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1 AMANHECEEE!!!! O FANDANGO DA ILHA DOS VALADARES – UMA

2.1 RESSIGNIFICAR E TRADUZIR – ENTRE-LUGARES DA CULTURA

Primeiro eu peço licença Que assim foi o meu ensino, Depois da licença dada Eu mesmo me determino. Versos de fandango da Ilha dos Valadares

Os deslocamentos, tanto espaciais quanto conceituais, com os quais me deparei ao iniciar esta pesquisa foram e são processos de tradução, de ressignificações e de novos olhares. Na busca por compreender a cultura popular pude fazer uma releitura do conhecimento que trazia em minha bagagem – metaforicamente falando, e, articulando com as vozes dos autores, meu saber foi sendo atravessado e contaminado por novos saberes, sendo reinscrito e relocado. Foram momentos constantes de instabilidade e negociação que me fizeram compreender o significado da palavra tradução e o entendimento alargado da cultura popular.

Etimologicamente, a palavra cultura vem do latim “colere”, que significa o cuidado dispensado ao campo, ao gado, ao cultivo agrícola. Até o século XIII o termo designava um estado de terra cultivado (algo que está dado), aos poucos a palavra passa a referir-se à ação de cultivar a terra (algo em processo) (EAGLETON, 2011, p. 9). Se cultura significa cultivo, um cuidar que é ativo, daquilo que cresce naturalmente, o termo passa a sugerir uma dialética entre o natural e o artificial, entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz. Implica a existência de uma natureza ou matéria-prima além de nós (realista), mas tem também uma dimensão construtivista, já que esta matéria-prima é elaborada de forma humanamente significativa (EAGLETON, 2011, p. 11).

“Tenho quase tanta dificuldade com „popular‟ quanto tenho com „cultura‟. Quando colocamos os dois termos juntos, as dificuldades podem se tornar tremendas” (HALL, 2010, p. 273). A declaração de Stuart Hall nos dá a ideia de que entender a cultura popular é diferente de conseguir conceituá-la e que mesmo o mais profundo entendimento possui lacunas. Sua compreensão pode ser reinscrita a

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todo o momento, pois a cultura é hibrida e dinâmica e qualquer tentativa de conceituação apresentará faltas e falhas. Porém algumas posturas, como a percepção, o olhar e a sensibilidade do pesquisador, bem como sua disposição em se realocar, se reposicionar e ressignificar frente às diferenças culturais, são determinantes no entendimento do processo da tradução da cultura popular.

A cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma arqueologia. A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu trabalho produtivo. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. [...]. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar (HALL, 2013, p. 49).

A cultura, e, assim como ela, o Fandango Paranaense, possui dinamismo e transitoriedade, está sempre em processo, se reinventando e transformando, é constantemente reinscrita e sua simbologia é mutável, negocia com o tempo e o lugar e com todas as relações e saberes que a envolvem. Stuart Hall (2013) complementa:

[...] em uma definição de cultura popular são as relações que colocam a cultura popular em uma tensão contínua (de relacionamento, influência e antagonismo) com a cultura dominante. Trata-se de uma percepção de cultura que se polariza em torno dessa dialética cultural. Considera o domínio das formas e atividades culturais como um campo sempre variável. Em seguida, atenta para as relações que continuamente estruturam esse campo em formações dominantes e subordinadas. Observa o processo pelo qual essas relações de domínio e subordinação são articuladas. Trata-as como um processo: o processo pelo qual algumas coisas são ativamente preferidas para que outras possam ser destronadas. Em seu centro estão as relações de força mutáveis e irregulares que definem o campo da cultura – isto é, a questão da luta cultural e suas muitas formas (HALL, 2013, p. 285).

A definição apresentada reconhece a cultura e todas as suas formas como compostas de antagonismos e instabilidades. Não há fixidez na cultura popular, assim não é possível garantir a estabilidade dos seus signos. A compreensão da tradição apresentou, historicamente, um posicionamento fixo e radical, porém ela é entendida como reinvenção, pois os signos e símbolos culturais ao serem incorporados em determinado campo social são ressignificados, e não apenas

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reproduzidos e apropriados, os símbolos são atribuídos pelas culturas locais em que se inserem. A partir do exposto, apresentarei uma discussão acerca das tradições e seus processos de tradução cultural, articulando os conceitos que permeiam este entendimento.

O autor Homi Bhabha (2013) faz uma leitura sobre a articulação da diferença cultural e a tradição:

A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços culturais e étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O direito de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição e de se reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão na „minoria‟ (BHABHA, 2013, p. 21).

O Fandango Paranaense, assim como grande parte das manifestações populares, passou por diversos processos, apresentando tentativas de permanência e resistência, sendo esta última um esforço de redesenhar o passado, no qual criou estratégias de reinscrição e condições de sobrevivência, por estarem condicionados aos poderes políticos e sociais. Para o mestre Aorélio Domingues15, isso aconteceu por que

[...] o Fandango teve vários processos de modificação, mesmo na época do Império ele era proibido porque ele era tido como muito lascivo, muito barulhento. Então tem muitos registros inclusive, até no livro do professor Magnus, que comenta sobre essas proibições, e que as pessoas que ditavam essas regras elas colocavam que o fandango tinha que ser arrumado, tinha que ser mais ponderado ou tinha que ser feito de outra forma, ou só feito por pessoas que conseguissem paga, ou seja, elitiza já naquela época (DOMINGUES, 2015).

O mestre acredita que, apesar do posicionamento do Estado em relação ao fandango, houve a persistência da tradição, pois foram criadas estratégias de negociação para dar continuidade à manifestação. Mestre Aorélio (2015) acredita que o Brasil, no período de 1400 a 1500, era um território sem lei e por isso foram tomadas provisões para “arrumar” o fandango. Para ele, “o fandango se fazia no meio da caboclada, da jagunçada, pessoal bêbado dançando com índio, com índia,

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enfim, com quem tivesse por aqui [...]. Era uma brincadeira de um território onde não tinha lei” (DOMINGUES, 2015), e possivelmente isso o tornou lascivo, bagunçado, e resultou em proibições e leis de organização. A tentativa do Poder Público era que o Fandango se espelhasse nas danças tradicionais da corte, mais ponderadas e comportadas, e que fosse feito por pessoas que pudessem pagar, em casas de pessoas da elite. Assim, por um tempo acabou aquela brincadeira popular tradicional.

Para Bhabha (2013), o passado é reencenado e as diferenças culturais são responsáveis por essa articulação da tradição, introduzindo outras temporalidades incomensuráveis na sua invenção. É importante reconhecer que nem todas as experiências históricas são visíveis e neste entre-tempo e entre-lugar da cultura ficaram tradições esquecidas. Para Santos (2010), as tradições são imposições do Ocidente ao mundo e os interesses do Ocidente invisibilizaram muitos fatos e acontecimentos históricos. E, ao propor uma visão mais ampliada das experiências históricas, ele sugere:

Dar voz a tradições do Ocidente que foram esquecidas ou marginalizadas porque não se adequavam aos objetivos imperialistas e ocidentalistas que vieram a dominar a partir da fusão entre modernidade ocidental e capitalismo. Trago à colocação estas experiências e tradições sem qualquer intenção de recuperação histórica. O objetivo é intervir no presente como se ele tivesse outros passados para além daquele que fez dele o que ele é hoje. Se podia ter sido diferente, poderá ser diferente. O meu interesse é mostrar que muitos dos problemas com que hoje se debate o mundo decorrem não só do desperdício da experiência que o Ocidente impôs ao mundo pela força, mas também do desperdício da experiência que impôs a si para sustentar a imposição aos outros (SANTOS, 2010, p. 522).

No caso do Fandango, os processos históricos que o negaram e proibiram foram responsáveis por invisibilidades, pois as imposições delinearam suas traduções e obscureceram fatos e acontecimentos importantes. Para o mestre Eugênio16 (em memória), no Fandango isso se resume a mais ou menos vinte anos de invisibilidade:

A polícia interveio no Fandango. Ele chegava, se não tirava licença, ele mandava fechar a noite. O inspetor ia lá e parava o fandango. [...] E então, se é o fandango e não tirava licença do fandango: “Não tem licença, pode parar!”. [...]. Então, por esse motivo, foi acabando, foi diminuindo. “Ah, não

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Mestre Eugênio dos Santos foi um grande representante do fandango, exímio tocador de viola, entusiasta da cultura popular. Faleceu no ano de 2011, deixando um legado para os caiçaras residentes da Ilha dos Valadares.

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vou fazer mais” e foi e acabou. Acabou e levou mais ou menos uns 20 anos sem fandango (PIMENTEL; GRAMANI; CORRÊA, 2006, p. 69).

Essas ausências balizaram o Fandango limitando os saberes e fazeres acerca da manifestação. Ao ser entrevistado pelo Museu Vivo do Fandango, mestre Eugênio disse: “Hoje até está sendo bom a gente fazer uma afirmação dessas aqui. Muita coisa (da história do nosso Brasil) ficou pra depois, depois e depois, e não puseram, não é verdade? Esqueceram ou não tinha valor...” (PIMENTEL; GRAMANI; CORRÊA, 2006, p. 68). E o mestre complementa: “Ah, fandango não tem valor! Tem sim, tem bastante valor” (p. 68). A reflexão do mestre acerca do esquecimento do fandango reforça a afirmação anterior de Santos, o qual diz que “se poderia ter sido diferente, poderá ser diferente” (SANTOS, 2010, p. 522), quando o autor propõe uma distância em relação às tradições teóricas e culturais, é para poder enxergar as tradições até então invisibilizadas pela história, por um novo viés, menos alienante e mais emancipatório (SANTOS, 2010). É possível que alguns resquícios históricos estejam sendo salvaguardados e renegociados, como é o caso do Fandango Paranaense, e que as tradições não sejam mais compreendidas como a cristalização, conservação ou manutenção da cultura. Hall (2013) nos apresenta esse olhar diferenciado, sem ranços do passado no presente, ao conceito da tradição. Ele diz:

A tradição é um elemento vital da cultura, mas ela tem pouco a ver com a mera persistência das velhas formas. Está muito mais relacionada às formas de associação e articulação dos elementos. Esses arranjos em uma cultura nacional-popular não possuem uma posição fixa ou determinada, e certamente nenhum significado que possa ser arrastado, por assim dizer, no fluxo da tradição histórica, de forma inalterável. Os elementos da tradição não só podem ser reorganizados para se articular a diferentes práticas e posições e adquirir um novo significado e relevância (HALL, 2013, p. 287).

As tradições do Fandango foram compostas por processos de reorganização e articulação das diferenças. Os caiçaras constantemente criaram estratégias de sobrevivência frente às instabilidades culturais. Mestre Romão conta que após a primeira revolução do Paraná-Santa Catarina, o Fandango foi acabando. “Por quê? Porque o camarada se alistava para servir o Exército. Quando veio a convocação dele pra servir o governo, pra defender a fronteira, ele corria pro mato. Aí o governo mandava buscar ele de qualquer jeito pra ir defender” (PIMENTEL; GRAMANI; CORRÊA, 2006, p. 52). O mestre conta que neste período a família de quem servia

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ficava sozinha no sitio, e ao terminar a revolução o camarada voltava, mas ficava no quartel. “Aí depois veio outra, de 42 a 45, essa Guerra Mundial. Aí acabou tudo (Fandango)”. Além do afastamento dos caiçaras da sua terra e sua família, que os distanciou das práticas sociais e culturais, vieram os evangelistas atribuindo valor pecaminoso ao Fandango. “Depois da guerra foi uns evangelistas com a Bíblia lá, perguntava ao camarada: „O que é?‟, „Vou dançar fandango‟, „Ah, o senhor trabalhou tanto tempo, vai morrer e não vão se salvar?‟ [...]. Aí acabou-se de uma vez” (PIMENTEL; GRAMANI; CORRÊA, 2006, p. 53). Os caiçaras, ao invés de dançar fandango, iam para a cidade, seguiam a religião e deixavam pra trás sua vida no sítio e práticas culturais.

Neste sentido, os significados do Fandango para os caiçaras foram sendo modificados e seu modo de vida se ressignificou frente aos cruzamentos de valores sociais. Para Santos (2010), as lutas culturais são mais intensas no ponto em que as tradições se encontram ou se cruzam, conferindo a elas novas ressonâncias e novas valências. Ou seja, as tradições não se fixam para sempre, pois as culturas, concebidas como formas de luta, constantemente se entrecruzam. Hall complementa:

Isso nos alerta contra as abordagens autossuficientes da cultura popular que, valorizando a “tradição” pela tradição, e tratando-a de uma maneira não histórica, analisam as formas culturais populares como se estas contivessem, desde o momento da sua origem, um significado e valor fixo e inalterável (HALL, 2013, p. 288).

Neste sentido, a limitação e fixidez da tradição não está no conceito, mas sim na interpretação e compreensão que se tem dele. Bhabha (2013) afirma que os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos, podendo confundir as definições de tradição. Os entraves encontrados na tentativa de compreender as tradições e a busca por ressignificá-las são formas de luta e sobrevivência cultural, os quais encontram na cultura popular a possibilidade de serem reinscritos.

Boaventura de Souza Santos (2010) compreende as tradições culturais como uma imposição do Ocidente ao mundo e acredita que para reinventar a emancipação social é necessário criar uma distância em relação a essas tradições teóricas que nos conduziram ao beco sem saída em que nos encontramos. Os

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sujeitos culturais que não faziam parte do processo de mudança cultural poderiam, a partir daí, assumir outro posicionamento na história. O autor afirma:

[...] devolver alguns dos objetos furtados intramuros é fundamental para criar um novo padrão de interculturalidade, não só no mundo, como também no interior do Ocidente. Não há muito a esperar da interculturalidade que é hoje defendida por muita gente no Ocidente se ela não partir da recuperação de uma experiência originária de interculturalidade. [...] só um Ocidente intercultural poderá querer e entender a interculturalidade do mundo e contribuir ativamente para ela. E o mesmo se aplica a outras culturas do mundo passado e presente (SANTOS, 2010, p. 522).

Os furtos intramuros no fandango resultaram em lacunas históricas que atenuaram por determinado tempo sua continuidade, tamanho foi e continua a ser o dano causado pelo Ocidente imperialista e a colonização na busca por hegemonia. É preciso dar voz às tradições, ouvi-las e percebê-las como necessárias no processo de tradução, aquelas tradições esquecidas e marginalizadas pela história imposta pelo Ocidente, precisam ressignificar as experiências do presente, não no sentido de resgate ou recuperação, mas como forma de intervenção no presente, considerando os passados invisibillizados pela história. Para o autor, é preciso se desvincular do pensamento abissal17, que consiste em um sistema de distinções visíveis e invisíveis, que separa “este lado da linha” do “outro lado da linha”, tornando o „outro lado da linha‟ inexistente. Para isso, Santos (2010) propõe um diálogo intercultural18 e a revisão das tradições teóricas, carregadas do pensamento etnocêntrico19. Somente ela permitirá que o mundo se reconheça na sua infinita diversidade, a qual inclui também a infinita diversidade das influências cruzadas, das semelhanças e continuidades.

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Conceito adotado por Boaventura de Souza Santos (2010). Para o autor, as linhas cartográficas “abissais” que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial subsistem estruturalmente no pensamento moderno ocidental e permanecem constitutivas das relações políticas e culturais excludentes mantidas no sistema mundial contemporâneo. A injustiça social global estaria, portanto, estritamente associada à injustiça cognitiva global, de modo que a luta por uma justiça social global requer a construção de um pensamento “pós-abissal”.

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Santos (1997) propõe um diálogo intercultural contra o universalismo, que se organiza como uma constelação de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, e se constitui em redes de referências normativas capacitantes. Na interculturalidade, a troca não é apenas entre diferentes saberes, mas também entre diferentes culturas, ou seja, entre universos de sentido diferentes, e, em grande medida, incomensuráveis. O reconhecimento de incompletudes mútuas é a condição de um diálogo intercultural.

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Conceito apresentado por Jean-Marie Pradier (1995). O pensamento etnocêntrico se constitui em reconhecer a diversidade cultural desde que hierarquizada, seja logicamente, ontologicamente, seja, ainda, historicamente ou retoricamente. A difusão etnocentrista como gênero universal e critério de civilização provocou prejuízos à cultura, traduzindo-a através de fórmulas europeias.

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Para falar sobre tradição, como já foi abordado nas páginas anteriores, Santos (2010) a apresenta como a imposição do Ocidente ao mundo. Nesse mesmo sentido, Bhabha (2013) apresenta a existência de um discurso naturalizado, unificador, da “nação”, dos “povos” ou da tradição popular, o qual está incrustrado da particularidade da cultura, e, sendo assim, não pode ter referências imediatas. Para Bhabha (2013), a grande, embora desestabilizadora, vantagem dessa posição é que ela nos torna progressivamente conscientes da construção da cultura e da invenção da tradição.

As culturas tradicionais se tornaram de algum modo recrutas da modernidade, pois, por serem normalmente representadas como “fixadas em pedra”, apresentam uma forte delimitação histórica e social. Porém, em seu sentido histórico mais amplo, muitas culturas tradicionais se tornaram formações híbridas, como é o caso do Fandango Paranaense, o qual está sempre em processo, sendo reinventado e ressignificado, apesar de ter marcante delimitação histórica e social. A partir do hibridismo20, enquanto valor cultural e tradutório que considera as tradições, se faz necessário repensar a história e a cultura.

Para o autor Stuart Hall:

A tradição funciona, em geral, menos como doutrina do que como repertórios de significados. Cada vez mais, os indivíduos recorrem a esses vínculos e estruturas nas quais se inscrevem para dar sentido ao mundo sem serem rigorosamente atados a ele em cada detalhe da sua existência. Eles fazem parte de uma relação dialógica mais ampla com “o outro” (HALL, 2013, p. 81).

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O conceito de hibridismo será adotado para pensar os processos de tradução cultural nesta pesquisa. Tendo como base os autores Bhabha (2010), Hall (2013) e Canclini (2015). Para Bhabha (2010), o hibridismo parece implicar uma condição e um processo. É uma condição do discurso colonial na sua enunciação, dentro da qual a autoridade colonial/cultural é construída em situações de confronto político entre posições de poderes desiguais. É também um processo de negociação cultural, ou, no que poderia ser entendido como “um modo de apropriação e de resistência, do pré- determinado ao desejado”. Para Stuart Hall (2013), a hibridização acontece no contexto da diáspora e no processo de tradução cultural que os indivíduos vivenciam para se adaptarem às matrizes culturais diferentes da sua de origem. Para o autor, o hibridismo trata-se de um processo de tradução cultural, agonístico, uma vez que nunca se completa, não se refere a indivíduos híbridos. Assim, o hibridismo não é um processo que traz ao sujeito a sensação de completude ao dialogar com outras culturas, pelo contrário, é o momento onde o sujeito percebe que sua identidade está sempre sendo reformulada, ressignificada e reconstruída, num jogo constante de assimilação e diferenciação para com o “outro”. Para Canclini (2015), que analisa o hibridismo por movimentos sociais, políticos e artísticos na América Latina, o processo de hibridação garantiria a sobrevivência da cultura popular e levaria a um processo de modernização da cultura de elite. O hibridismo cultural traz consigo a ruptura da ideia de pureza. É uma prática multicultural, possibilitada pelo encontro de diferentes culturas.

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O dialogismo que se estabelece entre os indivíduos e os saberes tradicionais vê nas experiências da tradição cultural lugares de entrecruzamento de signos e valores. As trocas e a negociação cultural que ocupam o entre-lugar possibilitam as ressignificações, apropriações e reinscrições do tradicional no presente, de uma cultura na outra.

Conforme Hall, “a cultura popular não é, num sentido „puro‟, nem as tradições populares de resistência a esses processos, nem as formas que as sobrepõem. É o terreno sobre o qual as transformações são operadas” (2013, p. 275). A construção e reconstrução constante que acontece na cultura, não apenas de forma individual, mas também na coletividade, é um modo de vinculação das inúmeras tradições e práticas ao mesmo tempo que é um deslocamento em busca de novas compreensões e percepções da sociedade, visto que isso acontece por