pra aquilo, pra repassa um conhecimento e forma cidadãos, né? Através daquele conhecimento dele, ele tem todo um

64

Entrevista concedida no ano de 2006 ao Museu Vivo do Fandango.

65

A baía de Paranaguá é banhada pelo Rio Itiberê, assim a Ilha dos Valadares situa-se à margem esquerda do Itiberê.

124

mecanismo e um aparato e um ambiente criado pra que ele possa realiza a atividade dele como um mestre. O mestre da cultura popular é muito mais que isso, porque ele vive a vida inteira estudando isso [...], ele repassa o conhecimento dele, ele forma cidadão... só que ele não tem nenhum aparato. Ele não recebe por isso, ele não tem apoio, ele não tem equipamento, ele não tem um espaço criado pra ele, adequado pra aquilo. Então o mestre, ele é um lutador que o sistema não inclui [...] (DOMINGUES, 2015).

Tanto os mestres Brasílio e Nemésio quanto o Mestre Aorélio acreditam que fandango é trabalho, porém para eles não é possível viver de Fandango, conforme relata Mestre Brasílio: “Não daria pra vive do fandango não, eu perdia tempo porque eu gosto, por amor... no fandango é amor” (FERRES, 2015). A partir deste depoimento do mestre é possível considerar uma relação com o fandango que é afetiva e envolve sensibilidades. Neste sentido, para a aprendiz da dança e esposa do Mestre Nemésio, Sra. Ivonete66, “Fandango é trabalho e ao mesmo tempo divertimento, danço porque eu gosto... fandango faz bem pra mente, pra alma, pro coração [...]” (COSTA, 2015). Assim como Ivonete, Dona Elza67

, aprendiz que dança fandango batido há três anos, afirma: “Fandango é um trabalho porque eu ganho minha graninha, mas é um trabalho em que você se diverte... trabalho e diversão ao mesmo tempo” (REIS, 2015). Assim, entende-se que para as aprendizes a relação é mais voltada ao prazer em dançar do que a remuneração recebida em cada apresentação, porém o cachê é um fator motivante para os fandangueiros

O neto do Mestre Romão, Luiz Carlos Aguiar Junior, acredita que “Fandango não é trabalho, ser mestre é um dom [...], acredito que seja mais por vocação, por amor do que propriamente por remuneração [...]” (AGUIAR JR., 2015). Para ele, a preocupação dos mestres está mais vinculada à continuidade do fandango do que a cachês e o mais importante para os mestres é poder ensinar os jovens, e afirma: “Não deixando morrer é o pagamento deles, entendeu?” (AGUIAR JR., 2015). É relevante o posicionamento de Luiz Carlos e, no discurso dos outros mestres, é possível compreender essa preocupação. Porém para manter o grupo há despesas, pois instrumentos e figurinos têm custos, sendo assim os valores pagos com os

66

Ivonete do Rosário Costa, integrante do grupo Pés de Ouro, no qual dança fandango batido há oito anos. Desde criança acompanha mutirões com sua família e dança os bailados/valsados em bailes de Fandango.

67

Elza Costa dos Reis, integrante do grupo Pés de Ouro. Ela conta que começou a dançar o fandango bailado desde criança lá no sítio onde seus pais faziam mutirão. Apenas o batido ela aprendeu posteriormente, quando a família se mudou para a Ilha dos Valadares.

125

cachês são apenas simbólicos, pois é através deles que são comprados tamancos, cordas de violas, couro do adufo e figurinos para a dança.

Mestre Nemésio acredita que “o cachê estragou o fandango, teve um lado que estragou muito, porque o pessoal da dança eles tão focado mais no cachê. Meu grupo nem tanto!” (COSTA, 2015). Mestre Nemésio acredita que em seu grupo este não é um problema tão preocupante porque, mesmo sem receber cachês, eles se apresentam e, quando não é o baile do grupo Pés de Ouro, todos os integrantes vão para o Mercado do Café e dançam bailado a noite toda. Já os outros grupos apresentam maior dificuldade – principalmente os grupos de Mestre Aorélio e Mestre Romão (compostos por jovens), se não tem cachê não tem dançadores. Ele lamenta ao dizer que antigamente era melhor porque não tinha cachê e as pessoas “faziam fandango com vontade e com gosto”, mas agora os aprendizes vão dançar pensando no cachê.

Neste mesmo sentido, mestre Aorélio Domingues (2015) conta que a relação com os aprendizes piorou muito a partir do momento em que o cachê virou “moeda de troca” para dançar fandango, outras questões importantes, como compartilhar das atividades que envolvem o fandango, deixaram de ser priorizadas caso não fossem remuneradas, e assim perdeu-se o respeito pelos mestres que tomaram a posição de empregadores de dançarinos e o fandango assumiu um caráter mais comercial do que cultural.

Apesar destas declarações dos mestres, foi possível, em suas entrevistas, compreender que há outra perspectiva relacionada aos cachês. Mestre Aorélio comenta que fandango é um trabalho e que algumas práticas da cultura popular que ele realiza são profissionais.

Hoje em dia eu construo rabeca e vendo, eu aceito encomenda. Eu toco a minha música e essa música é paga. Eu dou minha oficina e isso é pago. Ou apresento... formato um projeto pra realiza uma oficina pra uma comunidade e isso é pago, então assim... eu trabalho muito com o fandango, porém as minhas atividades são amarradas com a questão financeira [...]. Eu sô novo, eu não sou aposentado [...], então eu tenho que

torna essa atividade uma atividade profissional (DOMINGUES, 2015).

Esta declaração de Aorélio encontra justificativa na experiência do rabequista da Ilha dos Valadares – Mestre Zeca –, já citado, ao dizer que é necessário reconhecer a atividade cultural como atividade profissional.

126

O Zeca hoje em dia é tão procurado pra fazer as atividades do fandango que ele não consegue fazer a atividade profissional dele, que é a carpintaria e alvenaria. Ele não consegue fazer isso porque faz muitas coisas com relação ao fandango, mas nem tudo que ele faz com o Fandango dá dinheiro, então como é que ele sobrevive? (DOMINGUES, 2015).

Neste sentido, pode-se perceber que não há problema especificamente no cachê dos mestres e aprendizes e em profissionalizar o fandango, a questão é mais complexa, resultado de uma estrutura política e do sistema de valores culturais e sociais atribuídos às expressões populares. Para Carvalho (2012):

A dimensão estética não pode ser reduzida à dimensão econômica, mas também não pode ser analisada sem tomar a economia em conta. Sabemos que existe uma hierarquia no valor alocado às diferentes formas de expressão cultural – e um dos modos de medir essa diferença de prestígio é o preço que se paga pela performance dos diferentes grupos culturais. Por exemplo, uma sinfonia de Beethoven não é melhor nem pior que um auto completo de Cavalo-Marinho [...] (CARVALHO, 2012, p. 43).

Ao contrastar este posicionamento democrático cria-se um relativismo de distintas formas culturais, e sabe-se que isso acontece apenas na teoria, pois é um problema que acompanha o país, e, neste caso, o Fandango, anterior ao Brasil Colônia. Mestre Nemésio conta que a Prefeitura de Paranaguá contratou “aquela Paula.... aquela que canta melhor que nós! Como é que é o nome mesmo? Ah, a Paula Fernandes... (risos) e pagaram um dinheirão pra ela. A gente toca uma noite inteira e ganha cem, cento e cinquenta reais” (COSTA, 2015). Apesar do tom de brincadeira do exemplo citado pelo mestre, há uma verdade expressada, pois este é um problema que toca diretamente os artistas populares, pois em alguns momentos é difícil para eles recusarem ofertas para apresentações, por mais que sejam simbólicas, mesmo que para isso tenham que descaracterizar aspectos importantes da tradição.

Assim, mestres não são apenas vítimas desse sistema, mas também são eles que alimentam esse processo de expropriação, e, apesar de os valores pagos pelas apresentações terem melhorado as condições de mestres e brincantes, as comunidades, no caso a Ilha dos Valadares, que abrigam essas manifestações ainda sobrevivem com pouca renda e não têm como viver da cultura popular.

Há que se refletir sobre a relação das manifestações populares com as instituições públicas que financiam as festas e bailes, como no Fandango, pois colocar a cultura popular a serviço de interesses políticos é um risco de

127

descaracterização e perda de autonomia simbólica e estética. O fandango não pode estar apenas condicionado às políticas locais e regionais, os mestres não podem ser apenas cooptados pelo sistema, é necessário uma reflexão acerca do financiamento destinado às culturas populares e de como isso reflete e traduz a continuidade da manifestação.

5.4 FANDANGO – REGISTRO COMO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL